terça-feira, 31 de agosto de 2010

Não leia...

Olá, eu; olá você. Se te falo, na verdade converso comigo, pois gosto de ouvir a repetição de meus pensamentos... Não gosto de chamar de vaidade... prefiro nomear expressão. Evito a inevitável frustração da minha incapacidade verbal de traduzir satisfatoriamente o que penso. Ignorando esta sabedoria que pouparia o mundo de todas as orações, ou quase todas, faço como tu e converso. Raras são as vezes, de contar nos dedos, em que realmente me senti satisfeito com uma conversa, tive a sensação de ter transmitido qualquer pensamento de modo aproximado da semente que nasceu na minha cabeça e deixou escaparem raízes pela boca. No geral, são trocadas palavras vazias, atropeladas e entrecortadas, cada um interrompendo o outro com seus não-entendimentos e meias-explicações, findando-se o curto tempo de diálogo (ou duplos e simultâneos monólogos) sem nem a sombra de algum aprofundamento... é como transplantar as mudinhas da sementeira para a terra antes que tenham ao menos cinco ou seis folhas e já estejam mais fortalecidas. Inevitavelmente morrem. Assim são as palavras, nascem destinadas à coisa nenhuma além de nos aprazer de nossos belos pensamentos mal falados. E quando digo mal falado, não estou afirmando não haverem no mundo ou mesmo no meu círculo social excelentes oradores, capazes de se expressarem com graça e objetividade. Certamente que conheço vários... Mas que adianta? De que serve um belo discurso diante da memória de peixe dourado que todos temos e, pior, face a muralha da China de nossos próprios padrões de pensamento e atitudes? O outro fala e eu automaticamente faço uma releitura da sua fala "traduzindo-o" para minha forma de pensar. Ou então vou podando suas palavras, "corrigindo-o" mentalmente ou censurando as partes discordantes ou incompreendidas. Antevejo suas palavras seguintes, reprovando-as ou aceitando-as prontamente. Não há tempo... nunca há tempo para que a conversa realmente se torne algo... As pessoas não conversam por semanas seguidas, examinando os infinitos pormenores dos assuntos... Todos nós apenas brincamos de conversar... nunca realmente conversamos... E o que é este "algo" a que eu almejo que ela se torne? A certeza de uma mudança provocada por mim? Quero dizer (expressão que indica que tudo dito anteriormente foi dito sem querer ou que simplesmente ainda não tinha decidido o que pretendia contar?) que não importa o que digamos ou ouçamos, não há lições úteis ou conselhos proveitosos a serem recebidos ou doados... Que você não irá mudar a maneira como você vê o mundo amanhã por causa de algo que eu disse nem irá recusar algo de que você gosta porque eu mostrei o quão ruim isto pode ser para os pequenos agricultores ou para os pulmões de todo o planeta (ou ao menos os seus). Você irá colocar de lado todas essas palavras vãs e deixará que elas se dissipem no esquecimento como as cinzas dos mortos jogadas no vento. Os quebra-cabeças uma vez montados, dificilmente são desfeitos. Quando eu digo você, entenda que estou diante do espelho olhando para mim e apontando-me o dedo. Então não se sinta incluído nesta conversa. Te orgulhas dos teus padrões que ilusoriamente chama-os de teus. Os padrões nunca são feitos por ti. Aceite o fato de sua insignificância. És apenas uma roda dentada em milhões de engrenagens sem importância para uma máquina que alimenta-se unicamente da sua vida e não do teu bem-estar. Mas sabe-se bem que para que tu dês a vida sem resistir, é preciso alimentar tua vaidade, para que olhes para o manequim onde puseram teu nome e permaneças cego para tudo o que está em jogo... cego até mesmo para o que tu és. Como aprendemos a ser vaidosos? Pois atrás de tudo que fazemos, certamente há vaidade... seja tuas roupas, tuas escolhas, tuas palavras, tuas ações... esperas que as pessoas te vejam como queres que elas vejam, que elas percebam quem você "realmente" é... Se não fossemos vaidosos, todas as tentativas de distinções seriam desnecessárias... por que estampar um poema na camiseta ou calçar o tênis da propaganda ou ouvir a música padrão ou a dita não-padrão, para dizer-se de um jeito ou de outro? Por que dizer-se de um jeito ou de outro? Por que dizer qualquer coisa, senão para mostrar aos outros o que você acha que é, quem você se acha que é? Colocar uma posição tua que não significará nada para ninguém... Não, ninguém sabe quem você é... e, afogue-se na solidão de também não saberes quem é ninguém... Mergulhe até o fundo... e reze para chegar no outro lado do mundo... Talvez descubra o inverso da solidão... Qual é? Companhia?... Mas, voltando à ineficácia das palavras... Não estás entendendo nada do que eu disse... É certo de que estás entendendo algo, mas não o que eu disse... Por que o que eu disse não foi entendido nem por mim... Pois o pensamento dessas palavras aconteceu há dias, em um ônibus, no meu banheiro, sentado olhando para um professor duvidoso... E só agora pude tentar resgatar algo... Veja só como já começou errado. Mas, qual seria o começo correto? De todo modo, nesse momento posso repensar e, provavelmente pensar pela primeira vez... Não estou afirmando que não mudamos... Sim, mudamos constantemente. A maioria das mudanças nem são percebidas até nos pegarem de surpresa em um ato que contrasta com a nossa lembrança do que faríamos antigamente. Mas não foi por que alguém lhe deu um sermão ou contou uma história trágica. Foi puramente por que você quis. Ou por que você não quis... (provavelmente de forma inconsciente). De um jeito ou de outro, você foi o responsável, pela ação ou pela ausência... E essas mudanças estão intimamente relacionadas com os outros... Somos tão influenciáveis pelos outros que se soubéssemos, nossa vaidade não sobreviveria e todo o individualismo necessário para movimentar a economia do consumo teria sérios revezes... Na imensa maioria das vezes não são as palavras, mas os exemplos que nos fazem mudar, pela imitação deste ou daquele exemplo ou pela repulsa de algum antiexemplo. Que adianta eu dizer que amanhã será um bom dia? Não significa nada além de uma resposta automática à uma situação de tristeza alheia... Tanto melhor é estar do teu lado amanhã e ser o bom dia. É tão fácil dar conselhos que nós mesmos não somos capazes de seguir. Seja o seu conselho e quem sabe alguém te imite. Vê só a vaidade de querer ser imitado? É inútil eu dizer isso... De todo modo, é algo interessante de se examinar... meramente para passar o tempo... até irmos deixando de falar aleatoriamente e procurando formas mais coerentes de dizer algo. Talvez dizer algo através de uma música... ou então em um livro seja mais verdadeiramente comunicativo... Pois a conversa com a música e o texto (ou através de) pode ser mais demorada e profunda... (ao menos tem esse potencial)... ou não. Esqueça as palavras... Tente olhar nos olhos e usar os outros sentidos para conversar... Ou então respirar o mesmo ar e imaginar sentir o que o outro sente... Encontre a tua vaidade e converse com ela... descubra o que ela quer de ti... A quem ela serve, mesmo que seja a ela mesma, a ti mesmo e assim sucessivamente... E se pergunte - O que seríamos se não houvesse vaidade ou orgulho, se não impuséssemos um "eu" perante o "você" para nos protegermos ou nos vangloriarmos, se nada nos separasse de nada... (Você provavelmente não chegará a imaginar... ) Mas não tem problema, eu não estou falando com você.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A história de Bê e Jô

No princípio, era uma descoberta, uma sensação nova, uma fronteira inexplorada e emocionante... Foi ganhando formas as sensações e a alma mapeando as possibilidades conhecidas... Após, apresentou-se a dúvida, o ato incerto, seguido, tão rapidamente que o deixou incrédulo e um tanto indignado, de engano... resolveu não dar muito crédito. O momento seguinte foi conveniente para reestabelecer a confiança. Considerou um remédio apropriado, um aprendizado pouco mais concreto. Mas que logo perdeu a validade e tornou-se indigesto. Foi preciso abandonar. Enfim, deu-se a alegria de conhecer o entorpecente! Ah, sim, esse liberava o corpo das restrições, deixava-o suave, leve, instigado... Foi desfrutado por tempo considerável... levou a outros contentamentos interligados... E deixou uma marca de compromisso, quase uma cadeia destinada... Que foi preciso outro mais potente para desfazer e libertar. Livre de uma vontade de morrer típica do torpor prolongado, pôs-se primeiro na ânsia, no desejo... um desejo fatal... que captou todas as energias para si, multiplicou-as de modo sobrenatural, levou-as ao limite e ao êxtase... Para só então, presente da liberdade, derramar-se... tão rapidamente... rapida-mente... Que não durou nada... Mas ao mesmo tempo foi muito... mais do que poderia... E por sorte acabou, afinal, sabe-se lá. E as surpresas se acercaram dele e o presentearam com o delicado. O suave. O belo. Descobriu-se até que ele fizera gostar quem não gostava... E era maravilhoso... sim, sonhador... Mas não imutável. E sem perceber, foi-se transformando... E da emoção, revelou-se também a idéia... a troca de sensações comunicando o que se sentia no interior... Tornou-se, então, um laço, uma via, um canal para os sentimentos chegarem de maneira mais real... ou se equilibrarem... Um significado profundo... Uma história surpreendente de se perceber... com o coração...

A Linguagem, amor

A conversa
Transforma-se
Em novas formas
E meios
As palavras andam
incomunicantes
Conta esperando
Retornos e idéias
Um olhar pensativo
Percebe em reflexo
Perdido na mente
Voando alto
Estações assim
Causam estranheza
Quem pensativo fica
É o falador de horizontes
Melhor então
Guardar o dia
E por as sensações
Na ordem da conversa
E preferir ouvir
Quem gosta de contar
Talvez assim
Sinta-se melhor
Sem expectativas
Desnecessárias

Sente que a pele
Tem sido mais feliz
Do que a voz
E que os lábios
Têm dito mais
Juntos
Do que separados
E os olhos visto
Tanto melhor
Fechados

Deixe estar... deixe ser
Siga esse movimento
Conhecendo a melhor
forma de comunicar

Como incluir
Os próprios anseios
Sem falsificar
O resultado?
Espontaneidade
É sinônimo de
verdade...

Só quero, sim,
A verdade...

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Solo insone

O sono lhe era um fantasma chamado culpa. Passou os três primeiros dias sem conseguir dormir, angustiada, chorando e repondo a água de sua angústia em goles derramados pelos cantos da boca... O corpo amarrotado entre as colchas e edredons encardidos com sua dor e o abafado do quarto que já não via luz além dos filetes audaciosos que se esgueiravam pelo ar até o chão gelado, desviando e refletindo-se na espessa camada de tristeza que se arrastava pelo espaço aéreo, como águas mortas n'um rio fúnebre. Depois de uma semana trancada, o lugar já se tornava inabitável e assim também ela se sentia, incapaz de existir. O chão tornara-se uma armadilha de pó de vidro e cacos pontiagudos resultantes dos copos atirados contra as paredes, furiosa consigo pelo que aconteceu... Como podia ter acontecido? Como podia? Por quê? Ela só queria esfriar a cabeça em uma atmosfera longíngua, ir até algum lugar desconhecido e excitante, dançar toda a sua adrenalina para limpar-se das sensações acumuladas em tantos meses com aquele rapaz... para poder experimentar algo novo. Precisava de algo novo! Mas ao fim de dois meses de viagem, exausta e até um pouco subnutrida, resolveu-se por voltar... estava faminta de saudade... a ausência prolongada, nunca antes experimentada, a fez sentir algo realmente 'novo', de tal modo que não esperava. Até ela própria pareceu-lhe estranha tamanha era a vontade de revê-lo... e finalmente, decidida e apaixonada, fez o caminho de volta. Uma noite antes de voltar, sonhou com uma tempestade quebrando um barco ao meio. De alguma forma, ela observava do céu, como um pássaro acima das nuvens... Mas sabida pássaro, ignorou o naufrágio e pôs-se a voar o mais veloz possível, superou a cinzenta massa eletrizada e alcançou camadas mais calmas e amplas, esquecendo-se dos restos devastados de madeira que ficaram boiando pela superfície negra do mar. Quando acordou nesse dia, saltou da cama e correu para a rodoviária, em busca do primeiro ônibus que sairia para sua casa. Esperou lá mesmo as poucas horas até o embarque e deitou-se na poltrona ansiosa. Nunca lhe passou pela sua imaginação mais tenebrosa o que se seguiu... e tem a potente certeza que a atrocidade que derreteu seu coração jamais foi sentido por outra pessoa.. Quando uma tarde arrastou-se até a cozinha, deparou-se com o cheiro podre da geladeira, abandonada por meses... não havia nada que não estivesse vencido... Ah, tinha uns amendoins murchos e umas compotas de alguma coisa verde... Pegou o telefone e pediu desesperada por algo... os 35 minutos se passaram contados cada segundo lentamente... Comeu, enfim... e percebeu que o paladar desfalecera... a boca estava tão desiludida que se recusava a sentir. Deitou-se novamente, as mãos doídas, o corpo trêmulo, a alma condenada... Como pode ter acontecido? Nem pôde vê-lo uma última vez... nem tivera coragem para tanto... Não olhara para trás... não voltara... até que não houvesse para onde voltar... ela está em lugar nenhum... aquele lugar não é mais nada... Como se pela primeira vez ele se tornasse insubstituível. Tantas vezes antes passou perfeitamente bem sem... Mas agora que não o tem... o quer. No oitavo dia, já quase acompanhando-o, ela resolveu levantar e tomar uma chuveirada (se é que a água não teria sido cortada)... limpou os coágulos das mãos... os pequenos cortes profundos... os movimentos limitados... deixou-se ficar sob a corrente líquida por vários minutos, ouvindo o choque das gotas contra suas costas, seu cabelo. Depois saiu para a rua, com qualquer roupa, ver novamente o mundo... A dor já penetrara nela de tal forma que começava a chegar ao subconsciente e escapar do consciente... Respirava novamente... A perda se perdeu... em algum buraco que no futuro ela reencontraria... Limpou os cacos do chão, abriu as janelas... Fazia tudo sem si mesma... talvez ela tenha si perdido também... e apenas o corpo se movesse por autopreservação... Sem pensamentos... oca. Mas não podia evitar a dor em ver as roupas dele que restaram e as que faltavam... A ausência de símbolos... a resistência de imagens... Quando conseguiria olhar novamente para alguém? Uma tal ruína de suas idéias, conceitos e estruturas... uma morte vivida... mas ela passara pelo túnel e chegara ao mesmo lugar... Após tirar tudo de onde estava, por em outros cantos, pintar as paredes de um roxo-asfixia com pitadas de azul mar-morto... Foi-se atrás de algum emprego... as economias praticamente não existiam mais... E aos poucos, foi retomando o dia-a-dia... Recolocando as janelas próprias que quebraram... Não imaginara que o novo que foi atrás seria tão definitivo. Como mudar-se para um planeta desabitado... Mas ela iria repovoar seu mundo... era preciso. A culpa que sentia... pensara... lhe fora destinada. Tinha muito o que fazer com ela. Desistira de perguntar por quê. Continuava a chorar toda noite antes de despencar no sono. Mas agora parecia-lhe um ritual, molhar os lençóis sob a cabeça... Qualquer conhecido só descobriu que estava de volta algum tempo depois... ela não estava disposta a conversar... Faziam-lhe companhia, às vezes cozinhavam para ela... às vezes não apareciam... não importava. Quando as mãos deixaram, ela pôs-se a escrever... o que surgia... sem reler... passava a página para outras palavras soltas... O som estava quebrado... só tocava uma música só. Ficava a maior parte do tempo desligado. A única coisa que tinha vida naquele momento e garantia alguma existência era a horta que subitamente ela resolveu fazer. Observar o lento crescimento das ervas de chá e tempero ajudava-lhe a conhecer o tempo... colocar aquele verde brilhante em sua comida permitia restaurar o sabor... regar cuidadosamente nas primeiras horas da manhã davam um destino às suas lágrimas... a poda delicada ensinava-a a esculpir-se... os frutos mostravam-na como viver... a terra mostravam-na para onde ir.

Summer Dust - The Love Language - Uma música

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Provérbio Zen

"Um mestre Zen viu cinco dos seus discípulos voltando das compras, pedalando suas bicicletas. Quando eles chegaram ao monastério e largaram suas bicicletas, o mestre perguntou aos estudantes: “Por que vocês anda com suas bicicletas?”

O primeiro discípulo disse: “A bicicleta carrega, para mim, os sacos de batatas. Estou feliz por não ter de carregá-los em minhas costas!” O mestre elogiou o primeiro aluno: “Você é um rapaz muito inteligente! Quando você crescer você não andará curvo como eu ando.”

O segundo discípulo disse: “Eu adoro ver as árvores e os campos por onde passo!” O mestre elogiou o segundo discípulo: “Seus olhos estão abertos e você enxergará o mundo.”

O terceiro discípulo disse: “Quando eu pedalo minha bicicleta eu fico feliz". O mestre louvou o terceiro estudante: “Sua mente se expandirá com a suavidade de uma roda novamente centrada.”

O quarto discípulo falou: “Pedalando minha bicicleta eu vivo em harmonia com todas os seres sensíveis.” O mestre ficou feliz e disse ao quarto estudante: “Você pedala no caminho dourado do bondade.”

O quinto aluno disse: “Eu pedalo minha bicicleta por pedalar”. O mestre sentou-se aos pés do quinto estudante e disse: “Eu sou seu discípulo."


Retirado do blog Bicicleta Alternativa

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Borandá

A grama à noite é fria e úmida. Algumas luzes espalhadas e distantes dão algum sinal do caminho. O prédio lá para trás não incomoda... como uma montanha. O estranho cheiro de cevada já se acomodou nas narinas... a água de cor incomum faz seu burburinho de soneca. A espuma é amarela, a onda é dourada, o fundo brilhoso, como se todo coberto de pepitas de ouro e cascalho misturado. Caminha. Pisa na madeira, igualmente úmida com o sereno. Quase escorregadia. Passo ante passo, afasta-se da terra. Vê as águas de baixo de si, entre as tábuas. Ouve as vozes baixas mais a frente. Naquele quadrado de madeira ao fim da ponte, aquele pier no meio do lago amarelo escuro, extremo, marítimo, algumas pessoas sentadas, deitadas... ora no colo de alguém, ora no próprio chão... ouvidos na água, olhos nas estrelas. Tantas e incontáveis. Muitas mais do que podem contar os dedos e as verrugas. Chego. Sento-me. Comento sobre as roupas de órion, seu cinto, sua calça amassada, seus anéis perdidos dentro do aquário. Penso nos ancestrais que não estão lá. Na distância que não alcançamos... mais distante que o tempo... o passado, o perdido e o esquecido... mas ainda diante de nós... as estrelas... mortas... suas cartas brancas que nos chegam com mensagens sobre as origens da criação. A água e o horizonte ondulam como uma música em transe... os que estão ali estão ausentes... a madeira desaparece... a água cala. O universo derrama-se... as estrelas caem. As pálpebras se fecham ante as janelas do mundo. A praia do lago, a ponte para o sempre... o lobo da colina azul... A passarinha com olhos grandes, bico risonho, penas macias... desce a0 mundo e abraça o camundongo para levá-lo e ensiná-lo a voar... fazem-se um e mergulham no marinho do céu. Durmo ali... manhã cedo, frio intenso... braços cruzados... ali.
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Ritmo

Passeando na rua, sobe no carrossel velho no meio da praça. Girando ao som da fúnebre música alegre, observa o mundo como a lua, pálida, distante e fria... Os cavalos trincados rangiam n´um coral de gemidos... as carruagens vazias corriam em círculos... As pessoas na rua não o viam naquele camarote escuro... seguiam suas conversas, suas alegrias, suas iras e estórias desconhecidas... Um momento para observar... para sair do plano para algo paralelo, algo atrás... da cortina do espetáculo... Ela dança... ela drama... ela tanto... ela nela... ela alcança... ela cansa... ela ânsia... ela espera... ela enérgica... ela festa!... ela ela... / E lá, tão longe, vê o sorriso dela... quando está só ela... antes do carrossel de fotografias tragicômicas... Ela sentiu algo que há muito não sentia... Ela feliz de formas antigas... Ela saudade dela?... No outono caem as folhas... as árvores secas recolhem suas forças... para o interior dos galhos e das entranhas... Despidas, finas, famintas, as árvores nem tão vivas, nem tão cinzas... amareladas no chão varrido pelo vento... cobrem as superfícies com camadas de pálpebras... olhos cerrados até a primavera... A onda vem e vai... a praia sobe e desce... afastam-se e unem-se como uma forma de soneto de pés valsantes...
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terça-feira, 10 de agosto de 2010

Outubro

A casa tinha vários vazios... dois tapetes grandes no chão da sala. Algumas almofadas espalhadas... felpudas... fofas... As paredes eram pintadas uma de preto, outra de branco... duas de azul escuro... alguns jarros de plantas pelo chão... alguns pendurados no teto... outros amarrados na parede... A parede branca era a tela projetada com filmes. Havia uma caixa decorada com recortes onde se guardavam os filmes. Muitas pilhas de livros e prateleiras pregadas aleatoriamente... a anti-simetria era o toque de decoração predileto. Alguns tijolos pintados aqui e acolá servindo de suporte para livros, estantes, portas. Uma fonte n´um pequeno móvel de madeira circulando as energias da casa. Alguns cataventos na janela para zunir a brisa. Um balãozinho roxo e florido e seu balonista pendurado no canto do teto. Algumas frases escritas em momentos certos refletindo nas paredes e nos espelhos... Uma cesta de frutas n´um canto. Flores sobre livros cobertos por um paninho delicado. Alguns instrumentos musicais inspiradores espalhados por aí. Fotos jogadas em baixo das coisas e pregadas com durex nas superfícies. Janelas muitas e redondas. O céu era parte da decoração também. Chamamos os amigos e passamos quatro dias deitados, fazendo malabarismos com palavras, pirotecnia com poemas, equilibrismo com mímica e palhaçadas com filmes. As receitas inventávamos na hora com o que estivese à mão. Cada um trouxe uma coisinha de casa para alimentar os apetites. Pelo fim da tarde era um silêncio de cada um no seu canto... Um lia um livro, outro mal-me-quer-bem-me-quer n´uma margarida, a menina de lá descascava uma tangerina e o rapaz mais alto olhava pela janela as formações de nuvens... Os dois daquela casa deitados na rede balançavam-se... Era muita coisa acontecendo e tantas pequenos acontecimentos sendo... Qualquer música alguém botava para tocar... e à noite era de festa...

Festa para comemorar a boa estação... a nova estação...

Ainda lá

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Cai uma gota... outra respinga... estoura aquelas moléculas minúsculas de água contra a superfície lisa da pedra no leito do rio... fina garoa... só para umidecer a folha das árvores e a tez... granular o cabelo de gotículas brilhantes... salpicar os óculos de espelhos circulares... esfriar a brisa e a alma... o cascalho molhado estala a cada passo... a água corrente do rio vaporiza o ar, cria pequenos arco-íris... Após bom tempo de caminhada, despe-se da camisa, dos sapatos, dos anéis... tira a amarra do cabelo e coloca-a no pulso (para não perdê-la) e entra... Sente a pele tremer de súbito... os ossos se espriguiçarem de susto... a respiração acelerar n´um pulo... dá braçadas, gira... mergulha, sente a água fria no rosto... sente as pedras no fundo... as ondas nos cabelos, a umidade na boca... nublado, a luz é amena... pernadas fortes para manter-se na superfície... energia... o frio desperta o corpo... vitalidade... Nada em direção a ela... se olham... se aproximam... suas peles se encontram... os narizes se encostam... não piscam... o máximo possível... olhos nos olhos... castanhos escurecidos... como uma madeira antiga mas alegre... as sobrancelhas pingam... os narizes gelam... as bocas respiram... os ouvidos confundem o murmurar da água com o do peito... mãos dadas, flutuam... chegam ao céu com a vista... desfazem as nuvens como algodão... bebem a água sem querer... matam a sede das mãos... navegam até uma pequena ilha... colhem dela uma maçã fria... mordem o mesmo pedaço... escondem-se na semente...
e deitam no chão...
.
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Se há solução, por que se preocupar? Se não há solução, por que se preocupar?


Alcançar o destemor...

Alcançar?...

Quem não teme, teme não temer?

O que é temer? O que é o medo?

Quantos paradoxos e contradições do pensamento...
Como transcendê-los pelo próprio pensamento?
Como utilizar a lógica, se ela se emaranha?

Então... há apenas a inexistência de resposta... - Não há...


Nem temor nem destemor... Não há medo, não o tenho...
Não há alegria nem tristeza... pois caminho pela vida
Não existe ansiedade nem excitação... há o impulso de viver
Não há a certeza nem a dúvida... apenas é o que é
Não há dor nem prazer... há o sentimento pleno de todos os sentimentos
Há todos os risos e todas as lágrimas...
Há todo o amor... toda a luz... toda a treva... toda a vida...


Uma noite sentado no colchão sobre os lençóis amarelos da simples generosidade, procurava imagens que dessem cores vivas e linhas firmes à lembrança querida... Outra noite ouvia as sílabas saborosas nos poros de meus sentidos... N´outra, deitado no ar engaiolado, senti a falta do abraço aconchegando minha alma... Sinto tantas faltas...
Por que senti-las?...
O que me falta?...
Nada...

Então não há faltas a sentir...
Nem presenças a reafirmar...
Elas são e isso basta.
O dia não reafirma sua presença com brilhos inesperados...
Ser como o dia que é, nos tempos que lhe são próprios e que só ele determina...

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Duas meia-noites...


Busco refúgios às dores que me causam... encontro explicações que me protejam... Traço um caminho com as minhas pedras... deixo que se quebrem as pedras alheias... às quais, antes, partiram sob meus pés... Procurei-me nos outros e não olharam para mim... Hoje me pergunto "por que deveriam?"... Apenas é o que simplesmente é, apenas fazem o que querem fazer... como eu iria impedir? Não existem meios para tal. E hoje eu não espero por ninguém, não espero que ninguém apareça, nem conto com essa presença incerta... Quem está ao lado é contemplado e tratado como dádiva... Algo que me é dado pelo caminho da vida... E cabe a mim viver esse momento. Quem me acompanha nesse caminho, é tida como a graça... a bela e infinita graça de duas flores entrelaçadas descendo a corrente do rio... Não a procurei, por isso a encontrei. Não me obrigou, eu simplesmente a amo. Ninguém se conquistou, mas nos cativamos e nos apaixonamos. Afinados como um acordeão e um baixo acústico... em uma valsa de duas meia-noites.

Mas, aprendiz eterno, vez por outra erro a nota, esqueço um acorde, e desafino... e o som causa mágoa... e a mágoa acústica me estremece o peito, esmaga o estômago e enregela a mente... Quero aprender... quero que a música seja perfeita... todas as notas deste dueto harmônicas, belas, uníssonas... mas às vezes erro... não quero perder a música... temo que se partam cordas e se apaguem sons que eu amo... Rogo para que esta canção seja tão natural que se recrie após as tempestades, que as sementes jogadas a cada dia nasçam, refazendo as paisagens danificadas pelo erro... meu erro... A Natureza é eterna e infinita... espero que nossa música seja assim, natural... (eu sinto que é...)


"A dor é inevitável, o sofrimento é opcional"... dizem que disse Carlos Drummod.


Me dói quando faço sofrer...