terça-feira, 22 de abril de 2014

Contos da Cidade Cinza

I

Imagina que tu vive com toda a tua família numa casa. Nessa casa está tudo que vocês tem, toda a história, riquezas, belezas, tudo que vocês consideram importante e sagrado. Imagina então que chegam estranhos, seres desconhecidos muito diferentes de você. Você olha para eles, eles olham pra você. Você é amistoso, eles fingem ser. Você vira as costas, eles violentam você, toda a sua família, mata quase todos, rouba tudo, pisa e quebra tudo que existe em você. E não vão embora. Ficam na sua casa e sugam seu sangue nos séculos que se seguem. Um dia você vai na casa deles e vê todas as coisas lindas que eles construiram com tudo que eles roubaram da sua vida, do seu mundo. Você acha bonito?

II

A diferença de estar em (uma) casa e estar em um hotel, albergue, espaço institucional, privado e explorador de hospedagens, é que em uma casa você sente que pode cuidar, que pode cultivar, pode estar naturalmente, preparar um sanduíche na cozinha, ler um livro gostoso deitado no chão da sala, conversar até tarde no quarto, fazer a feira, ficar a vontade... A diferença de ser recebido por um recepcionista frustrado que se conecta num anestésico em todos os intervalos que consegue e ser recebido por uma pessoa querida, conhecida, com quem é bom conversar é que... precisa dizer? Por favor, façamos amigos, não façamos reservas de hotéis...

III

Pra que lado fica a estação da Consolação? Ela pergunta para uma moça bem vestida, bonitos sapatos pretos, altos, saltos, que não sabe se deve responder. Afinal, quem pergunta é negra, cabelo de negro, sorriso de dentes incertos, roupa simples. Passo ao lado. Ela me pergunta. Eu não sou daqui, mas tento responder. E penso ´estou indo pra lá. Vamos. E começamos a conversar. 'Você está indo pro trabalho? 'É, trabalho na limpeza do shopping da Frei Caneca. Pego às 10 (da noite) e largo de 6 (da madruga). Mas a gente termina de limpar tudo pelas 5. Às vezes até às 4 e meia. ´E o que vocês fazem então? ´A gente dorme... ´Dorme? Como? Onde? ´No vestiário. ´No chão? ´Tem uns bancos lá. Eu tenho um cobertor lá e tudo. ´Tu leva todo dia ou fica lá? ´Fica no armário... ´Podes crer... E porque vocês não vão embora, se acabam o serviço mais cedo? ´Porque não pode. Se o encarregado passasse o cartão, era ótimo, mas não pode. Temos que bater o ponto. ´Porra, que merda. Se vocês pudesse ir embora, poderiam dormir melhor, aproveitar melhor a vida e trabalhar melhor no outro dia, nera não? ´Se o encarregado deixasse, era ótimo. Mas pelo menos esse encarregado não pega no nosso pé. ´Foda. ´Ai, to sem dinheiro, você tem cigarro aí? ´Não ´Preciso correr uns cigarros até chegar lá, porque não dá para passar a noite sem cigarros. ´Pode crer. ´Moça, você tem um cigarro? Para um carro para esperar o sinal abrir ´Me arranja um cigarro? Ela consegue todos os cigarros que precisa. ´Ontem foi aniversário do meu neto, fiquei sem grana. ´E o que teve? ´Ah, teve bolo, brigadeiro, pinga. (Eu me diverti com a parte da pinga) ´E ele tinha quantos anos? ´Um ano (e tomando pinga, pensei eu). ´Como é seu nome? ´Poliana. Eu vou entrar aqui. ´Té mais. Disse eu. E segui meu caminho atrás de jantar.

IV 

Caminham. Nessa cidade tão cinza de tão grande, onde as ruas não acabam nunca e o que é perto é longe, andar muito é normal. Histórias e ideias não faltam, mas a linguagem é tão não-linear. Da mãe doente, das empresas escrotas que demitem os funcionários por estarem doentes, dos paradigmas e dos históricos dos termos do dia-a-dia de sujeitos cheios de novas palavras para dizer o mundo, das viagens doidas, das pessoas lindas que não fazem meu tipo, de novas teorias sobre a origem da dominação e sobre experiências de psicografia e mediunidade e drogas e tudo que está dentro e o que vai além. Enquanto isso, procurando a rua da abolição, sem bons e velhos mapas analógicos na mão, tendo que se contentar com essas novas-velharias modernas touchi que merecem ser roubadas, procurando um cantinho tranquilo pra sentar enquanto o destino não abre as portas, procurando um milk-shake impossível numa segunda-feira de feriado.

V

Viajei para encontrar alguém. Encontrarei? Depois para conhecer vidas profundas. Madruguei. Depois para ler a minha história. Embebedei. Depois para conhecer inspirações. Inspirarei. Depois para não me perturbarem, querendo paz e vadiagem. Garoarei. Depois para andar e me perder. Mapearei? Depois para escrever-me em todo o mundo. Me esparramei.

VI

Antes de dormir e durante toda a noite, a menina de cabelos loiros ondulados dá mais um gole de água em sua enorme garrafa amarela. ´Nessa hora é que tenho paz para beber água.

Nightwalker - Alice Braga fazendo Thiago Pethit se tornar suportável...

domingo, 20 de abril de 2014

Manifesto ou Indigesto Aleatório


A palavra Aleatório é por si mesma aleatória. Que vem a ser aleatório? Todas as possibilidades e nenhuma? Que vem a ser uma pessoa aleatória? Que é qualquer nada, insignificante? Ou imprevisível e inquietante? Que seriam ações aleatórias? Despropositadas e fúteis? Resistentes e incontroláveis? E o amor, a vida, o destino, que mais se pode dizer senão que são A-le-a-tó-ri-o? Tó-le-a-ri-os-a? Le-a-ri-os-tó-a? Faz diferença a ordem? Ou impõe-se mesmo a incompatibilidade com a ordem?


Toda forma de controle da vida é imediatamente motivo de chacota, de erro, de acontecimento impensado, não planejado, de ação aleatória. Que direi eu do que você reluta em me contar? Temes uma resposta que presumes. Por que não ousar? Deixar as improbabilidades guiarem... afinal, elas já farão isso de toda maneira.

Aleatório – acasos? Quantos acasos são precisos para que sejamos quem somos? Amemos quem amamos? Odiemos o que odiamos? Queiramos o que queremos?

Quantos intrincados quebra-cabeças de peças perdidas em palheiros compõe o que chamamos de nossa história? E a história da humanidade? Como seria, se algo tivesse acontecido de forma diferente? Mas não, por um acaso, aquela revolução não deu certo, a outra sim, aquele inventou foi esquecido, o outro não, aquela conquista foi duradoura, a outra desfez-se, aqueles se uniram, outros quebraram-se. Aleatório? Ou precisamente calculado segundo regras infalíveis? Que regras? Que medidas ou trilhos podem ser traçados?

Quando se encontram todas as respostas – a vida muda todas as perguntas?


17/04/14 – Em algum lugar entre Bahia e Minas...


Imagem: Paul Klee

Sigur Rós - Varðeldur - aleatorizando-se

sábado, 19 de abril de 2014

Registros...



Mais uma vez atravessando o país nesses confortáveis veículos sobre rodas, lentos, caros, rodoviários, chatos. A paisagem de milhares de quilômetros, intermináveis monoculturas de cana pernambucana, estradas sergipanas sem fim, desérticas plantações de eucalipto baiano. Uma carona até metade do caminho, uma aposta para a outra metade. Afinal, quem sabe se haveria lugar no próximo ônibus na mais fria cidade da Bahia. Teria que esperar até o dia seguinte, teria que dormir sabe-se lá onde, justamente na época mais tranquila, greve dos policiais, saques nas ruas, alegria alegria. Afinal, consegui entrar e partiu.

Imaginação vã, supõe-se que no primeiro trecho, acompanhado de tantas e tantos semi-desconhecidos ou quase-conhecidos, uma infinidade de conversas, histórias e planos estariam no roteiro. Nem tanto. Poucos papos, uma ou outra possibilidade futura estabelecida. Uma queda ou balanço aleatório, linda demais para se tirar os olhos, mas sem ânimo para dizer algo mais. Já no ônibus de linha pensei “é a primeira vez que viajas para longe, para encontros políticos, com a galera? Minha primeira viagem também foi aos 17”. Teria então várias histórias para contar. Poderíamos ter tido boas conversas. Nada disso me ocorreu quando era oportuno.

Outras lembranças. Ao final do ano passado tudo parecia bem entre ele e ela (não a do parágrafo anterior, outra história mais antiga e dolorida). Partiu em mais longa viagem, até o outro lado do continente-país, tudo estava bem entre eles. Há muitos meses não a sentia tão perto, tão afetuosa, tão querida. Na volta, como gosta a vida, estava tudo mudado. Outros caminhos. Portas fechadas. Encruzilhadas, trilhas intuitivas... Seguindo os caminhos com menos mosquitos, ou aqueles que levam a melhores lembranças futuras.

Viagem de poucas conversas. Mais dois achados. Centenas de páginas lidas. A maioria delas de um livro emprestado. Autor inédito, anteriormente estranhado, com o qual tinha uma postura relutante. Diria este velho bêbado algo que preste ou só mais um punhado de frases aleatórias? Não conseguiu parar de ler. Sofreu para devolver ao dono na hora do adeus. Precisa encontrá-lo na primeira livraria.

Um dia inteiro só. Para ler, pensar. Uma viagem para estar só. Reorganizar as gavetas, os papéis, os anéis, os dedos. Para parar-se, reduzir-se, aquietar. Andar por andar. Ir por ir. Por que está fazendo esta viagem? Qual a explicação? Vários motivos, mas motivo nenhum. Uma pessoa? Uma visita? Um encontro? Um trabalho? Uma pesquisa? Uma partida?

Uma forma, digamos, de sanar a vontade de ir embora e ter vontade de voltar...


17/04/14 – Em algum lugar entre Bahia e Minas...

terça-feira, 15 de abril de 2014

nadando


O que não sei fazer desmancho em frases.
Eu fiz o nada aparecer.
(Represente que o homem é um poço escuro.
Aqui de cima não se vê nada.
Mas quando se chega ao fundo do poço
já se pode ver o nada.)
Perder o nada é um empobrecimento.


Manoel de Barros

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Arvore-ser


É preciso deixar viver, saber que tudo é diferente, que o que foi nunca mais será, não precisamos temer que as coisas se repitam... Pode até lembrar, ser parecido, ter semelhanças, mas é outra realidade, outras circunstâncias, é outro mundo e outras pessoas completamente diferentes que estão se realizando... Até você mesmx é outrx completamente diferente...

Abandonar a sensação de abandono... admito, esta sensação me ocorre: nesse meu caminho aberto, que xs outrxs não estão seguindo, caminho junto... até que se fechem e eu fique do lado de fora... Essa sensação de que a necessidade de exclusividade, de estar da forma tradicional, em que sabemos que o outro é só nosso, sob nosso domínio, é algo que no final vai afastar as pessoas... uma sensação ruim, desnecessária, pois esquece que tudo está em movimento... se o outro quiser ir, vá... que esteja bem onde estiver, que o bem-querer não prende, confia no estar livre e o que acontecer, é... logo, não aceitar é perder-se, estagnar... 

Sigo, entrego, sem ressalvas, sem medos, sem apegos... afirmo, se ora esqueço... descubro na vivência permanente, me transformando, me realizando... 

Sem medo, só movimento... plantando e colhendo...

Fortalece Aí - Wado - passando

"Hei de morrer de amar mais do que pude"...


As crises impulsionam, as contradições agitam, as angústias anunciam movimentos, porque não podemos suportá-las por muito tempo. O que queremos e o que querem para ou por nós, o que pensamos e o que pensaram sobre e para nós, os caminhos que traçamos e que traçaram... conflitos e alívios, apoios e prisões, aceitação e transgressão...

Me ama e talvez não possa me amar, pois o amor é muito e tanto não dá. Por que por amarmos mais, não podem nos amar? Por que o amor quer só para si? Por que não amar pelo amor que tem, pelo amor que é, entrega pura, partilha da abundância?

A tarde está morrendo e a lua já vai alta, envolta de grandes tão grandes nuvens laranja florescente... Não sei se amanhã poderei falar contigo ou demonstrar-lhe meu carinho... se irás querer este afeto, se preferirás esquecê-lo... Sigo sentindo atentamente as possibilidades, guiando-me no movimento que segue, indo para onde ele vai, evitando as pedras, nem sempre conseguindo, cheio de adrenalina, sempre sorrindo...

Cada instante é um ritual sagrado. Celebro a existência que está sendo comigo. Cuido com toda a magia que me é a linguagem - dos gestos, dos versos, da energia. Agora caminho pela rua, encontro conhecidos, me sou desconhecido. Agora sentado na mesa, escrevo o que me ocorreu no trajeto do ônibus e já não me lembro...

A tristeza sensualiza a alegria, dando-lhe toques provocantes e subescuros... Os olhos baixos do bem-querer preludiam olhos fechados do bem-sentir... A canção inventada nesse instante expressa: amo mais, assim afirmo minha vida...

Dance with me - Nouvelle Vague - uma música pequena estranha...

domingo, 6 de abril de 2014

Aberto

Amor... 

"Te amo como quem não teme", como quem não teima em apegar-se a sombras (de amanhãs, de certezas, de seguranças); Te amo pois reconheço como és única, como és viva, como se moves pelo mundo e por si mesma numa dança que é a tua beleza; Te amo porque te quero livre, sem nada que te impeças, te limites, te restrinjas o amor, pois que o amor é tudo, é mais, é mar que nenhuma praia contém, que avança, desfaz dunas, recria paisagens e submerge no infinito profundo; Te amo porque te amo, um amor que lhe dou e que é seu, que não posso reter em mim, pois é mais do que eu e me faz sempre mais... é seu, não como uma posse, mas como um presente, um encanto, um mistério que transcende nossa compreensão e nossa sensação... Amor líquido que nutre, mas ninguém segura, refresca e vai com o vento... Amor que alimenta agora e que confia na abundância da vida a cada agora... Que confia no movimento que está sendo, que ama a si, que ama a tudo, que resplandece e brilha... 

O diálogo profundo e sincero entre os corpos, na sua linguagem própria, em seus sonhos de corpo e caminhos de corpo; E o diálogo profundo e sincero entre consciências, eus, que se sentem e buscam conhecer atentamente, que se deixam transparecer, que se permitem conhecer, que se conhecem pelos olhos e sentidos do outro, reciprocamente... Essas duas vivências tornam uma relação mais, além... Quando se sente isso com alguém ou alguéns, pode-se construir mundos, pode-se realizar o sonho, pode-se viver a vida mais... 

Que o medo não impeça o amor nunca, que a vontade de estar junto supere tudo que reprime, que quanto mais amemos, mais amor tenhamos para dar...