quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Cante comigo


Amar e amar-te da forma mais plena possível, como também na busca constante da sintonia entre as seres, no equilíbrio dinâmico entre suas existências, sentimentos, possibilidades, traumas, limitações, dores e sabores. 

Amar e amar-se na compreensão de nossa infinitude, insignificância, plenitude, limitações, possibilidades mil de criar e ir além.

Amar e amar-te nos mínimos detalhes, da paciência, do ouvir, do desnudar-se das histórias pessoais, passados, presentes e futuros, do cuidar da pele, das necessidades, dos carinhos.

Amar e amar-se na calma serena de quem busca se compreender, realizar, seguir sempre em frente, perseverante, apesar das quedas, persistente, apesar dos cansaços, insistente, apesar das derrotas transitórias, empolgante, graças a beleza sem fim de tudo que é e está sendo.

Amar e amar-te, porque não pode ser de outra maneira. Toda conexão, ainda que incompreendida, ainda que diferente, ainda que reveladora de outros caminhos distintos dos imaginados, toda conexão é mágica, todo encontro é sagrado.

Rendición - Onda Vaga - para sambar

Solitude


A solidão é a condição ontológica da individualidade
Repito este mantra cada vez que me sinto só
Muitas vezes
Caminhando pela rua, ao lado de alguém, no ônibus, em casa, lavando roupa, lendo, tomando banho. Tento convencer-me de que sentir-me só não somente é algo natural, como não há outra condição possível. Não deveria ser estranho ou desagradável, pois é apenas uma circunstância comum a toda criatura que entende-se individual. A primeira consequência de ser uma individualidade é, justamente, por tal motivo, estar ou sentir-se separada de tudo. Se assim não estivesse, não seria uma individualidade. Nem algo bom ou ruim, apenas uma condição. Uma "manifestação do universo experimentando suas possibilidades", li certa vez. Não que estejamos de fato sós. Somos, afinal, uma manifestação do universo, de tudo, o Todo. Mas estamos testando esta condição, essa possibilidade, dentre várias. Em outros momentos da existência podemos já haver vivenciado outras condições possíveis. Como árvores, montanhas, ondas, mesmo animais que não se percebem indivíduas. Agora nosso desafio é esse. Não um sacrifício, um castigo, uma dor, mas uma aventura, talvez. Estar só. Uma centelha de compreensões infinitas, um laboratório de sensações, impressões, reflexões, descobertas de si. "A quietude da solidão revela-lhes seu Eu-desnudo", recita Khalil Gibran. Acontece que em nosso desespero e ânsia de fuga, de nos entorpecer, criamos uma cultura avessa à solidão, ou seja, que torna as pessoas alheias a si mesmas, levando-nos a fugir de nós mesmas nos braços, bocas, vidas de outras pessoas. Escapamos de nós por meio do orgasmo do encontro com outra ser. Será assim? Por que esta ânsia por estar junto, essa inquietação por estar só? Mas, por outro lado, podemos intuir também que o próprio universo criou a individualidade por sentir-se só. Precisou dividir-se em inúmeras partes, diferenciadas, que não se sabiam ou sentiam-se as mesmas, ou parte de uma totalidade, e que então buscavam-se umas nas outras, apoiando-se, complementando-se, produzindo um prazer juntas que jamais alcançariam sozinhas. Talvez eu não tivesse essa intuição ou sugestão se não houvesse eu mesma experimentado tal estado de estar e partilhar e sentir-se junta tanto e totalmente. Chego a sentirpensar, em certos momentos talvez delirantes, que a razão mesma de existirmos é a possibilidade de estabelecermos tais relações, o que em outros momentos me parece beirar uma absurda (im)possibilidade de encontros, de conexões, completamente ou intensamente inexplicáveis, tão deliciosos, tão belos, tão realizadores e tão raros, esse sentir-se feliz por estar com alguém, não alguém qualquer, não uma felicidade qualquer, mas algo mais, algo além, algo que nos parece extrapolar a nós mesmas, chegando na outra, que desmancha nossas fronteiras individuais, sentindo a outra em nós, conosco de uma forma sem tempo e sem espaço, explodindo nossos sentidos e emoções em algo que, exageradamente, poderia nos lembrar a colisão dos átomos, liberação de energia incalculável, produção de outros elementos, outras formas, outros sentidos.
Afinal, a solidão é uma condição inevitável, total da existência, ou uma circunstância temporária, como uma diferença de pressão que movimenta de um lado frio para um quente, de um sozinho, para um acompanhado, um desamparado para um acolhido? Como um vento do mar para a praia, da praia para o mar, nessa troca de calores, superfícies, substâncias, inspirações e transpirações. 
Se assim fosse ou for, por que a maior parte da experiência existencial se dá do lado da solidão, e não da conexão? Devido ao sistema de relações humanas vigente baseado na violência e exploração entre as pessoas? Realmente não é fácil se conectar num contexto como esse, tão cheio de mágoas, feridas, agressões, dores, traumas, que nos afastam, nos repelem, nos leva a mesmo machucar-nos umas as outras... 

Que fazer? Seguir só, fazendo-se sol, seguir noite, partilhando nós...

Some Time Alone, Alone - Melody's Echo Chamber

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Rendição dos Arrefices




I
Um marco, uma bandeira representando um novo ciclo. Aquele portal que nos guia entre os antes e os depois. Aquele lugar-história que está presente em nossa memória do viver e que se tornou ritual de celebração, exaustão, abandono, encontro e despedida. Quarta dimensão, quarta vez lançando no ar esta experiência, lançando no ser esta história pessoal.

II
Fui só, fui acompanhado, comigo, mas partilhado, dançando e se entreolhando, perdendo, mas encontrando. Outra forma de presença, outra forma de contato. Tão perto, em parte. Até certo ponto, faz parte. Manifestação do universo experimentando-se em nós, tensionando suas limitações, expandindo suas emoções, querendo e se rendendo.

III
Um caminho mais longo, passando pelo futuro, subindo serras, ladeado por verdes e recém fraternos, estabelecendo planos, plantando estradas e possibilidades. Leituras, canções juntas, danças velozes, sonos e sonhos vagos, distâncias e linhas, proximidades que tardam, saudades e próximos passos.

IV
Chegar, chegar, no correr da correnteza, caronando os fluxos, ligeiro, que já começou, se localizando e se guiando, pra onde vamos, amor? Qual canção nos chama agora? A música enfim se faz, envolve a carne, penetra profunda, faz da gente uma onda, reverberando nas quebras circulares dos sons, afins nesse seguir, linda companhia, lindo dançar de olhos e mãos, amo estar, te admirar, gostosa partilha dos acasos bons...

V
Mar. Jornada longa. Apenas três horas de sono. Suficientes. Acordar desperto naquele apartamento estrategicamente localizado, cercado de pessoas queridas de longa data, rumo ao destino mais bonito, o mar infinito, repleto de perigos e salgados sentidos. Sem música, sol intenso, chuva estranha, bairro lunar, sem esperas urbanas, boas conversas, risos fáceis, introspecção, com meus botões, minhas emoções, seguindo o vai-e-vem do ser...

VI
Eu não menti naquela noite. 
Mas também não era verdade.
Eu estava tentando entender, processar, digerir tudo aquilo. Foram dois dias de excesso de convívio. Um contato demasiado para quem tem tanto preso na garganta e nos nervos. Fui exposta a possibilidades que beiravam os limites de até onde eu podia ir, onde eu gostaria de ir e onde jamais chegaria. Poder acarinhar-te a pele, abraçar-te, acolher-te, cuidar-te de alguma forma, segurar tua mão, estar o dia inteiro contigo, dormir perto, fazer-te rir e te ouvir e você a me ouvir e estar lado a lado tanto. 
Queria e quero e quis tudo isso. Mas queria e quero e quis muito mais. Que isso não fosse um borrão ligeiro no tempo, mas uma pincelada forte de um quadro maior, mais bonito, mais detalhado, demorado. Que isso significasse mais, que aqueles olhos encontrados tivessem mensagens bonitas de bem-querer, que a dança partilhada demonstrasse desejos brotados da pele e de sentimentos ternos e fortes, que os gestos divididos fossem encontro mais além do que uma ocasionalidade.
Mas em todos esses instantes continuou translúcido de que não, nada disso era possível, que você continuava lá, do outro lado da linha que separa amor de simpatia, ternura de gentileza, cumplicidade e companheirismo de amizade e afinidade aleatória sem grandes vontades e direções.
Sentada em posições de meditação, de resiliência diante das ondas suaves, mas traiçoeiras, que pendularmente me desequilibravam, movendo as areias sobre mim, enterrando-me numa cova rasa, meditando de olhos fechados numa penumbra esverdeada pelo sol brilhante que transpassava minhas pálpebras, ciente de que você estava logo ali, brincando com as ondas, arrebatadoramente bela, decorada com gotas salgadas e refrescantes em todos os lugares da pele em que eu gostaria de me aquietar ou selvageriar, ali, naquele lugar, sentindo-me infinitamente só, veio-me esta suposta interpretação do que eu poderia estar sentindo, que só depois pude perceber não ser de fato o que eu estava sentindo. Ad-miração, supus. Só me restava te admirar. Te olhar, da distância desse abismo de sentimentos desencontrados. Encantar-me com cada gesto teu do longe desta plateia em que me refugio. Colecionar em meus porta-retratos interiores cada jeito teu de olhar, dançar, mover-se, rir, falar, ouvir, dormir, observar, respirar, existir. A atração tão inevitável que ora eu sentia só podia ser bloqueada e meu inconsciente talvez inventou essa história de admiração para encontrar alguma alternativa aparentemente possível, viável, realizável, que não me levasse para longe de ti. 
Mas no instante seguinte em que te contei tal historieta que na hora eu supunha real, virei para a janela do ônibus, salpicada de fracas luzes amareladas, e chorei. Acho que o absurdo daquilo tudo saltou do meu estômago direto para meus lagos tristes, lançando ondas por sobre meus olhos, fazendo-me sentir absolutamente estúpido, irrelevante, insignificante, vazio, inútil, com frio e só... inteiramente só... 

VII
Esses dois dias... Essa cidade... Esse festival... Essa companhia...
 

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Enterre meu coração na curva do mar


Balança. Os pelos eriçados buscam manter as lembranças adormecidas. Encosta na parede, empurra, deixa-se flutuar. Recorta o vento com os dedos malqueridos diante dos olhos. O lamento agudo do frio vento desconhece destino. Corpo suspenso, adentra no transe triste de si sendo, desamparada, calada por dentro, inexpressiva, olhos vagos, míopes de sentimento, pele macia, inútil de afagos. Da varanda observa as sombras azuis na distância, luzes fingidas que nos chegam, já mortas, enterradas na retina. Levanta-se, caminha escura até a cozinha, aquece água para molhar a boca seca com murmúrios de folhas negras. Despede-se do sono que mentiu que vinha. Perdeu a vontade de sentir-se sozinha. Ouve o cansaço das ondas, beira-dor. Desce a escadinha que pisa na areia. Despe seus dedos dos pés até o limite dos calos, deixando o passado entrar por entre as unhas. A cada passo, um gole quente para suportar o espaço. A cada gosto, um pouco de si fica gasto. Para. Encolhe. Ajoelha. Deita. Escorre por entre os olhos algumas estrelas sedentas. Nada ouve, nada há para ouvir - o mar aquietou-se, o vento foi-se, o coração emudeceu. As mãos, esticadas ao longe, descobrem companhia nas pedras. Afunda, fundamentando-se na dor que lhe ancora a sina. Dor pesada de aislamento, olvida, deriva, lenta. Sente adentrando oceano,  mais líquido corpo a lhe envolver em anos. Percebe o vazio naufragado no peito, caindo profundo no abismo Atlântico. Desce ao fundo do fôlego, enterrando seus danos neste último plano.

Ao rumor de Dança I - Danças Ocultas