quarta-feira, 31 de março de 2010

"Músicas tristes me fazem feliz"


O mar negro e pesado soluçava cadentemente contra as rochas do paredão literâneo por onde passava o tão famoso calçadão daquela capital caribenha; nas lamparinas coloniais brilhavam as envelhecidas lâmpadas elétricas, pintando o chão de amarelo escurecido pelo véu da noite; a espuma marinha efervecente inundava o ar com os estalos de sua angústia; um pescador solitário mantinha-se firme e ereto, empunhando sua plácida lança rumo aos escuros confins do mar; um ou outro velho cidadão voltava para casa n´uma antiga bicicleta na ciclovia desgastada pelo tempo; os bares salpicados na extensa orla emanavam as fragâncias e sonoridades típicas daquele tão especial região da Terra.

Caminhava pesado como um robusto contrabaixo, vestido em trajes escurecidos no tom de sua visceral madeira envernizada. Os pensamentos lhe tinham fugido para caçar sardinhas boêmias nas ondas caudalosas, pensamentos-albatrozes-fugidios... Com as mãos aventureiras a procurar tesouros nos bolsos, os olhos detetives a desvendar as pedras do calçamento, os sentidos escondidos no fundo da garganta, ele caminhava, voltando não sabia de onde em direção à lugar desconhecido. Seu coração sincronizava-se com seus passos, ora acelerados e impactantes, ora arrastados e sonolentos. Seus ombros doiam levemente, sem motivo bem definido, talvez fossem as tensões emergentes dos calos dos pés. Vagamente, começou a sair-lhe dos lábios uma canção antiga e melancólica, como uma balada de navegadores perdidos na inescrutável imensidão do mar. Os sopros leves e quase inaudíveis foram ganhando força e tornando-se possantes, regendo o ritmo de seu passar. Absorveu-se nesta canção repentinamente criada, espontaneamente exposta aos seus ouvidos diretamente de seu submundo... até que vários minutos depois, com os músculos faciais exauridos pelo esforço sonoro, fez pequena pausa. Que espanto! não foi ouvir distantes palmas de aclamação vindas logo atrás de si, por outra caminhante que, aparentemente, pôs-se a ouvi-lo. Olhou para trás para observar sua perseguidora e reconhecendo a alegre vendedora de flores da sua rua, tratou de passar para o outro lado da avenida, a fim de fugir de sua suposta admiradora. Era demasiado reservado e, pior, não suportava qualquer tipo de elogio ou apreciação. Porém, a garota o seguiu, apressou-se para alcançá-lo e logo banhou-lhe de palavras como se uma onda forte tivesse espirrado no calçadão, encharcando o tímido e seco caminhante.

- Ai, como é bonita a sua música, como são límpidas cada nota que assovias... ai, fico louca só de ouvir, dá-me uma vontade de pular, sabia? Apesar de carregar uma tristeza muito exagerada, eu acho. Você não deveria derramar essas lágrimas todas n´uma música tão bonita, viu? Trate de consertar.

Ele limitou-se a olhá-la, constrangido pelos incontáveis comenetários. As músiquetas que ora assoviava, improvisadamente, eram meras distrações, formas de apaziguar-lhe os ânimos aflitos pela constância e imutabilidade do seu cotidiano. Nessas longas caminhadas noturnas, fazia um pacto sombrio com o mar. Comprometia-se em despejar impiedosamente todos os pesos de chumbo do espírito no corpo marinho, e, em contra partida, prometia render eterna reverência à entidade mágica do oceano.

- Você não acha que deveria estar fazendo alguma outra coisa? - foi a resposta que ele conseguiu elaborar.
- Como assim? - questionou a menina, levantando a sobrancelha esquerda, sem entender o que ele quis dizer. - Eu estou fazendo o que me acontece fazer. Estava caminhando e comecei a ouvir a sua música. Gostei muito e por isso vim conversar contigo. Espero que não se incomode.
- Me incomoda sim, se importa? Preferiria continuar sozinho. - disse o moço, secamente.
- Não seja bobo! Eu sei que não é verdade. Dá para ver no fundo, lá no fundo dos seus olhos que só o que você precisa é uma companhia. Bobo! Fica fazendo uma de difícil. Eu te vejo todos os dias passar pela rua onde eu vendo flores, sabe? Me parece tão triste. Por que você é assim?
- Pergunte ao mar porque ele é insondável e assim que ele responder, eu também talvez lhe responda. - fechou a conversa. Mas a menina, inabalável, persistiu:
- Nada nisso. Não aceito. Acho que você só precisa de alguma coisa pequena, não sei, talvez uma flor? Tome! - disse, entregando-lhe uma flor do campo retirada d´um canteiro próximo - Ou então, companhia? Posso conversar contigo sempre que quiseres. Onde moras? Que músicas tens na tua casa para ouvir? Tem sorvete? Vamos tomar um pouco de sorvete? Te fará bem! - e ela falava, falava, dizendo mil coisas que pudessem alegrar o estranho. Porém o impenetrável muro que circundava o homem mostrava-se com poucos pontos fracos.
- Não precisa de nada disso. Eu estou bem. Apenas deixe-me em paz. - E afastou-se da menina, frustrando todos os inúmeros planos que ela já elaborava para mudar radicalmente a vida daquela alma em penumbra. Mas ele ficou a olhar para a flor que ela lhe deu. A guardou dentro de seu livro de cabeceira, aquele que todas as noites ele lia e relia. E toda noite passou a olhar para a pequena e ressequida flor, lembrando-se do olhar do anjo que lhe presenteara. A partir daquela data ele nunca mais a viu na rua onde morava. Será que alguma coisa aconteceu a ela? Alguma tragédia? Nunca saberia, mas passou a procurar por ela em todas os rostos que cruzavam com ele na rua. E ao assobiar, seu canto ganhou uma razão, encontrar, enlaçar a presença daquela menina. Todas as noites suas canções tinham esse motivo misterioso para tornarem-se alegres, fortes, indagadoras. E as flores ganharam um novo significado, um novo interesse, um novo olhar. Flores belas... lembranças...



(Arcade Fire - Crown of Love - uma música)

terça-feira, 30 de março de 2010

desfio...

Montanhas em degelo nos extremos desesperos
Sobe o sol da alvorada de cada nova palavra
Que brota com o orvalho frio na manhã clara
Enquanto a relva se entrelaça n´um casal de garças
D´um branco-gelo maior que o céu imenso
Transparecendo o brilho de suas asas...

O calor descobre a paisagem em cálido insenso
Aromas de terra e vida erguem-se ao vento
Cantos finos araucanos das esguias aves austrais
Espriguiçam o continente de poderosas cordilheiras
O sangue é a seiva das florestas de sem fim
O mar dança na praia sua celebração de paz
Em cada manhã o sol surge belo e pacífico
Não olvidando, porém, de seu vigor mítico
O ar salgado cristaliza os amores
N´uma eterna e cintilante multidão de flores
Estações de macieiras pintam o mundo de vermelho
Percorrem trens maciços pelos braços latinos
Conquistam a liberdade em honra ao sangue índio.

terça-feira, 23 de março de 2010

"Conhece-te a ti mesmo" e ninguém nunca poderá mandar em você!

Chego a afirmar que a ânsia de questionar a si e a tudo seja a maior das virtudes. Porque, mesmo que uma pessoa tenha qualquer defeito que seja, se ela passar a questionar esse defeito, suas origens, razões e consequências, este e qualquer outro defeito pode ser vencido ou transformado em uma virtude - e o conceito de defeito e virtude também é algo a ser excessivamente questionado, reciclado e renovado, para entendermos a cada dia nossos caminhos, nosso destino/objetivo. Cada um de nós contém um universo de possibilidades de emoções, idéias, sensibilidades, ideais e atitudes, universo a princípio obscuro, porém permeado de incontáveis pontos de luz, que norteiam ou sinalizam para nossas profundezas... Porém, 'questionemos' se a sociedade hegemônica em que vivemos estimula os indivíduos a se conhecerem, indagarem-se sobre suas posturas e formas de pensar, analisando profundamente cada comportamento, o que os cerca, os pensamentos divergentes e logo perceberemos que não, ao contrário, vive-se em uma sociedade (e cada vez mais uma porção maior do mundo é abocanhada por esta dita "sociedade" ou podemos usar o antigo termo "neocolonialismo") que impõe uma perda de memória coletiva pela fugacidade e colossal quantidade de informações - ninguém consegue lembrar o que viu na semana passada, pois um imenso volume de 'novidades' já tomou a atenção e espaço na mente; que massifica as pessoas, padronizando-as através de uma mídia massiva e alienante, uma cultura industrializada, enlatada, onde todos buscam consumir os mesmos padrões de roupas da moda, best-sellers, filmes hollywoodianos, últimos lançamentos de eletrodomésticos, fast-foods e automóveis, todos iguais em qualquer parte do mundo que já tenha sido invadido pela colonização cultural hegemônica; condicionamento social para o consumismo, impondo uma visão do 'eu' totalmente condicionada ao consumo - "compro, logo, existo", enfim, pondo tantos letreiros luminosos, vitrines, publicidades e novidades no exterior do sujeito que ele não tem tempo nem interesse de olhar para si mesmo. Tem-se assim, um indivíduo que desconhece o fato de que ele é um ser único, peculiar, singular e repleto de potencialidades criativas e culturais iniqualáveis. Sentindo-se supostamente vazio, cada um segue o caminho indicado, preencher-se de símbolos padrão que possam determinar quem ele é (tem), através de marcas, status, distinções sociais, pronomes de tratamentos pomposos, luxos, desejos de superioridade, tudo n´uma vã tentativa de sentir-se, autoafirmar algo que ele mesmo desconhece, a si mesmo, e desta forma, acaba utilizando a fórmula pré-paga da cultura americanizada ou eurocêntrica - resumindo, ocidentalizada. Tal sujeito, ignorante do que pensa, acha ou acredita, é, deste modo, facilmente manipulado, sendo possível fazer dele o que se quiser, mandá-lo votar, pagar impostos, sustentar uma sociedade que pouco se importa com ele, não fornecendo nenhum de seus direitos fundamentais, quando muito, pondo-os a venda. Sua educação, saúde, cultura, transporte e segurança são todos objetos de compra e venda, questões essas que são suas por direito. Esse indivíduo alheio e diminuto é ensinado sobre seu inelutável isolamento, a televisão explica-o perfeitamente o quão distante ele está de um mundo imaginário e fantasioso criado na telinha, expondo-o à sua pequenez, ou então a educação programatória em geral esclaresse sua inata dúvida a respeito do que ele é e qual seu papel na sociedade - seu papel é obedecer, assim como o de outros é mandar. Cada um pertencente à classe dominada é ensinado desde a mais imaculada idade seu imbatível destino de obedecer, seja a quem for, cada dono e senhor ao seu tempo, primeiro os pais, depois o professor, então o chefe e o Estado. Não tendo outros referenciais sociais nem podendo compô-los ele mesmo, submete-se sem perceber e explica enfaticamente a qualquer um que pergunte essa 'lógica' lei social que lhe foi passada. "Eu obedeço, há os que mandam, e assim é o mundo, inclusive o animal"... E parece que ninguém disse a ele que, diferente dos animais, ele pensa e, muito mais diferente ainda de seus primos selvagens, ele tem consciência de si e pode refletir a seu respeito. No dia em que a mulher e o homem despertarem para si mesmos e formularem todas as suas questões, buscando as mais diversas fontes de conhecimento e análise, questionando sobre os "porquês", os "comos" e os "quens", ninguém poderá dizê-lo o que fazer, pois ele perguntará "Por quê?", quererá discutir a validade dos objetivos e ações/ordens que querem impor e se recusará a obedecer se descordar delas, pois nenhum homem é uma máquina a quem se possa mandar e desmandar arbitrariamente.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Quero viver de brisa e beijo - ser imaterial

Uma vez sua mãe lhe disse, lamentando:
- Acho que não soube te ensinar a dar valor às coisas.
Ele respondeu:
- Acho então que eu tive uma boa educação, pois prefiro dar valor às pessoas.
Ela dizia isso porque ele muitas vezes demonstrava um considerável descaso com suas posses, não sentindo grandes aflições diante do natural (ou provocado) desgaste da matéria nem empregando excessivos esforços para preservar a plena aparência, a forma externa socialmente aceita como "bom-estado". Se a mochila estava se desfazendo em fiapos, rasgando-se, abrindo buracos, tanto mais ele gostava dela! É sinal de que passaram por muitas coisas boas (Qual o motivo da surpresa?!); se havia uma manchinha ou outra na camiseta, era sinal de que ninguém tinha camiseta igual! (Não olhe com esta cara de espanto!) Livro velho, com cheiro de décadas, todo rabiscado, grifado, anotado, era o que havia de mais precioso e interessante! E pessoas tristes e filosóficas, angustiadas, indignadas, revoltadas, exaltadas, essas sim o atraiam... "Suspeito que não devemos precisar de muito mais que isso [frutos silvestres e liberdade]"... um dia queria se ver regido por este mantra de simplicidade e pureza... A verdade não usa roupas elegantes e rebuscadas, é simples e profunda... as aparências são superfícies ocas e insípidas... Acontece que ele era (ou buscava ser!) senhor de Si! sI! SI! S-I-M-E-S-M-O. Era, então, senhor sobre as coisas... e não servo delas... seu serviço devia se dar em nome da vida e dos vivos... ou das mais sublimes representações da vida, a arte (e obras de arte, sejam livros, telas, músicas, peças), a beleza... o que transbordasse vida... Vida. E a questão toda não é a atenção em si dada às coisas, mas a constante e crescente atenção que elas demandam! Antigamente (muito antigamente) se comprava um sapato e pronto! Só se precisava pensar em sapatos novamente quando se tivesse um filho e fosse preciso um outro sapato... Ah, e as roupas, eram poucas e suficientes... Os móveis serviam à gerações (ao invés de cada pessoa servir à gerações de móveis!)... até os primeiros equipamentos eletroeletrônicos era feitos, como tudo o mais, para durar! As pessoas compravam as coisas porque elas eram duráveis e resistentes... e não porque tinham mil e uma utilidades inúteis ou desenho moderno rapidamente obsoleto... Hoje não, hoje não temos nenhuma sabedoria e a evolução da humanidade é cada vez mais burra... Tanto de nosso tempo precisa ser dedicado à coisas que, ao invés de nos ajudarem, atrapalham... O computador dá uma puta dor de cabeça, pois sempre temos a sensação de que o nosso é lento e ultrapassado em comparação com o da loja; o celular nos dá uma maldita sensação de antiquados, quando não constantemente trocado pelo "modelo mais tosco, digo, novo), o sapato nos faz passar vergonha quando a sola descola depois de só um ano ou o salto quebra com seis meses de uso raro e... e a camiseta já foi comprada se desfiando e nem percebemos. Se trocou a quantidade pela qualidade... tenho mil pares de sapato, para poder usar bem pouquinho cada um (ou mesmo nunca), já que eles são tão imprestáveis que um uso constante os destruiria... Quero mil bolsas e jóias novas porque as jóis deixam meu rosto bonito e não o meu rosto que deixa as jóias bonitas. - e isso estou falando tentando pensar tanto como homem quanto como mulher. Por isso que prefiro as obras de arte. Ninguém diz - Amor, acho que esse quadro de Picasso já está velho, vamos trocar por uma versão sem fio? Ou então pensar que assim que você tirar sua escultura finamente entalhada em madeira envelhecida da Concessionária, digo, Galeria, ela já vai estar desvalorizada e você não conseguirá revendê-la nem pela metade do preço; ou pior, dizer - Pel´amor-de-Deus, o que este original de Machado de Assis está fazendo na minha estante? Eu quero uma edição com a capa da mini-série Capitu - Claro que não, né?! A Arte é imortal, pois eleva os seres humanos ao nível de semi-deuses, na medida em que buscam o melhor e o pior de si mesmos para uma contemplação crítica e transcendental... Ela não se torna obsoleta, ela não se troca, evolui, descobre outras e outras expressões, mas nunca perde seu valor... E assim também são as pessoas, de valor inestimável e inalienável, ninguém pode tirar ou roubar o valor de alguém... Por isso prefiro valorizar as pessoas! E que as coisas que aprendam a não me incomodarem.

terça-feira, 16 de março de 2010

Pequeno Prazer


Pr´um lado, p´ro outro, dedos suaves segurando o guidon que zigue-zagueia, as sandálias surradas e velhas agarrando-se firme e calmamente aos pedais, girando como uma roda gigante para dedos dos pés. A bicicleta azul meio suja de terra na coroa, meio sem óleo na corrente, meio vivida em demasia, aproveitava aquele momento cálido de manhã de domingo de sol ameno e dança. Porque o garoto e a bicicleta, sozinhos, dançavam com os movimentos e formas no asfalto, o ritmo havaiano de vai-e-vem que tocava nos ouvidos e que aquele objeto-vivo de alumínio ouvia também de maneira sobrecomum... As rodas saltavam, brincavam... as cores do céu se inverteram em laranjas esverdeados violeta, as paredes das casas se derretiam em gelatina de framboesa, tudo que na rua passava virava flor alada, pássaro ou fada... Percorria o ar como quem atravessa o mar frio e cristalino de um arquipélago mágico... e as rodas da bicicleta faziam sonidos de viola e o vento tinha voz feminina e as esquinas tinham olhos esguios e castanhos... um transe luminoso... uma neblina de sensação... uma desforma líquida de sabores infantis... e aromas úmidos e toques alegres... mas outra bicicleta pedalava com ele... ao seu lado deslizava a menina de cabelos castanhos brilhantes de boca e bochechas vermelhas de verão... Sua pele tão branquinha parecia de arroz e o brilho de seus olhos eram untados de oliva... ela sorria no balanço da música como se fosse seu rosto o principal instrumento musical... abria os braços no ar, rodopiando-os como beija-flores, alcançava as pontas das árvores, agarrando em cada dedo mil frutas diferentes... deixou-se derramar pela pele as cores furtivas das ameixas e jabuticabas, pintando suas unhas de vinho e deixando seu vestido tinto e doce, uma sangria de tecido e corpo... os dois apaixonados começaram a descer a ladeira da praia n´uma velocidade de luz, confundindo-se nos seus raios de cores arrastadas no tempo transdimencional... as lascas do céu começaram a se desfazer e as ondas do mar racharam-se de tão apaixonados que eram os dois rumo à beira da praia no fundo do oceano... as rodas começaram a tocar e melodiar a espuma marinha, as bicicletas fundiram-se com o cobre e o alumínio da maré e os corpos se alcançaram n´um abraço extático, transmutando o mar n´um vermelho metálico...
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(Unattainable - Little Joy - uma música)

quinta-feira, 11 de março de 2010

Bons Ares


Pela manhã, dormia até às nove, dez horas. Raras vezes tinha um surto de fazendeiro, despertando com o nascer do sol, e, pior ainda, fazia-se de louco e levantava-se da cama quentinha, desfazia-se da coberta macia, desvencilhava-se do prazer provocado pelo ventilador, dirigia-se, decidido, até o armário, trocava-se, punha as sandálias, camiseta e shorte e ia à praia ver o espetáculo junto com os pássaros, também loucos. Seu principal companheiro naquela casa era um pássaro mudo. Jamais cantara uma só nota desde que fora aprisionado na espaçosa gaiola redonda, mais parecida com uma catedral em miniatura, faltando apenas os vitrais. Tudo o que o moço possuia era temperamental, inclusive seu pássaro, que, imitando a índole revoltosa do suposto dono, fez greve de silêncio, decidido em reaver sua liberdade. Sentia que a ave o entendia, conhecia suas fraquezas e o caminho para fazê-lo soltá-la. E veja que ele a capturara há apenas três dias, preocupara-se em fabricar aquele palácio de alumínio e em colocá-lo pendurado na janela com vista para o rio e o outro lado da cidade, com seus prédios altos e resquícios de mangue na margem, mas mesmo assim já se sentia o pior dos carrascos, dada a reação do pássaro ante a reclusão. O prendera por um impulso, instinto de caçador, talvez, ou até por inveja. Vira aquele animal nobre e altivo calmamente repousando no telhado, onde ele também estava, apreciando a paisagem do fim de tarde. Os olhos do rapaz se afinalaram como os de um gato e, armando-se de uma rede de pegar borboletas, aproveitou-se do instante em que o pássaro coçava os olhos com a asa esquerda, irritado por um cisco, para prendê-lo. Atordoado e ainda cego de um olho, não pôde resistir com grande perícia o ser alado, deixando-se levar, esperando para avaliar a situação quando tudo se acalmasse. Vendo-se aprisionado no recando de luxúria, ao qual era totalmente avesso, ele que era um andarilho das nuvens, decidiu tomar a ação mais drástica de todas, selar seu canto dentro de si e oprimir o opressor com o silêncio mortal. Conhecia bem as ambições humanas e sabia que aquele humano queria roubar-lhe o canto, obrigando-o a gastar sua voz majestosa para mero entretenimento daquele homem, mas não daria a ele este prazer. Na alvorada do terceiro dia, angustiado, o rapaz soltou a ave e contentou-se por ornamentar sua casa com aquela obra de arte que era a gaiola. A ave, satisfeita com a liberdade devolvida, porém comovida com o olhar melancólico e solitário do rapaz, arrancou cuidadosamente uma pena amarelo ouro da cauda e pôs no centro da gaiola, para preencher o vazio que ficara. Os olhos do moço ficaram vívidos e brilharam diante de tamanha nobreza. Estendeu a mão para a ave e comprimentou-a, apertando-lhe delicadamente as penas longas da ponta da asa direita, depois, viu partir a única companhia que tivera em três dias. Não importava. As manhãs costumavam ser empregadas para a leitura de livros, em média uma dezena por semana. Uma tarde na semana era dedicada à visitar sebos em busca novidades que suprissem sua enorme necessidade literária. Nos outros dias, caminhava pela rua, visitando cada dia um bairro diferente, uma rua desconhecia, um restaurante recém-aberto, alguma atração cultural, qualquer coisa. Além de desfrutar da alegria por ver e viver coisas novas, aproveitava também para coletar particularidades sociais, historietas humanas que via acontecer, detalhes do cotidiano da cidade que presenciava. Tal material era-lhe imprescindível, pois sustentava sua vida escrevendo contos e novelas para diversos jornais da cidade e de outros lugares. Seu outro nome, o artístico, era até razoavelmente conhecido nos meios editoriais e jornalísticos. Há treze anos começara sua carreira de escritor e jornalista literário e naquela altura, não passava mais fome como nos primeiros anos (foram tempos difícieis, mas, obviamente, também os mais férteis de inspiração). Mas durante o dia, gozava de um anonimato somente quebrado para as pessoas mais próximas que sabiam que ele era a carne e o osso por trás do autor. Preferia assim, porque se tivesse algum reconhecimento na rua, todo seu trabalho de pesquisa se tornaria impossível. Vivia em um apartamento de dois cômodos, um grande e amplo, e um banheiro que não chegava a dar claustrofobia, apesar de modesto. No recinto maior, os ambientes se dividiam através da organização dos móveis, exceto a cozinha, cuja pia não podia ser movida tão facilmente quanto as cinco estantes de livros, a mesa de jantar ou a cama de casal. Vivia uma vida agradável, que ele desejava viver. Porém, tinha um problema - alguém, ou alguéns. Sempre que se relacionava, a medida que convivia, que se aproximava e intimidades se instauravam, se conheciam, aquela profusão de farta felicidade inundava sua vida, tomando seus pensamentos, suas horas, seus caminhos e desejos, objetivos e sonhos, fazendo-o entregar cada gota de si mesmo, como uma divindade à quem a alma prontamente reverencia e abandona todo o resto para dedicar-se ao sacerdócio. Ele era assim, incontido, descontrolado, indisciplinado nessa arte ou doutrina ou ideologia ou narcótico, o amor. E a primeira consequência (talvez um efeito colateral) eram o acúmulo de contas não pagas, porque tão logo ele fazia voto de apaixonado, sua inspiração e concentração esvaiam-se e não podia escrever mais nada para ninguém. Nem à sua divindade lhe surgia algo, posto que o sublime era tanto que não poderia macular a perfeição com vis palavras. Na fartura de alegria, vinha a esterelidade da alma. Às vezes se forçava a escrever algo ou então, raramente, apareciam um soneto ou punhado de versos brancos, mas sempre lhes pareciam tolos e feios. Também a disposição física se alterava. Dependendo do amor, podia explodir ou exaurir-se. Antes ele era um homem de muitos compromissos, tarefas, obrigações, que demandavam porção considerável de suas energias. Assim, se o cotidiano fosse deveras emotivo, surgiam forças de onde não haviam e seu corpo era levado até o limite, mas se a rotina fosse alegre, porém tranquila, o corpo aproveitava o conforto para descansar nos braços, sonhar de olhos fechados. Ou estava no limite, ou estava sonolento, e, para ele nenhuma dos dois estados parecia muito saudável. Então surgia-lhe uma angústia, um torpor, uma sensação de incompatibilidade, de afastamento, um desejo de fuga ou de ver-se livre. E assim era, desfazia-se da fonte de sua felicidade e voltava a si, reencontrando-se. Era-lhe realmente problemático. Então não poderia conciliar a si mesmo e a felicidade? Dizia-se alérgico, sensível, irritava-lhe a pele do espírito, dava-lhe manchas na vista, coçava-lhe a alma, inchava sua vontade de ir embora... ou algo assim. Só sabia que, após alguns meses estava se despedindo. Mas naquele momento estava de 'retiro'. Afastara-se dos compromissos todos, convivia o mínimo possível, apenas com aquelas raras pessoas que lhe davam um prazer especial e desinteressado, espontâneo, simples e profundo ao mesmo tempo. Procurando alguma paz que superasse o cotidiano, a monotonia, a solidão. Buscava também a cura para suas doenças interiores, suas sensibilidades mortificantes, fugitivas, fracas... O que ele não entendia era que, até então, a paixão lhe arrancava tando por sentir-se sozinho ainda que acompanhado... Não sabia que a chama do seu amor era unilateral... que tantas vezes submergira em romances cujas correntezas não o acompanhavam, ao contrário, forçavam-no a nadar com uma força e por um período temporal que cedo ou tarde não teria mais... faltava cumplicidade, faltava partilha, faltava desejo mútuo por ideiais complementares ou companheiros... Não sabia que a paixão para sustentar-se, demandava tanta harmonia, esta que até então nunca tinha encontrado... a tentativa de equilíbro só de si não era suficiente para um relacionamento... era preciso equalizar o eu com o outro n´uma sintonia fina, suave, delicada... e talvez assim pudesse concretizar os sonhos de veludo e se ver curado da enfermidade que o acometia à cada amor. Mas, como disse, estava de retiro... tentando não pensar a respeito, pôr-se em marcha de olhos fechados seguindo apenas suas inclinações pessoais rumo aos magnetismos que o atraíssem. Eventualmente fazia viagens com amigos e amigas... travava novos e inesperados conhecimentos... debruçava-se diante de surpresas das quais gostava de extrair um conto ou poema... Queria ter uma inspiração espiritual maior e mais forte, não tão frágil às seus estados emocionais... e queria encontrar uma forma mais... apaixonadamente pura de ver o futuro e o presente... A casa era suficientemente grande... a cama exageradamente espaçosa... sua alma desmedidamente aconchegante e o destino colocaria este pequeno escritor solitário na lugar ideal para seu verdadeiro florescimento...

texto iniciado dia 29 de outubro de 2009
finalizado hoje.
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(With Stranger - Little Joy - uma música).........................................................................

Degrau


Seria uma característica sua ou todos intrinsecamente tinham o mesmo propósito? Seria natural que sim, seria até mesmo o ideal (e lá vem ele sendo mais uma vez ele mesmo)... E não interessa o fim, chegar lá... não há final, sempre há para onde ir... Com o esmero de um escultor, ele vasculhava suas imperfeições, erros, manchas, sombras, para corrigi-las em formas harmoniosas e coerentes com sua totalidade e inspiração. Pensava agir conforme seu mais apurado pensamento, exceto quando se via demasiado sufocado e faltava com os deveres do mundo de mãos amarradas. Odiava ser exigido do que sabia a impossibilidade da eficácia e muitas vezes se via impossibilitado de negar tais exigências. Era muitas vezes incapaz de não pôr-se a serviço, mesmo quando sabia que tal sujeição significaria uma ação um tanto imprecisa e aquém do esperado. Mas a cada dia aprendia que para pôr-se coerente era preciso reconhecer com vigor as limitações materiais e espirituais e dispor-se apenas ao possível... Deixe o impossível para situações mais urgentes... não o desgaste com o cotidiano. E assim pensava fazer seu caminho, tendo por única exigência a sua própria por uma construção reflexiva do Eu. Havia aprendido sabiamente a desfazer-se das próprias expectativas. Estava aprendendo agora a desfazer as expectativas alheias sobre si. Assim, sua coerência não seria abalada pelas amarras do dia a dia, pela falta de tempo e disposição, pela superocupação de seus esforços. Que ninguém ousasse pensar que ele estava livre para dedicar-se unicamente à causa deste ou daquele solicitante. Questiona se podem vir militar nas causas dele apenas para receber as negativas tranquilizadoras... Façamos cada um segundo suas motivações... ele busca motivar... e procura motivação nos demais... e encontrar e descobrir bons ou maus exemplos, melhores ou piores caminhos... Quer ter significado em sua existência, propósito e paixão. Apaixonadamente pôr-se em suas crenças e convicções, transpassando-as ferozmente com lentes sensíveis de autocrítica dialética... pesando os prós e os contras na incessante busca do equilíbro (ou da perfeição)...

quarta-feira, 10 de março de 2010

êxtase

Havia noites em que o sono lhe fugia alvoroçado pois a multidão de pensamentos fazia de sua mente uma tempestade transbordando diques e invadindo as praias de sua tranquilidade. Dias, tardes, madrugadas, momentos vários, comuns, corriqueiros ou raros. E então lembrava-se da técnica oriental da meditação para refrear tais ânimos incontidos, afim de estabelecer ao menos um tênue equilíbrio. Basicamente, meditar para ele consiste em afastar os pensamentos e manter a mente clara ou vazia ou livre. Desta forma, descobriu para si duas formas de meditação, uma do corpo e outra do espírito. A primeira acontece relaxando o corpo e deixando o espírito livre para expressar seu interior e absorver e refletir sobre o exterior, de maneira serena e livre de pensamentos... uma reflexão sensorial, pura e voltada para dentro, uma forma de repouso do mundo exterior... Os olhos se fecham e buscam dentro de si os sons e as vibrações próprias para assim poderem entrar em consonância com o universo. Após um longo momento de esvaziamento da mente, o espírito se vê livre do corpo e entra em estado de sono profundo, sonhando, divagando. A segunda se dá através do relaxamento do espírito para libertar o corpo. Abandonar, esquecer ou simplesmente por todos os pensamentos em combustão, voltados para um propósito mais elevado de união entre dois espíritos através da ponte material dos corpos, emoções e sensações. É preciso transformar o tato n´uma forma de linguagem celeste que fala mil línguas desconhecidas ou simplesmente silenciadas... é preciso soltar todas as línguas... falá-las, externando os ímpetos de cada um n´uma comunhão de êxtase... já a visão se torna qualquer janela por onde a brisa quente das entranhas, da garganta, do ventre entra e preenche, envolve, cresce e alimenta a energia do corpo, como a chama que demanda oxigênio para explodir... a audição é mais profunda, algo como a luz que clareia, captando o alimento prazeroso e delicioso que transborda em sons e canções, um formigar da alma desejando transpassar os limites ou então manter-se no céu, alada, tão próxima do calor maior do sol quanto as asas podem levar... o paladar... possivelmente é o maior combustível que há, gritando e mordendo fortemente cada pensamento, para transfigurá-los em mais lenha e carvão e força para o calor interior e mútuo, glorificando um incêndio cerimonial, um holocausto interior de renovação pelo fogo, pelo desejo e pelo gozo ... e o olfato... é o supremo desatador de amarras, libertando o corpo de calor para deixar-se levitar, fluir, usufruir de si e do outro, n´um espetáculo de balonismo carnal e desesperado, onde os dois corpos em chamas agarram-se, alçando vôo nas termais de suas vontades imperiosas por estarem um no outro... sequioso e insaciáveis... sim... cinco sentidos e um sexto mais, a intuição mestra que rege cada gesto, cada fagulha, cada creptar de poros, células, partículas comburentes, como uma orquestra vermelha e luminosa, uma fornalha que transmuta os elementos vivos em divinos, um guia fundamental na tempestade magnética da suprema emoção e sensação... a união do todo e de tudo, uma explosão do universo para criar a si mesmo, recriar-se, inventar-se... Esta talvez seja a maior meditação... liberto para ser.