segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Esqueletos...


Um assassino cruel. Sem piedade, sem parcimônia. Não poupa nenhuma vítima, quer todas cinzas, todas passadas...

Matou os primeiros 24 demoradamente, com prazer, pois tudo era novo, eram só possibilidades, descobertas! 1440 dilacerou com gana, gula, emoção, rapidamente, com uma metralhadora! 86.400 já deu mais trabalho... Mas ainda jovem, perseguia-os, não escapava um. Depois de matar 2.592.000 vinte e uma vezes, pelo Diabo, está exausto. Quer férias! Gastou tudo que tinha, cada munição, cada dente, cada fôlego. Mas não! Não pode! Algo não o deixa, que será? Que merda! É preciso parar! Milhões, milhões! É uma calamidade! Não a morte, mas o cansaço! O tédio, a arrastar, a demora... Mas não, é preciso mais! 31 milhões e 104 mil vítimas indiferentes... em um período que parece longo, mas que a cada geração torna-se menor... É uma chacina enorme, é verdade, quanto trabalho! Sinte-se explorado por esses malditos que têm que matar...

E até hoje, desesperadamente sem aguentar mais tarefa tão insípida, tão sem graça, tão desagradavelmente insossa, pois os sentidos já não reagem a essa desmedida, é forçado a admitir que matou, sem paz, sem trégua, 653 milhões e 184 mil...

segundos...

canalhas...

desnudos...

e contando...

Milhões de segundos, minutos e horas... anos e décadas... mortos, no inferno! E intermináveis! Tempocidas, todos nós, pois tudo que fazemos é matar O TEMPO.

Distração


Sou um tipo insatisfeito? Melancólico? Triste?... A vida parece pálida e flácida?... Um tipo bêbado desde nascença? Que ri e conta piada como quem tá na lombra? Um tipo alucinógeno? Uma criança de 7 anos no corpo de jovem com espírito de 57 e um pé na cova?

Bem, descobri outro dia (eu e todo mundo) uma boa explicação para as coisas. Somos hoje uma sociedade fliperama, ou, como dizia Debord, Espetacular. Um mundo de pessoas superocupadas. Assassinamos o tempo para aprisionar a liberdade, contudo nos achamos cheios de escolhas e no melhor dos mundos livres. Isso porque o Sistema que reina hoje, o aprimoramento de doze milênios de dominação e poder, é supereficaz em nos manter ocupados, com os olhos ofuscados de luzes, os ouvidos surdos de plins plins e músicas pop, os sentidos perturbados com tantas e tantas sensações cópias e múltiplas, a mente ultraexalrida de spams, a invenção do século: lixo mental, masturbação mental, a indústria do entretenimento espetacular... programas de auditório e hollywood, celebridades e feriados, video-games e video-vidas, compras, compras e compras! Competir! Estudar! Concursar! Corrida pela sobrevivência, cavalos em busca do ponto de chegada! Ultrapotente-antidepressivos! Incessante rotina de trabalhos e compromissos! Filas, multidões, engarrafamentos! Megas, Gigas e Teras de informação inútil! Superinformação para nos entupir e afogar, enquanto as máquinas nos mantém artificialmente vivos, pois, em "condições normais", morreriamos com tanta tolice, superficialidade e banalidades enlatadas que somos obrigados a engolir.

Sim, é isso. A sociedade hoje é uma supermáquina de produzir drogas para nos matar e nos manter vivos ao mesmo tempo. Zumbis que perambulam pelos corredores dos shoppings aos sábados e voltam sossegados ao trabalho às segundas... vive-se para trabalhar e morrer! Que sina! Que explicação para o sofrimento e a miséria! Trabalhar e morrer! Máquinas-humanos, zumbis-TVs, Cartões-de-crédito-biológicos!

Supervaloriza-se a vida! Encobrem-na d'uma áura sagrada, põem-na em uma declaração de direitos, como uma bola de chumbo e corrente amarrada ao pé, um direito que teremos que carregar toda a existência, durante todos os momentos de tédio, ódio e frustração... Por quê?! Para que não nos matemos!... Diante de toda a insânia, estúpida existência, caótica e cruenta jornada (de trabalho) da vida... ainda querem que nos prolonguemos, sejamos longivos... 60, 70, 80 anos de trabalhos forçados...

Se as revoluções não mudaram este mundo, se as guerras não o destruíram, nem ao menos pode-se destruir a si, pois é pecado, é crime, é inaceitável! Moral! Princípios! Códigos! Regras! Cercados de todos os lados, material e simbólico, ideológico e subconsciente, somos bestas na roda de moer do sistema de geração de riqueza! Riqueza de poucos! Que a cada milênio aumenta e se concentra cada vez mais! Cada vez mais!!!

E o resultado é: A Loucura! A Violência! O Caos!

Uma sociedade profundamente doente, segregada, psicopata! Torturadamente rica, luxuriantemente miserável.
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Quando vês, realmente muito poucas coisas importam... de todas as distrações, entretenimentos, passa-mata-tempos. Tudo parece sem sabor porque a maior parte realmente não tem sabor... e o que tem? Onde está? O que tem sentido? Tão pouco... é preciso tão pouco para viver. A vida constitui-se, no fim, de tão poucos e essenciais sentimentos, ações, valores, símbolos, partes... Simples. Simples. Por que não ser simples? Uma sociedade prepotentemente dita "complexa"... para o bem de quem?

O que realmente nos distingue enquanto seres humanos é a criatividade e não a razão. A razão, o racional, prova-se todos os dias, é o dom da máquina, multiplicar, ampliar, velozmente fazer... mecânico, elétrico, morto, máquina. Nós, seres humanos, nos justificamos pela capacidade e possibilidade de criar - algo bom, algo novo, a vida e o mundo... Não criar monstruosos amontoados de concreto, mas sim o simples, o ínfimo, o pequeno, momento, expressão, forma de humanidade...

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Desfeito

E se o mundo acabasse?... Teria novamente aquela praia para caminhar?... único no mundo, uma alma de azul...O fim sempre parece eminente... já passou por nós tantas vezes... já acabou tantas vezes... Penso sempre que acabará novamente. Terei forças para ser? O que fazer no escuro? Por que persistir?... Minhas questões existenciais se extinguiram... hoje resta apenas um único beco sem saída. Muros altos demais para escalar... penso: e se olhar para trás? O que há?... sombras e sons esquecidos?... Mundos dissolvidos? Lembranças?... É preciso encontrar algo para ocupar o tempo diante deste muro... Uma colher para raspar-lhe um túnel... Fazer uma saída... Pixar uma canção... contar os tijolos que separam o ontem do amanhã... Enfim... não sei.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Doce e suculento


Um romance...
um amor de sorriso fácil...
um mergulhar na gargalhada
por prestar atenção
no barulho que faz
uma mordida de maçã

Uma cura para todo mal
Um chocolate mais gostoso que o normal
Meio amargo, com avelã e beijo
Um soninho cheio de edredon e bocejo
O estar mais surreal
O compartir sagrado
A vastidão da praia
de pele branquinha
e constelações carnais...

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Pra quê?

É incrível como é fácil empurrar a vida pra frente... viver sem pensar nela, sem querê-la, sem fazê-la... simplesmente deixá-la flutuando no tempo, até que murche e morra. Talvez esse seja o derradeiro suicídio, o mais profundo crime contra a humanidade... e quando digo isso, não me refiro ao aglomerado de carcaças humanas que lotam o mundo, mas a essência do que deveria ser esta criatura um tanto afoita e potente, diferente dos outros bichos...

Podemos fazer tanto, mas fazemos tão pouco. É incrível como ficamos prostrados diante de uma existência interamente indiferente, tanto faz como tanto fez, que não faz falta, que se sumisse, era até melhor. Como vivemos a vida inteira seguindo um impulso vil de sobrevivência... a pura sobrevivência é um crime, diante do potencial que é viver.

Lembro daqueles dois meninos molhados, sentados na amurada de pedra diante da maré cheia e volumosa, indo e vindo, chocando-se contra o paredão, explodindo em mil gotas e espumas, cuspindo sal deliciosamente refrescante naqueles dois moleques livres e soltos... Vai e vem - plash!! E sorrisos e olhos fechados e medo e alegria. E vai e vem - plash!!! Sensações fervilhando nas pontas dos nervos, na ponta do espírito... desgarrados do mundo, sem que alguém puxe-os para "um lugar seguro"... valendo a pena o segundo vivido e o ar respirado...

Penso que deveriam haver apenas duas opções: ou viver plenamente, tão furiosamente quanto o sol, explodindo seu potencial em ininterrupta luminosidade criativa e criadora ou... igualmente explodir em revolta, contra qualquer tentativa de impedir ou enclausurar o corpo e o espírito humanos, fogos incontroláveis...

Quando nos tornamos animais domésticos? Digo, animais de fazenda... que vivem para o trabalho simplesmente pelo prato que come, por um feno mais saboroso, por um estábulo mais confortável, por um sonho de ser o cavalo vencedor da corrida? Os animais domésticos são as celebridades, criaturas meramente decorativas, que existem para a distração e dispersão dos demais... e que vivem às custas dos demais... soberanos e escravos mutuamente...

Uma música - Tempo Perdido - Legião Urbana

Outra música - I can't spleep in silence - Skins

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Navegar


"Existirmos, a que será que se destina?"... Eis uma pergunta crucial e cruciante. Qual o fim que essa pergunta leva? Você é capaz de chegar lá?... Vez por outra pergunto à alguém "qual o sentido da vida?" e parece uma piada. É uma piada? Qual a sua resposta? Você já se fez essa pergunta? E se não, como viver dia após dia? E se sim, como viver dia após dia?... É difícil encontrar uma resposta consistente... em geral, pego-os na surpresa. Talvez se o IBGE incluisse esse item no censo, quem sabe que resultados não teríamos. Certamente a boa e velha resposta cristã da família, do emprego, dos filhos, sirvam para solucionar nossos problemas diante de uma pergunta inesperada e despropositada. Quanta insolência! Perguntar de uma mulher a idade, quero dizer, perguntar à uma pessoa o sentido.

Eduardo Galeano ante a pergunta: Para que servem as utopias? A resposta: "Servem para caminhar". Como um horizonte, que a cada passo que se aproxima, se distancia, como uma delícia amarrada em uma vara e presa às costas, que quanto mais buscamos, sempre se afasta, e assim seguimos puxando a carroça, a vida, feita em esperanças, no por-vir, no potencial amanhã, justifica-se a si mesma. E assim, fugimos a perguntas mais difíceis. Fernando Pessoa disse "Navegar é preciso, viver não é preciso". Paradoxal em aparência, substancial, na inconsciência. Não tendo razão para viver, vagamos. Seja pelas terras ou pelos canais, pela rua ou pela vitrine, pela aventura ou pela moda, vagamos... Sem razão, sem rumo, sem propósito. Encontramos algo para o qual nos inclinamos e nos deixamos cair ladeira abaixo e chamamos realização... Qual o propósito?
Veja bem... viver não é preciso, pois nem sequer faz sentido. Veja bem, tomamos uma bebida cheia de químicos, enquanto comemos conservantes vitaminados, olhando para um tubo brilhante, conectados por cabos luminosos, máquinas, máquinas, máquinas... que servem para? Nada. Serve, em grande medida, para elevar-nos, para dar-nos a sensação de superioridade e tal sensação, assim, justifica a vida... É isso? Vive-se para viver uns sobre os outros? Mais bonito, mais rico, mais inteligente do que o outro? Ou então, trabalha-se arduamente para obter conforto... hm. Faz sentido, o desconforto justificado pelo conforto, horas a mais de trabalho, horas livres dedicadas, estresse e saúde esgotadas, muitos trabalhando para poucos, por um sofá, uma poltrona de couro, um queijo de cento e cinquenta dinheiros o quilo, um vestido de três mil dinheiros, uma tv de quator mil dinheiros e um carro de trezentos mil dinheiros? Hm, uma boa razão para viver. Ou então vive-se para expressar. Expressar a razão de viver, ou a desrazão de viver, ou a psicodelia alcólica, lisérgica, fumegante... ou qualquer elemento... simplesmente, justificando... n'um círculo, um cão mordendo a cauda... A vida... Assim, sem sentido, seguindo... "Viver não é preciso"... navegar à deriva...

Uma música - Cajuína - versão Cibelle

Uma música - Ausência praia - Antonio Pinto

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Vô não!

Tem dia que eu me entrincheiro e digo - vô durmi não! (foda-se (o) amanhã)

Uma música - T'es Beau - Pauline Croze

Solte...


Não, você não nasceu plantado, fixo, alojado, enjaulado... não, você não nasceu assim... lá, muito muito tempo antes de você saber-se nascido, tu eras um grãozinho velejando no vento... era um pardal afoito, uma vela escura tremulando na maresia, um toco de madeira n'um mar incerto, um par de pés saltitantes e sempre em frente... ah, sim, era você que a todo canto ia... e nada te prendia, nada te fazia ficar, parar, deixar o caminho. Você não tem essa cara de hoje, esse olhar de pedra, esses pés de lodo, você era um cavalo selvagem, um lobo da floresta, um esquilo furtivo, a raposa astuta, a coruja e a noite, a mariposa e a folha caída, levando a vida a outros e outros... O movimento, o catavento, o sopro, o relento... era você e todos nós...

Uma valsa cigana - Malinkovec Valzer - Maxmaber Orkestar

Muitas caras na mesma canção - 500 pessoas em 100 segundos

Tic-Tac-Tic-Tac


Maldita bolsa pesada! Ai, como odiava. Mas também não poderia sair na rua sem ela. Como as pessoas conseguem passar sem agenda, caderno, textos, marca página, câmera, livros, escova de dentes, tudo ao alcance da mão? Impossível. E ainda dizem que o impossível não acontece... Pois é. Estava na rua, mas nunca sozinho (lembra da bolsa?), indo para qualquer lugar. Resolver algo. Difícil é não ter nada para fazer. Fosse cobrir alguma matéria, uma reunião, consertar alguma maldita coisa quebrada, sempre em movimento... Dá nos nervos, sabe? Não parar quieto. E quando pára, faz qualquer coisa que o tempo passa tão rápido que parece que não parou... Quando foi a última vez que o tempo passou devagar?... Hmmm... olhando p'rum lado e pr'outro, puxando da memória. Lembro de uma vez que alguém riu porque disse "a última vez que tive tempo livre foi em 2007". O apocalipse bem que poderia chegar logo... aí sim o tempo nasceria novamente, todo o tempo do mundo. O mundo tem muito tempo, ele sim. Inveja... qualquer coisa pra ele e milhões de anos passaram... Ele não... fugir é quase impossível... seria preciso fingir um suicídio para se livrar de tudo e poder, enfim, andar pela praia como se nada esperasse para ser feito... simplesmente livre. A liberdade é irmã do ócio e filha da angústia, sobrinha da ansiedade. Puta ansiedade quando está ociosamente livre, puta angústia quando não se tem tempo para nada. O Zen nos ensina como encontrar o equilíbrio, passar por todas essas bobagens da vida como se estivesse no alto de uma montanha onde reina a paz. É, é lindo de se imaginar... O último presente que ganhei, e diga-se de passagem, um dos mais úteis, e requisitado por mim, foi um relógio despertador. De preferência, e foi o caso, daqueles com dois sininhos no alto que tocam desembestados quando desperta! Barulho infernal! Para ver se acorda cedo da insônia e meter-se na correria de fazer algo de útil. Mas não se lembrou que com ele vinha de brinde aquele barulhinho de relógio, tic-tac-tic-tac infinito. Lembra a infância, aquele imenso relógio de madeira na casa da avó que badalava fantasmagórico à meia noite doze badaladas metálicas e fazia o mesmo tic-tac-tic-tac. Me parece também o relógio do apocalipse, como se o tempo do mundo naquela ampulheta gigante estivesse cada vez mais próximo... me lembra ainda um vídeo do greenpeace que não deixa de ser apocalíptico, mostrando como as florestas tropicais estão sendo motoserradas enquanto a insônica come nossos nervos e como os oceanos estão sendo pescados predatoriamente e o mundo se tornando uma imensa bomba nuclear. 2012 está aí, viva! Enfim, de um lado para o outro, tentando encontrar sentidos e significados para as coisas, ele segue postergando aquela data. Oh, data esquisita, que não sabe se um dia chega ou se de uma hora pra outra, sem ninguém esperar, vai lá e boom! É, aquela data de ir-se, só não sabe se desse mundo ou dessa cidade, país, etc... Sequestrá-las durante a noite, fazer umas malas bem rápidas, e mandar brasa n'uma arrumação estranha de cigano pós-contemporâneo. E talvez viajar um pouco no tempo. Encontrar aquelas partes da terra que estão séculos na frente e aquelas que estão séculos atrás... e vice-versa... investigar. Interessante deve ser viver cada dia tendo que descobrir como descolar o dia seguinte. A liberdade é inimiga da estabilidade. Estabilidade pede muitos sacrifícios e o primeiro é a liberdade... atualmente, a religião da burguesia é a estabilidade... se tornaram socialistas sem saber, todos loucos pelo sonho do emprego pleno, estável, vitalício. O que é mais parecido com mais-do-mesmo o resto da vida? Minhocas e 7 palmos de chão. Putz, melhor morrer, né? E é isso que eles querem... como? O mundo é uma trilha enorme a se percorrer... porque a humanidade não peregrina até descobrir a razão e a emoção da existência? Era uma boa... foda seria o trânsito, com 6 bi de nômades... acho que o mundo parava de rodar, com tanta gente rodando... MAS, logo logo essa gente toda diminuia de quantidade... andando por aí, ter filhos demais não seria uma boa política, acho... É... o calendário zen tá ali na janela. Um dia ele se abre e eu me jogo.

Uma Música - I don't wanna fall in love - She Wants Revenge

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Terra

A imensa árvore não escapa do cupim.
A vida não escapa de si.

Contos vindos do nada (I) - parte II


Aquele cheiro a levou subtamente para sua infância, quando, em sua primeira casa, sua mãe fazia pães caseiros aos domingos, quentinhos, fofinhos, dourados, com fina camada de grãos de açúcar... Essa visão aqueceu o corpo como uma lareira n´uma noite de inverno, em algum lugar onde de fato tenha inverno (frio). Ela parou, concentrando-se na sensação.
- Venha, não chegamos ainda. É mais pra frente. - Disse o rapaz, aproveitando a oportunidade para segurar-lhe a mão.
- Ah, está bem. Estou indo.
Percorreram a pequena rua, estreita demais para passar um carro. Ali brincavam, seguras, crianças de bolinha de gude, pular corda e amarelinha. Uniformes escolares secavam em varais estendidos na rua, pois as casas eram pequenas demais e a rua era uma extensão das casas de todos. Dobraram a esquerda em outro beco, cruzaram com uma bicicleta azul com cestinha e fitas, sobre a qual uma menina pedalava, trazendo as compras da semana. Saíram n´uma clareira urbana, um campinho de futebol rodeado por casas e três árvores diferentes.
- É por ali. - Disse o rapaz.
Ainda de mãos dadas, ele a conduzia para qualquer lugar. Para ela, era uma descoberta dos detalhes daquela cidade... bairro... comunidade... pessoas... Ladeando o campo, onde acontecia a final de um campeonato de meninos de rua, entraram em outra rua e percorreram rapidamente um ligeiro labirinto de ruelas, chegando finalmente à outra pracinha onde quatro árvores enormes garantiam uma sombra fresca, uma abóbada natural. A praça era no limite da terra, de onde descia uma colina. Podia-se ver ao longe, a cidade lá em baixo, a serra no horizonte. N´um dos galhos das árvores majestosas, havia um balanço improvisado, de cordas e tábua de madeira. N´um outro canto tinha uma cigarreira.
- Estás com sede? Adoro tomar o suco de maçã com tangerina que tem ali. Vamos? Eu pago.
Sem dizer nada, ela o seguiu. Ainda olhava a vista, as árvores, as coisas.
- Olá mocinho. Nunca mais tinha lhe visto. Pensei que estivesse esquecido de mim - Disse a senhora que cuidava da cigarreira. - O de sempre?
- Com certeza! Dois, por favor. Caprichados.
A senhora sorriu, aquele sorriso mais que um simples sorriso, como uma insinuação, uma troça, achando graça do casal imaginário que via.
- Ah, e me vê aquele pastel de presunto e gorgonzola especial também. - E virando-se pra garota - Você vai amar o pastel da Dona Amélia. É fodástico...
A menina esboçou um sorriso tímido, mas permanecia calada. Quando a senhora entregou os sucos e o pastel, foram sentar-se n´um banquinho.
- Então, o que achas? - Ele perguntou.
- É realmente muito gostoso. - Disse ela, ainda mastigando.
- Não, estou perguntando daqui da praça.
- Ah, muito lindo. Obrigado por me trazer aqui. Eu nunca encontraria sozinha, depois daquelas curvas e ruazinhas. Na verdade, acho que nem sei voltar.
- Não se preocupe, eu te levo de volta. Mas não agora... né? Você já quer ir embora?
- De jeito nenhum... está ótimo aqui...
Fez-se um momento de silêncio... Um silêncio quase natural, transpassado apenas pela ansiedade do menino. Ele sentia algo estranho na boca do estômago, como se uma emoção estivesse prestes a pular de dentro dele... Era à tardinha e o sol ia se pondo, entre as nuvens cheias, pintadas de mel e calda caseira de morango...
- Eu lembro que um dos muitos lugares em que já morei era uma cidadezinha na serra e um dia, andando pela cidade ao léu, encontrei um lugar bem esquecido, mas que tinha uma vista maravilhosa das colinas, do horizonte, do além do longe... e eu gostava de passar tardes inteiras ali, sozinha, olhando... observando a brisa, a luz, as gotinhas de chuva que hora caíam, os passarinhos...
Enquanto ela falava, ele observava sua boca com tanta atenção que estava quase a tocando com o olhar... Quando percebia sua atitude, desviava o olhar, dava uma mordida no pastel disfarçadamente, mas ela nem notava, tão absorvida na paisagem e na imagem que tinha na mente daqueles tempos idos...
- Muitos lugares em que já morou? Como assim?
- Ah, é porque eu vivo me mudando. Quero dizer, meus pais... e eu vou no meio... Nunca passamos mais que um ano n'um lugar... - disse as últimas palavras de maneira quase inaudível, como se uma pequena bolinha de tristeza tivesse apertado os sons finais...
- Um ano?! Mas, faz quanto tempo que você chegou?
- Poucas semanas... Três, na verdade... e veja só! Já conheci esse lugar maravilhoso! Graças a você!! - disse isso de maneira entusiástica, dando-o um abraço ao redor do pescoço que quase o asfixiou... não porque ela o tenha machucado, mas porque o ar lhe fugiu de tamanha surpresa e emoção. Seu rosto corou e ele ficou envergonhado com o gesto de afeto tão espontâneo, mas não esboçou nem uma mínima resistência... Rapidamente ela desenlaçou-o e pegou novamente o pastel que tinha pousado no colo. Deu antes o primeiro gole de suco, disse pra ele que estava muito gostoso e depois fez silêncio... mordiscando o pastel, para demorar o máximo possível para acabar... Ela estava sentindo uma sensação tão inesperadamente gostosa em estar ali que quase sem perceber queria prolongar ao máximo o pôr-do-sol, o suco, o sabor de queijo e a presença praticamente desconhecida... não conseguiu dizer mais nada... e ele não queria tocar no silêncio... ficaram apenas observando... contemplando a serena jornada do sol até seu fenecimento diário... Quando acordaram do sonho, viram que era melhor irem embora, pois por ali à noite podia não ser tão acolhedor quanto de dia... perceberam que os sucos e pastéis estavam quase intocados e tiveram que engoli-los rapidamente, aproveitando apressadamente do sabor... e foram correndo de volta para a pracinha... Ele segurava na mão dela que se deixava levar... até estarem novamente em frente ao banquinho.
- Eu moro ali.
- Eu sei.
- Quer subir?
- Não, obrigado. É melhor ir para casa... Gostei muito do passeio, do lugar pra onde você me levou. Foi muito especial - Dizendo isso, ela rapidamente se aproximou, ficou nas pontas dos pés e deu-lhe um beijo na bochecha, quase encostando na boca.

(Parte I aqui)

Há muito


Concentre-se na música. Instrumental. Como a vida. Sem palavras, para não haver desentendimentos. O ritmo contínuo, renovando-se ininterruptamente todas as horas, o inspirar e expirar... Tente dormir e manter-se lúcido. Nevegue nos pensamentos expontâneos... Feche os olhos, ponha um lençol sobre eles... não mexa o corpo... abandone-o por um momento... Relaxe... Sinta o vento calmo do ventilador... Desconstrua-se. O que é sonhar? Qual o seu sonho? O vazio, o vácuo... o não... o fora...



Escrito no dia 01 do 12 de 2010...

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Manifesto Quebrapernalista Panexistencial


Quebra da Arte. A Arte da quebra.

Derrube tudo. Dar uma rasteira é a maior obra. Não deixe nada de pé!

Nada é real... desmanche a farsa! A verdade é uma mentira... Desminta!

Proponho uma Arte que não aceite. Nada!

A única certeza é que não há certeza sobre nada. Antes de falar, já não é... Antes de pensar, já não é... Antes de ser, já não é...

O que somos não é o que somos... O refugo de mitos institucionais, as ficções vomitadas que nos dizem o mundo, a bosta da civilização (sua essência): quebre!

Jogue das prateleiras da história e do pensamento todos os ícones, conceitos, coisas, instituições, formas, espaços, explicações... O que sobrar, atire pela janela do vazio!

Como uma criança, não deixe nada de pé, inteiro, incólume. Pedra sobre pedra.

Uma Arte da transformação, da mudança, da insurreição...

Instável. Desestabilize as bases, rache-as, trinque-as, sabote-as... um terremoto de imprecisões e impercepções. É preciso parar de acreditar: destroçar o que sustenta o espírito, a individualidade, o coletivo, o preciso. É preciso destruir a ordem que mantém o sistema.

Quebre as pernas! Fique sem chão, teto, três dimensões... pule no vazio.

Respire e sorva vazio. A solidez derreteu... a verdade ruiu... o castelo foi tomado pelos bárbaros. O império caiu. Caia! E leve tudo com você... Pedra, sobre pedra...

A existência dará lugar a não-existência: não há diferença entre vida e morte. Tudo é fluxo. Nunca para. Destrua o medo que segura a multidão (e você)... Destrua a perda que amarra as forças... Sem o medo da perda, o opressão não se sustenta.

Uma Arte para que ninguém aceite.

Faça, ao invés de aceitar o que fizeram para você...

Construa, ao invés de comprar pronto...

Não-Seja, antes que lhe digam o ser...

Lhe disseram que o mundo é este. Porra nenhuma... o mundo não existe ainda, espera pela quebra das macro ilusões, das intro ilusões, das pan ilusões...

Não acredite no ilusionista. Faça seus próprios truques... crie sua própria mágica, sua própria fantasia... sua própria essência ficcional...

Destrua a mentira que conecta: destrua a instituição “verdade”

Toda verdade é uma forma de dominação.

Puxe os fios, morda as amarras, dinamite as fundações... Só o que restará é o talo da planta, a seiva, a polpa...

Da humanidade, não deixe pedra sobre pedra...

O que chamamos de Humanidade é uma abstração hedionda baseada no esmagamento de nossos crânios por uma parcela minúscula da megapopulação de humanos.

Não existe Humanidade. Existe os que mandam e os que obedecem... DESOBEDEÇA.

Desobedeça a ordem e a autoridade dentro de você.

O autoritarismo e a desigualdade há dentro de você, nas concepções e conceitos que você tem de si e da existência. Quebre o abstrato substrato da defecação da qual nasceu. A hierarquia é um trono de mentira que espera ser queimado.

Balance as cadeiras sobre as quais repousam os mandatários: a partir de hoje, não falam mais nada. Não se fala mais nisso.

Por uma Arte que quebre...

Do pó, nasce a panexistência.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Te


Uma praça vazia...
Um caminhar sem chão...

O calor e o frio
Seguro tua mão
branca de pluma
Sai voando
o meu coração...
.
Uma folha de papel
rabiscada e azul
E burburinho tristonho
Do cálido
mar
O som do piano
marinho e salgado

Uma voz cantando
baixinho e molhado

Uma saudade de carinho
Uns desejos, bem-amar

O pé e a areia arrastando

as gotas de chuva e prazer

O vento gelado e feliz
A calma, a paz, a dor

A luz, a chama, o amor
...
.
Algo assim, sensações...
Mil cores de emoções
Uma canção em dois mundos

Dois tão bom e tão juntos...

.
Duas músicas - Te valorizo e Te mereço
- Tiê

terça-feira, 14 de junho de 2011

********

Ah, palavrões... as palavras mais importantes da língua. No mundo social, consciente e revolucionário considera-se da maior importância defender as minorias perseguidas... nas línguas, os palavrões são as minorias perseguidas! E precisamos defendê-los! Não faz o menor sentido eles serem relegados aos guetos da linguagem, aos momentos de ira, aos sujeitos considerados baixos e vis... A língua culta é uma língua de cu se não considera que o verbo mais importante é fuder, porque tudo é foda, e assim sucessivamente. Outro dia vibrei quando estava lendo um livro infantil que comprei para meu irmão e lá, no meio daquele livro infantil, bonito, inspirador, cherokee, o vovó vai e fala "aquele filho-da-puta!"... Caralho, eu vibrei! Vibrei com a visão de um livro infantil que não tem pudor nem moralismos idiotas e manda um belo palavrão no lugar certo na hora certa! E ri MUITO imaginando o momento em que o pai e o filho estiverem lendo e se depararem com a pérola, a obra prima de todas as linguagens, aquele palavrão um tanto machista, mas, enfim, necessário! Já tentei substituir por filho-de-um-caralho, mas não pegou... talvez um dia pegue... vamos ver... Enfim, em todas as línguas, o que mais importa aprender são os palavrões... fuck, sheise, cabron, carajo, a porra toda... É assim que descobrimos realmente como nos expressar, como ir ao âmago da existência, como traduzir para o mundo o que se passa em todos os planos de nossas vidas...

terça-feira, 17 de maio de 2011

Auto+idade

"Disciplina é liberdade" (Legião)
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Soa paradoxal, mas, por diversas experiências, tal frase sempre permaneceu como sugestiva inquietação. A disciplina soa rígida, inflexível, autoritária... e a liberdade... o inverso. Que jogo de palavras contraditório e ao mesmo tempo chamativo é esse? Como os dois extremos poderiam estar relacionados de maneira tão íntima?
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Acontece que a autoridade desta disciplina segue outro rumo. Não se trata de autoridade de um sobre outro, o que é inadimissível, mas a autoridade de um sobre si mesmo, o que parece razoável... Há tempos atrás sugeri uma origem ficcional para a palavra autoridade. Inferi a seguinte construção: Auto + Idade. Auto, do sentido de "próprio", "si mesmo", "Eu"... Auto+idade = Idade de Si mesmo, ou seja, quando se alcança a "Autoridade", é o momento em que temos, enfim, a sabedoria e a soberania sobre si mesmo... E esse exercício constante passa pela disciplina, que seria a fluente consciência e responsabilidade sobre os próprios atos, comportamentos, hábitos, rotinas, saúde espiritual, mental e corporal.
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Há anos eu tento...

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Exemplo mais recente... O sono. Não consigo ter disciplina em minha rotina de sono. Um dia dorme-se cedo, outro excessivamente tarde, outro, muito cansado, dorme-se cedo, dois ou três dias dormindo medianamente tarde, aproveitando a noite para ler, escrever, vontades que surgem... etc. etc. Extrema insconstância que resulta em muita dificuldade em acordar dias de segunda feira e dificuldade média a alta nos dias normais. Há tempos que almejo conseguir manter uma disciplina de sono que me dê animo de modo constante durante o dia... pois o cansaço é altamente depressivo e desanimador... E não consigo.... Agora, por exemplo, é madrugada... fui dormir de 21h30 e, desgraçadamente, acordei às 23h30 e passou o sono. Já li por hora e meia e nada... e o jeito é desistir por mais um dia da tal disciplina...
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E percebo que a gestão do sono é basilar para as demais áreas de existência... as vontades, desejos, iniciativas, sonhos, todos ficam muito prejudicadas pela constante depressão de um corpo com sono... na sonolência não conseguimos pensar nem produzir... e por mais que os picos de adrenalina ajudem a superar momentaneamente essa dificuldade, de tempos em tempos (a intervalos cada vez menores) a exaustão acaba sabotando os esforços... O antigo romantismo da insônia, então, surge como uma droga de poderoso efeito depressivo na manhã seguinte...
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A disciplina, assim, torna-se um meio para o equilíbrio. É preciso, como um barqueiro, estar sempre puxando das pontas da vela, controlando os ímpetos do vento, a estabilidade do casco, a velocidade possível de modo que não afunde, a sabedoria em contornar as ondas mais fortes, maiores, mais perigosas... "Navegar é preciso, viver não é preciso"... e sem disciplina, o mar nos mata sem piedade... e com toda razão.

terça-feira, 10 de maio de 2011

"Ninguém que explique e ninguém que não entenda..."


Orfão antes da morte

Todos suicídios...

Ou auto-homicídios
Assassinado, ainda que vivo,
Exilado pelos parentes destruídos
Livre, ainda que sem abrigo
A independência pressupõe o risco
De não ter para onde ir
Em caso de incêndio...

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Há dois tipos de "bandeide": o que não cola; e o que não sai...



Ainda dói bastante. Mas eu não sei se a dor diminuiu ou eu me acostumei com ela. Para mim, posso considerar uma das maiores dores que já senti. Impossibilitado de beber, comer, dormir ou até mesmo pensar, essa maldita dor me colocou em xeque porque diabos vivemos com tamanho potencial para a dor? Que bela saco de merda de gambá, hein! Tá certo que é maravilhoso toda nossa capacidade de sentir prazer, com incontáveis caminhos e labirintos a serem percorridos rumo a novos e deleitosos êxtases, mas, de quem foi a idéia de, no extremo oposto, termos a igual ou superior capacidade, tendência ou destino de sentirmos dor, variada, diversificada, insistente e desgraçada dor!?! Rememorando minhas maiores dores, lembro vagamente das centenas de luas que passei em claro, enforcado pela maldita asma que me afogava em meu suor, gemendo, gritando e chorando por um pouco de ar para este maldito corpo que carrego. Lembro do murro que dei na parede e que quebrou minha mão. Não doeu tanto assim, na verdade, foi até prazeroso. Lembro das quatro ou cinco cauterizações (leia-se, queimar com ferro quente eletrificado a carne humana) que tive que fazer para tentar extirpar desse maldito corpo que carrego as malditas verrugas que insistiam em ter nos meus dedos o maior boom imobiliário do último século. Dessa aventura quase sai sem dedos. Lembro de uma cauterização em especial, em que a maldita médica deve ter queimado fundo demais, o maldito anestésico não durou o suficiente e durante a noite comecei a sentir uma dor cruciante, incontrolável, invencível, que impossibilitava qualquer ser vivente de conseguir dormir, ou até mesmo de existir, e da tentativa idiota de apaziguar a dor com duas dozes quase seguidas de analgésico que, por coincidência, também era antitérmico, o que fez baixar minha pressão imediatamente e me causou um incômodo e relâmpago desmaio. Ah, voltando mais no meu recatado histórico de dores dolorosamente marcantes, lembro da mesa da inquisição espanhola misturada com os calabouços da didatura brasileira, misturado com os campos de concentração nazista, que consistiu em ter que arrancar com um alicate desproporcionalmente grande cerca de quatro ou seis dentes muito bem instalados em minha boca. Não me lembro ao certo se o sujeito que foi capaz de fazer isso com uma criança de cerca de oito ou dez anos era descendente de Sérgio Fleury ou Josef Mengele. Mas ouso dizer que, com grandes chances probabilísticas cabalísticas pós-metafísicas, todo dentista foi, em outra vida, um torturador que escapou da condenação celestial de nunca mais encarnar enquanto a eternidade durar. Ah, e não posso deixar escapar as injeções penetradas na gengiva sob o pretexto paradoxal de "anestesia local". Nem todo o sorvete do mundo que tomei na época foram capazes de apagar esse pesadelo. E, resumindo a história, pois tenho a tendência de apagar a maioria das más recordações, nos últimos três dias experimentei mais um marco histórico da dor universal. A mais odiosa inflamação putrefação dilaceração da garganta que se tem notícia. Em pouco mais de 48 horas, um bando de bactérias filhas de um caralho filho da puta instalaram-se no hall da minha boca, horizonte do céu bucal, e resolveram detonar geral! A mais subversiva ação de sabotagem que o mundo unicelular/microbiótico autônomo conheceu. Como relatei anteriormente, eles cortaram todos os meus canais de entrada, escape e suprimento de fundos e reservas. Se instalaram na entrada principal do maldito corpo que carrego e puseram a placa FECHADO até segunda ordem do general da FBI (Fudidas Bactérias do Inferno). PUTAQUEABORTOU, a cada hora o natural e sublime ato de engolir se tornava uma dor lancinante, o que me impedia a cada segundo mais de beber e comer qualquer coisa, e até mesmo de pensar, pois cada pensamento era automaticamente associado à engolida (de farpas) da vez, e a simples associação - pensar-dor, existir-dor, qualquercoisa-dor, coibe qualquer ser errante de se atrever a fazê-lo. Cheguei ao cúmulo, no ápice da loucura, a desistir ou ao mesmo tentar não mais engolir. Cortar esse processo fisiológico da minha prática habitual. Para isso, era preciso dar um outro fim à saliva, ao catarro e ao muco fartamente produzidos pela FBI. E o jeito era lançá-la ao mar pela porta de entrada. No climax da agonia cheguei a levantar a hipótese de câncer de boca, dada as singulares circunstâncias em que se estava dando a dita inflamação-rebelião bacteriana. E seguidamente a esta hipótese, as mais dramáticas soluções foram conjecturadas. Não desejo relatá-las. Enfim... após uma longa manhã de suplício no hospital, foram identificados os elementos subversivos e receitada a equipe tática antibiótica capaz de expulsá-los de uma vez por todas deste território tão querido que é minha boca. E, para compensar todos os males, ganhei dois dias de atestado que regarei com quatro ou cinco filmes deliciosos, vadios, vagabundos e ensolarados (mesmo que o céu lá fora esteja chuvendo), já que não há nada melhor na vida de assalariado do que estar em casa n'uma quarta-feira à tarde.

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Para concluir, julgo excessivas todas as minhas metáforas vaidosas e egocêntricas referentes à minha dor. Tenho certeza que mesmo que eu arrancasse todos os dentes, queimasse todos os dedos e infectasse da boca até o reto, meu sofrimento não se igualaria ao do rapaz aí da imagem. E os anjos escrotos ainda vêm rir da cara de horror do cara.

domingo, 1 de maio de 2011

Você é Homem ou Mulher?

Sim. E não.



Que outra resposta pode ser dada? Sou homem? Sou mulher? Seria pedir demais que alguém ficasse reduzido à conceitos tão superficiais, insuficientes para abranger a complexidade da existência. Somos mais, somos tudo. Somos homens, mulheres, crianças, velhos, hermafroditas, loucos, psicóticos, solitários, extrovertidos, revolucionários, conservadores, retardados, progressivos, pós-contemporâneos, caralho de asa! E mais muito mais... E não somos nada disso, pois "isso" são apenas palavras, e não somos palavras. Se fóssemos, não teríamos carne e osso e emoções, mas páginas, píxels ou qualquer suporte simplista para perdurar idéias (cd, dvd, blue-ray, hd, papiro, diabo-a-quatro)....

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Somos tudo. Sou e você é. E tal conclusão pode levar à uma certa sensação de "nada"... Porque, se não podemos nos enclausurar n'uma certa quantidade limitada de conceitos, esteriótipos e formatações sociais que nos permita produzir algo chamado "identidade", acho que a maioria iria pirar, gargalhar ou simplesmente desconsiderar. A construção da identidade, da individualidade e da separação psico-social da unidade coletiva é um fenômeno essencial para a sociedade de classes, pois, se estamos uns pisando nos outros, eu não posso ser o mesmo que aquele em que piso, ou aquele que me pisa não pode ser eu mesmo, e vice-versa e assim sucessivamente. É uma questão de "lógica". E, sendo assim, nos denominamos homem OU mulher, profissão TAL, caráter ESSE, pensamentos AQUELES, sonhos ÚNICOS. E mais um monte de blahblah pré-moldado em alguma fábrica de conceitos prontos para viagem. Quentinhos, aconchegantes, saborosos, já no ponto para levarmos para casa, comermos, sermos abduzidos por eles e nos tornamos alguém inteiramente original, livre e com personalidade! Veja só, que magia! E, se, por alguma coincidência temos as mesmas preferências de uma infinitude de milhões de outras pessoas, isso não prova que sou igual a elas, mas que elas estão no caminho certo, pois pensam como eu. Porque o EU veio primeiro, segundo dizem... cada um a sua maneira. Mas, voltando ao assunto principal... não é difícil perceber que, desconsiderando esse invólucro tão fenomenal que chamamos corpo, esse objeto dotado de infinitas possiblidades de sentir prazer inimaginável e dor inigualável, desconsiderando isso, temos tantas características masculinas, femininas, infantis e senis, 'adultas' e 'jovens' quanto poderíamos desejar. Voltando ao primeiro assunto, para garantirmos a integridade de nossa "identidade", somos forçados a reprimir uma enormidade de faculdades criativas, relacionais, humanas, subjetivas, emocionais, transformadoras, belas, simplesmente para nos mantermos calmos e seguros diante de quem nós "somos". E todas essas características não são isoladas, atuando em diversos momentos individualmente em momentos específicos de nossas vidas, mas são um todo, complexo, fantástico, transcendental. É triste reduzirmos tudo a rótulos, a palavras, a tentativas frustradas de explicação. Já infinitas vezes foi provado que as palavras são totalmente insuficientes para expressar o que quer que seja. Se não fosse pela complementação de nossa imaginação, da projeção de nossa própria experiência social e reflexões pessoais, as palavras não nos diriam nada, porque, em essência, elas não são nada. Sendo assim, feminino, masculino, jovem, velho, são termos meramente ilustrativos para realidades muito mais amplas, profundas e deliciosas... Descartemos isso tudo, e voltemos à pergunta: Você é Homem ou Mulher? E a resposta é Porra Nenhuma. Que diabos! Quanta perda de tempo em tentar definir em conceitos o pôr-do-sol, a via-láctea, o prazer de tocar alguém querido, sentir um sabor sentimental. Que perda de tempo em tentar definir "quem somos", "o que somos". No dia em que finalmente conseguíssemos, estaríamos MORTOS, pois teriam esquertejado nossa possibilidade de negar tudo o que encontramos, resolver fazer tudo diferente, mudar, transformar, mandar tudo ao inferno, e assim seguir a vida...



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Putz, de onde viemos? Da porra que encontrou com um óvulo! Que dificuldade tem nisso? Para onde vamos? Novamente para a porra e o óvulo que, felizes para sempre, constituirão nossos infinitos corpos futuros, passados e presentes, em infinitas dimensões de espaço-tempo simultâneas e consecutivas... Fine! End! Fim! Início, meio, flashback e tudo junto misturado... E, se queres um conselho, exploda. E entre suas partes gosmentas, tripas, ossos, fragmentos cerebrais, espalhadas pelas paredes, talvez você encontre os trechos da sua personalidade tão egocentricamente lapidada ao longos dos anos...

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Fóssil

Já teve uma relação muito íntima com a dor. A necessidade de senti-la. E o hábito de provocá-la, criá-la, com as mãos, em suas mãos... Após séculos de repressão, de reclusão, de aperto dentro dos seus limites corpóreos-espirituais, chegou ao ponto de massa crítica, em que a energia agressiva que havia e que nunca tivera uma forma de existir, fluir, gastar-se, descobriu um meio, uma brecha, uma saída... É assim que surge a violência. O desejo de destruir, de ferir, de doer... Pura energia envelhecida, azedada, que passou longo período corroendo o barril fraco que a contém, até estourá-lo, transformada em algo ruim, venenoso e ácido. Violento, batia em quem o tocasse, mexesse com ele, ousasse provocar. E a violência era tão séria, firme e decidida, que não pensavam ser uma brincadeira, fingida... Era real, queimava quem tocasse. No entanto, não tinha motivos nem propensão a agredir o mundo externo... Sentia que seu ódio voltava-se contra o interior, contra a masmorra fétida em que passara tantos anos, aquelas pedras asquerosamente cobertas de musgo, umidade doentia, tristeza sem dó. Queria destruir tal estado de espírito interior, rasgar as correntes de sua alma e só, sem mais... Armava-se, então. Afiava os ossos das mãos como facas, esmurrando paredes, madeiras e pedras para modelar os punhos. Lembrava-se da história de que os ossos reconstróem-se diariamente, reforçando-se onde são mais cobrados, aperfeiçoando-se a estrutura vital. Desta forma mantinha as mãos sempre em agonia, para que a dor curasse a si mesma, doendo até não mais doer... E, nessa histeria insana de ira, cultivava uma fantasia, um extremo exemplo de sua loucura viceral, chegar, enfim, ao limite de sua dor, ao quebrar o osso forte, romper sua resistência, despedaçar a parede óssea de sua prisão. E naquela manhã de domingo, quando viu-se novamente acorrentando diante de seus desejos, seus sonhos, suas possibilidades, quando viu que não podia correr até seu destino, esbarrando na maldita grade cinzenta e podre de sua vida, n'um ápice de cólera, deu um murro n'uma parede irregular, com tanta força e tão sem jeito e despreocupação que sentiu uma dor aguda. E só. Não se importou. Fugiu... Andou... Derramou no mar os rios de suas trevas, pois não aguentava mais carregar nem violentar qualquer coisa... E ao voltar, percebeu então o resultado, sua conquista, seu espólio. A mão estava quebrada... rachado o osso da quarta falange, rocha despedaçada após a tempestade... E vislumbrou a luz... e sentiu prazer... imenso prazer com a mão imobilizada, com a sensação do acontecido, do realizado, do presente...


E depois de tantos anos... livre, longe, irreconhecível para aquele passado, lembrou-se sem qualquer razão desse fato memorável... Passo fundamental para estar aqui e agora...

domingo, 24 de abril de 2011

Antimúsica

Os ouvidos vibram incessantes, micr'ossinhos de sensibilidade sutil levados aos extremos do desgate ininterrupto pela impossibilidade contemporânea de sua paz. A calma, o descanso, a tranquilidade destes esforçados membros de nossa constituição sensível é algo tão raro, talvez só possível durante o sono, e olhe lá! Depende de onde você mora, se não tem nenhuma avenida movimentada e insone por perto, nenhuma alcatéia de cães a falar sobre a última novela animal, nenhum alarme de carro zunindo noite adentro, como cigarra/o eletrônica/o expelindo sua fumaça sonora. Ah! A música do silêncio, qual é? Onde está? A sonoridade inaudível do existir, a forma risonha da voz calada, a trama insinuante da vida muda, sem trilha, fora da trilha sonora...?.
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Por dois dias houvi/mos música sem parar... O som colocado no alto da geladeira, coração da casa, irradiava sua vibrante energia, reverberando pelas cavernas escuras de meus ouvidos, rachando-lhe as paredes imperceptivelmente, ocupando cada brecha de meu espírito, pensamento, vazio... O tão precioso vazio... morto - a machadadas ritmadas. Toda sorte de música, forte, suave, clássica, pós, minha, d'outro, além, depois... Até que.
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Eu disse
- Estou afim de ouvir nada.
E o Coro disse
- Eu também / Eu também / Eu também.
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Putz, ouvimos música até cansar, todos os instantes de cozinha, de mesa, de cama, de riso, permeados pela música. E a manhã vitoriosa do terceiro dia foi, enfim, acompanhada pela beleza acústica do nada... do silêncio... dos mínimos sons naturais do coração, do vento, do chuvisco, do viver...
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E Ele disse: Faça-se o Silêncio.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Ab-T-orto

Qual o controle que temos sobre nossas ações? Temos controle? Não? Partindo de nossos desejos ou convicções, o que fazemos marcará a vida, cicatrizes ou lembranças felizes.




Ter responsabilidade sobre si mesmo já é um desafio para o qual, muitas vezes, nos vemos despreparados. Imaginar ser responsável por duas pessoas nem passou pela cabeça da gente.




Augusto mau começara a universidade. Ingressara no curso de artes visuais, já se envolvera com projetos, ideias, grupos. Um novo mundo. Estava naquela tarde voltando para casa depois de um dia bem empolgante. Encontrou com aquela menina. Na semana passada ele e ela passaram a noite juntos. Uma aventura despreocupada.




Luisa entregou-lhe um papel sem olhá-lo. positivo foi a primeira palavra que viu. Era um teste de gravidez. Aos 22 anos ele recebeu a notícia mais pesada de sua vida. Ficou em silêncio. Lembrou-se do dia que tivera na universidade.




O teste estava datado de três dias antes. Nessas 72 horas ela tomara uma decisão, não deixaria uma noite mudar toda sua vida. Na cama ela não tinha pensado nisso.



Os cabelos castanhos cobriam os olhos da jovem de 19 anos quando Augusto a olhou. Voltando para o chão, ele pensou - meu curso é à tarde. Vou ter que trancar, preciso de um emprego.



Aquela menina lhe era quase uma estranha, mas naquele instante em que ele a olhou, sabendo o que ela carregava, decidiu que tinha nove meses para conhecê-la o máximo possível.






Agosto ou setembro de 2009

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Pulando...


Sem ânimo para respirar... Não há sentido em levantar pela manhã.
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As vontades são um amontoado de pesos mortos... Todo o esforço é inútil... As pessoas estão mortas... gostaria que morressem novamente.
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Só eu e ela, mais ninguém... uma ilha deserta, meu espírito...
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Chovendo gotas pesadas, guarda-chuvas fugidios...
O inverno é a estação permanente, com ligeiros raios de sol aos sábados e domingos
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A fuga e a destruição é o que se chama sensatez
Razoável seria o Apocalipse...
O bom senso nos indica o suicídio...
A inteligência sugere algo coletivo...
E involuntário... e acíclico...
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A paz é a inexistência... a combustão eterna do sol...
A alegria é a ausência da loucura...
Realização é a instabilidade da queda livre
Desintegrando e desesperando
Pare de acreditar no amanhã
Pura ficção não escrita por você....
Pare de aceitar!
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A vida é um oceano e eu sou um quebra-mar...

segunda-feira, 11 de abril de 2011

de sal a sal...


Trabalhando oito horas por dia (só 8?), com afinco, concentrados, olhando atentamente o que fazem, com as mãos ou com uma parcela da mente. Seguem suas rotinas, cumprem suas tarefas, aceitam suas obrigações, não como prisões, mas como a forma exata de suas vidas. Nem um passo além, conformados. Ou não fazem tão compenetrados assim, mas simplesmente fazem, empurram o tempo, carregam cada minuto como um monolito, Sísifos assalariados, arrastando a jornada de trabalho como destinos inevitáveis, como moldura invencível da realidade.
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Trabalham, assim, unicamente. Trabalham, há apenas isso para fazer. Oito horas, dez, doze... o dia inteiro como parte de suas vidas. Em casa comem, dormem e esperam o dia seguinte, fazem apenas a manutenção de si mesmos, para que não faltem o expediente. Assistem Tevê para o tempo passar ligeiro... não há muito que fazer fora do emprego... De manhã logo cedo, lá estão eles... tão dignos, tão valorosos... trabalhadores... eternos trabalhadores, a serviço dos patrões que com eles recheiam os bolsos... Tão corretos diante da moral que não é deles, mas que beneficia outros...
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Às vezes querem que seus filhos sejam o que não foram, conquistem o que não conquistaram, lutem pelo que não lutaram. Transferem para os filhos o futuro que não tiveram nem buscaram. Não tiveram oportunidades, mas continuaram trabalhando... para existir... Pra quê? Sobreviver como o fim em si mesmo... Pra quem?...
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Às vezes encomizam, sacrificam-se mais ainda, além de todos os limites, apertam os cintos até a espinha, engolem o estômago e "poupam"... Querem abrir o próprio negócio, querem virar a mesa, arranjar outros pobres não poupadores para trabalhar para eles... Acreditam na loteria do um em um milhão... um em milhões com seu próprio negócio, próspero. E não dá certo. Vão à falência e vêem que outros chegaram antes e mais bem preparados... e tentam de novo... ou outros tentarão...
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E trabalham... e trabalham...
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Com o único fim de gastar a vida... de ir vivendo... como Deus quer e o patrão manda... De novela em novela, de domingão em domingão... vivendo... cada dia como o dia anterior...
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E quando morrem... sentem-se felizes por terem sido "trabalhadores"... "honestos"... "lutadores"...
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Ou sentem a tristeza do nada, da pobreza, da miséria, do cansaço da vida inteira...
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Ou não sentem nada, quando morrem...