segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Um

Uma cama, um parque, uma grama, uma tarde
Uma areia, uma calma, uma onda, um sorvete
Um cheiro, um chamego, uma leitura em voz alta, uns pezinhos
Um calor de corpo, um sono de amor, um banho apertado, umas velas iluminando o quarto
Umas canções compartidas, umas palavras no ouvido, umas mordidas safadas, um prazer impossível
Um cantinho de sabores, umas lembranças colecionadas, umas roupas, um repouso
Um presente sentido, uma viagem deitada, uma aventura de vida, um ser mais,
mais nada...

ciente...

Explicação 

O pensamento é triste; o amor, insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente:
guardo o resto para mais tarde.

Deus não fala comigo - e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce...
- espero a minha própria vinda.

(Navego pela memória
sem margens.

Alguém conta a minha história
E alguém mata os personagens.) 


Cecília Meireles

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Des-ti-lo




- Falta não é a palavra, eu chamaria de demanda. Existe no humano, ou ao menos em mim, uma demanda, diria imprescindível, por afetividade, relação profunda, carinho e cuidado...
- É uma boa forma de encarar... Nos livra dessa dependência de umx outrx que está além do alcance... Nos guardamos na nossa compreensão e na nossa própria autovivência...
- Na real, é uma questão de cansaço... sentir-se precisando do outro cansa. Só nós mesmos nos revigoramos. Só nosso estar próprio nos realimenta a paciência de existir. Cada instante em que deixamos de seguir-nos por um outro que não está aqui, é um instante de impaciência, de disparate, de despropósito.
- É como uma destilação de si mesmo. A cada instante, nos tornamos um ser mais concentrado de nós mesmos, acumulando-nos e depurando-nos, desfazendo-nos dos processos tóxicos, percorrendo serpentinas frias que evaporam tudo que for danoso.
- Justo.

Premonição


Sigo vagando pelo deserto
Fazendo minha própria sombra
E assoprando eu mesmo o vento
Sem tempo para perder
com ilusões esverdeadas
ou melhor,
sem paciência.

Agora próprio do deserto,
Intuição subterrânea de lençóis de água
Ando pés leves na areia livre
Abandonando os pesos na imensidão da vista.

Chá de esquecimento



Eu realmente me esqueço... Ou é isso que o inconsciente busca fazer...
 

(meu inconsciente e consciente fazem um trabalho colaborativo, na medida possível do diálogo obscuro entre eles)

É ter a sensação real de que parece que nunca aconteceu... É um sentir aquela memória, aquele passado tão distante no tempo que se torna ficção, ou melhor, se torna vácuo...

É uma forma de autocuidado, talvez, de autopreservação, de medida emergencial existencial para o bem-viver... Porque esse passado que nos impregna, que nos acomete quando não é chamado, que nos perturba, cheio de saudosismo, de pesar doído, de sensação de perda do que nunca tivemos, de crise de abstinência da presença que amamos e já não está mais aqui... tudo isso não é bem-viver... Então, por um período, afunda-se tudo isso, sem nem mesmo perceber, num breu de inexistência provocada.

Provoca-se, sim, a inexistência. Deixa de existir tudo o que foi, já que, afinal, não é mais.

(é assim que funciona o diálogo obscuro do consciente com o inconsciente: por diversas vezes os vícios mentais, espirituais, emocionais, nos afligem. Sentimos a tristeza pela alegria não renovada, pelo aconchego que se tornou distância, pelo amor que virou ausência. E repetidamente nos dizemos: pare com isso, esqueça, não importa, passou! Pense em outra coisa! Cansei! Ai, que saco! Pare! Até que, de repente, para. Some)

E, uma vez, estranhamente, ao rever a pessoa... nada vem. Desconhecida? Estranha? Aleatória? Não importa. Nem isso importa. Tudo perde por completo a importância, no que se refere a esta pessoa. Ela perde todo o peso em nós, vai-se em nós, assim como se foi, de fato.

É, como disse, um processo emergencial, imediato. Enquanto não estamos bem, enquanto estamos frágeis, enquanto cuidamos do que somos só conosco. Quando estamos bem de novo, renovados de amor, revividos de sentir, requeridos por outrxs, ou quando já faz tanto tempo que realmente nem nos reconhecemos naquela relação que se foi, o efeito do inexistir passa e podemos tranquilamente, sem dor nem pudor, relembrar, renarrar para nós tudo que foi, de bom, de alegre, de terno. Recriar e reviver a experiência única e significativa que esta pessoa nos representou. 


Que nem Kalu - Versos que compomos na Estrada

Imagem: Iris Scott