quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Ciclos espirais


Uma comunicação silenciosa. Ele é antisocial? Há um charme no autismo. É bela a aparente desconexão. O paradoxo é que enquanto se penetra no universo, se é visto como margem, distância... Consegues passar o dia inteiro sem proferir palavras? Qual o poder e o impacto delas? Diz-se que os livros nos afastam. Imagine, preferir deitar-se n´um canto solitário, acompanhado de maravilhosas centenas de páginas à estar no meio das pessoas, conversando sempre coisas vãs, assoprando o vento com idéias de plástico... Construindo pontes de barro molhado, deslizando na lama...
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As palavras escritas podem ter mais cuidado... elas levam mais tempo... podemos entendê-las melhor... E se todos se comunicassem unicamente através de carta? Ah, o esforço de escrever, o trabalho despendido evitaria muitas cartas desnecessárias...? Escreveríamos estritamente o necessário? O valioso a ser dito?
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Mas, e a beleza da voz se perderia no silêncio?... Nossas majestosas cordas vocais, que se faria delas? Atrofiariam?... Seria natural a mudez?... A música e a poesia poderiam preencher esse espaço, esse vácuo, esse éter... Mas e quando até a canção cala?... Quando a poesia cansa?...
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N´um mundo perfeito, escrever sobre o quê?...
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N´um mundo perfeito, falar o quê?...
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Apenas frases de ordem prática - Por favor, pegue isto para mim. - Já estou chegando - Posso te fazer algo para beber? - Ou qualquer coisa desse tipo...
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A beleza perderá sua razão, pois torna-se-á universal... Tudo se perceberá belo e assim, será simplesmente repetitivo apontá-la...
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A bondade, igualmente... A liberdade e a justiça... Todos os nobres valores desaparecerão da vista... tão somente porque serão plenos... não haverá contrastes que os tornem visíveis...
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Um mundo sem contrastes? Poderemos desejar outra coisa e haverá algo menos desejável? Mas isso é um sofisma, uma interpretação errônea da igualdade... A igualdade será rica em suas possibilidades inovadoras... A inovação será o caminho de cada um... Ou a simples tranquilidade das coisas simples...
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Até mesmo as palavras vãs podem ser elogiadas enquanto notas musicais de nossos timbres particulares... Apreciar a maneira tão única de pronunciar as palavras que cada um tem... E assim, a extinta estética renasce... e a razão de sua morte é também o que a faz resurgir... Tudo se torna estética e forma de beleza... e contentamento... E no silêncio poderemos perceber cuidadosamente cada detalhe do outro... E não cansaremos nunca, pois há milhões de outros, de átomos, de estrelas e personalidades... O que torna a Unidade possível e suportável é a variedade, a diversidade... Só porque é tudo diferente é que conseguimos ser iguais e uma unidade. Essa é a chave... mas não é a única, é apenas uma... de incontáveis... Incontáveis portas, janelas, passagens... para todos os corações e inspirações... Cada um de nós com milhões de fechaduras ornamentadas, rústicas, sofisticadas e toscas... E uma brincadeira eterna, um jogo divertidíssimo e inesgotável de detetive, investigação, desvendamento do majestoso véu da realidade... da eternidade... do mistério... Viva! Vive-se a mística da percepção-ativa... da ação-perceptiva...
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Viva...

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

(insônias)

Ela não me olha nem me toca. Há uma camada de ar espessa entre os corpos. Mas a insistência é maior. Afasto com os gestos a névoa que tenta impedir-me de enxergar. O frio tenta apoderar-se do corpo nessa época, mas não é o bastante. Persigo seu olhar, e ao encontro...
- Eu preciso saber...
- O quê?
- Não posso ficar sem saber...
- Eu te digo...
- Por quê... por quê... estamos... juntos?
Um leve silêncio flutuou, pousando sobre a mesa úmida.
- Por quê? Queres saber?... Porque um mais um continua sendo um... Ou talvez a lógica matemática não sirva para explicar... Porque todas as cores juntas se tornam algo como a luz... Mas isso não te responde... Respondo que é uma música que não precisa de ondas sonoras, nem de notas, nem de ouvidos... Não faz sentido... Então não há resposta... Nem racional, discursiva, matemática... Estamos juntos unicamente porque não poderíamos estar em outro lugar... Nem ser de outra maneira... Porque o Ser e a vida são, aqui e agora... eu e você... e mais nada...

terça-feira, 30 de novembro de 2010

I


Ante a perspectiva do fim, eu sorvo

Cada partícula sem amanhã
Com intensidade plena
Conhecendo apenas o agora
Eu sirvo tranquilamente ao seu prazer
Seu crescer, seu pacificar
Diante do abismo da tristeza
Eu entrego o bater do coração
Nas tuas mãos sagradas
Perante a dádiva de ser parte
De tudo (e de ti)
Eu apenas sigo o caminho
Da sua respiração
Extático pela tua graça
Me derramo na tua pele
Na tua expressão viva
Em cerimônia, ritual, celebração
Da existência - do ser


Ausencia Praia - Antônio Pinto - trilha sonora À Deriva - uma música

Mera testemunha


Pernas cruzadas...
Um fio de água flui pela fonte de bambu...
Límpida e fresca
A mente repousa no vazio
Da árvore pendem as flores
Recém nascidas...
Não se lembram de suas irmãs desfalecidas
Da estação passada
Levanta-se e anda
Umedece as mãos e o rosto
Dedica bons pensamentos
À grama e ao arvoredo
De um instrumento de corda
Intui uma nova canção
Canta as palavras que florescem
E recita versos sem pressa
Nutrindo-se da polpa da vida
Pés conectados à terra
Planta sementes de alegria
Despe-se dos tecidos e mergulha
Flutuando sem peso e sem controle
As gotas lhe evaporam o calor
E animam os músculos ao cuidado
integral de tudo
Do corpo, do ambiente, do espírito
Das pessoas
Ouve súplicas e consola
Enquanto seu interior consola-se
Naturalmente partilha
Sua energia vital
Pois que não é sua
Nem pode ser retida

Sua dor e insegurança
Desespero e carência
Sua solidão e fragilidade
Medo e desamparo
São aceitos como elementos
Da gratuidade
Do fluxo irregular e diverso
Não teme o nascimento,
O envelhecimento,
A doença ou a morte
Se regozija com a verdade
A simples verdade do que é...

Tr´alma

Já me embriaguei de remorso
e criei calabouços e labirintos no subterrâneo
da pele e do nervo
Derramei chumbo nas veias
e deixei esfriar e endurecer...
Já me circundei de espelhos retorcidos
para ver a dor que causei
como minha própria dor
Deixei se apoderar da vista
uma camada de lodo
e diluir-se o tato sob a poeira
Condenei-me, então, a uma prisão de carne
onde tranquei meus medos
e a insegurança
cultivada a custa de (auto)desconfianças
E perdas

Por essas grades
entre meus dedos
desmancharam-se as asas
do enlevo
Para só então, irremediavelmente perdido
encontrar um caminho
Que as transpassou

Foi um pássaro branco, olhos castanhos
O guia nesse desmanchar
do passado
Levando-me pelos galhos, pelas nuvens,
pelo ar

E agora
Abóboras despedaçadas
Decoram minha alma
E goteiras infinitas
fazem chover aqui dentro
O chão torna-se demasiado
escorregadio
para dar passos invisíveis
E mil afluentes unem-se
a esse rio apertado
que se arrasta, cinza
sem nunca chegar
ao abraço do mar...

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Om.


Uma,
Duas,
Três...
Os relógios pararam
O tempo segue com o correr da lua
Brincando no tobocã do céu
Entre praias de estrelas
E o vácuo infinito

A sua silhueta determina o horizonte
O desejo se torna um rio
Corredeiras e calmarias se confluem
Descendo suavemente
Seu caminho natural
ao todo oceano

Movimento mútuo incessante
dois lados inseparáveis
eu e você já não existe
nunca existiu de fato
Superando as neblinas do mundo
Surpreendemos a unidade

A dor e o amor não diferem
Não existe um sem o outro
A ausência e a presença são iguais
o ser é em todo lugar
Não se engane pelos sentidos
Antes transcenda suas formas vagas
Veja mais que os olhos
Sinta mais que a pele
Ouça mais
Prove mais
Perfume...

A química do espírito
Descobre que todas as substâncias
Estão conectadas
E o vazio é a essência do universo

Uma
Duas
Três
Sem fim o tempo
Nos consagra
No êxtase (do) real

terça-feira, 26 de outubro de 2010

"Caminhando e cantando e seguindo a canção!"


Vem! Caminhar é preciso. O infinito é mesmo ali.
Deixe transbordar o suor. O que conta é somente a vida.
Há mais adiante um campo com água limpa e farta comida.
Foi na carta vinte e nove que tudo isto eu senti.

Nossas crianças (ciganas) são flores, donas do horizontes.
Nossas mulheres (cinganas), rainhas. Do amor doce fonte.
Os velhos (ciganos), nossa segurança. Minas de imenso saber.
Os homens (ciganos), muralhas serenas a nos proteger.

Creça, melhore, evolua, você que ainda é humano.
E um dia, quem sabe, poedrá até chegar a ser cigano.
Viverá com nossa ciência. Sorrirá com nossa alegria.
Saberá viver antes do sol e fazer o seu próprio dia.

Siga os sentimentos puros e espalhe alegria em seu caminhar.
Siga a estrada da vida. Faça do bem seu eterno altar.
E tudo o que for bondade, siga. Dance nossos cantos ufanos!
Siga-nos, Siga-nos! Seja feliz. Siga os ciganos.

Sungrê de Arael Magnovitch
(Sungrê é uma música de Caravana. Dá ânimo para a caminhada.)

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Entrópico

Procuro o não-procurar. Anseio por esse estado de inexatidão que exala seu próprio cheiro, quer atraia abelhas ou moscas. Procuro a imprecisão da vida que não se importa consigo, mas antes, com a ventura imperativa de viver, ainda que, ou principalmente, tão íntima do risco. Não quero saber do dia de amanhã. Não quero o que comer. As frutas que caiam das árvores ou que o mel atinja minha boca com um ferrão suicida.
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Procuro a iluminação. Só para ter o prazer de apagá-la, a cordinha-lâmpada do porão do paraíso.
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Iconoclasta... derreto o plástico com as mãos e devolvo-o aos veios negros da terra, desmanchando os deuses de todas as ré-legiões.
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A verdade é uma vícera comida por urubus. A honra é uma cerimônia canibal. O orgulho é o sadismo do escravo de si mesmo. A bondade é uma televisão em chamas.
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Queimo pneus para promover a acessibilidade aos cantos da alma. Quebro vitrines para distruibuir o vazio da vaidade. Escolho a nudez para reclamar a carne podre e congelada pelo pudor. Defeco no passado para purificar a esterilidade da tradição. Corto os pulsos para sinalizar os caminhos dos vivos...

Religar

O que me religa é a liberdade. Sem guias, sem leis, sem padrões ou referências... Toda e qualquer coisa aceita são violências... Uma aceitação nega outra... E negamos nossa própria humanidade. Pergunte-me o que sou e obterá a mim... E não saberá nada que fazer com isso... pois não sirvo para você... não posso lhe dar respostas. Pois, afinal, você, como eu, não existe... e toda resposta é uma invenção da nossa criatividade para saciar nossa sede de razão... ou silenciar nossa preguiça de perceber que só podemos formular perguntas...

Eu não posso lhe afirmar nada. Nem tampouco definir. Pois descobri que não adianta assassinar a dúvida nem o desejo. O pensamento é uma fuga inútil para templos de vidro trincado... afogamos-nos em nossas próprias lágrimas, nos aquários herméticos da ciência... Enquanto desejamos consolos para a miséria da existência humana, fabricamos dor e tristeza... E o ritmo dessa produção cavalar joga todos no caldeirão fervente da arrogância e da discórdia...

Eu não tenho pátria. Pois a pátria para mim não existe. E não tenho família, posto que meus irmãos e irmãos não me reconhecem... e eu não os conheço... E a cada dia dispo-me das armas com que fui dotado para sobreviver ao outro... Não aceito a morte como uma ameaça... Não aceito a lógica que nos separa... Mas não te digo o que é a verdade... apenas te pergunto até descobrires que não existem respostas...

Iconoclasta

Descontrução... A entropia do eu... não, não estou subindo... não estou descendo... não permaneço onde estou. Simplesmente, porque a verdade é simples, perco-me, desfaço-me, disperso-me em todas as direções e sem rumo, nada. Os átomos se partiram, as estrelas explodiram há milhões e milhões de anos, os corações racharam, como a rocha que transformou-se em praia, as ilusões se fundiram para nossas possibilidades...

Todo o esforço para a ordem, o progresso e o controle... é uma violência que se supera a cada novo passo...

Eu, que a cada dia me conheço menos, até desaparecer de mim, percebo que minhas construções esfarelam-se inevitavelmente. Meus ideais e referências ruíram a cada tremor da minha alma, cada implosão brutal desfere um golpe irreparável naquela identidade tosca que se forjou sobre mim. Rasgaram-se meus olhos e invadiram as vozes por entre as frestas da minha nudez imortal. Gritam e grito... a verdade imaterial e impalpável de que minhas mãos são espaços vazios de universo e no meu peito há apenas uma energia indivizível, que não é minha, que não sou eu, que não é diferente de tudo... que apenas é... um plasma luminoso e obscuro, que encerra os mistérios que transfiguram-se em vida. A minha existência não tem justificativa. A sensação é como a estrela que se queima, até o esgotamento... consumindo-se, perdendo-se a cada espectro de luz amerressado no vácuo. E quando a energia infinita termina, começa o nada... sugando tudo com uma atração gravitacional insuperável... arrastando o mundo para um abismo sem fundo.

Já não sei o que quero, quem quero, para onde quero, querer... o ímpeto e o estático chocaram-se n´uma colisão violenta, e o tempo parou na velocidade da luz. Quais os referenciais que me guiam? O que é um guia? Antes eu era muita coisa... sou cada vez menos. E as palavras perdem seus significados... e é inútil perguntar pelos erros antigos que continuamente renovamos. Sinto que não posso ser segurado... que a segurança é tão vã e inexistente quanto a morte. Como se o vento bastasse para me alçar como um dente de leão, incapaz de negar o movimento. Não acredito na palavra. Não acredito na voz. A fala emudece... a visão cega... só a pele escuta... só o nervo eriçado pode conectar-se ao destino... E as veias abertas são o caminho do alvorecer...

A solidão e a magia são o desconhecido que nos cerca, que nos é, que vamos e que voltamos. Somos tão somente um... A penumbra das teorias, das idéias e das crenças é a última prisão... Mas nada pode deter o nada... a oposição é uma mentira... a dualidade é uma mentira... a felicidade e a tristeza são mentiras... não há verdade... apenas sinto calado e cego, novamente terra, novamente nada.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

E se ninguém fosse par'a Guerra

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Ele via nela qualquer coisa de coragem explosiva e estúpida, capaz de se jogar mesmo sem asas, de se quebrar, mesmo sem anestésico, de ir embora, sem remorsos...

Ela via nela a energia vital, viceral, sanguínea e sanguinolenta... propulsora, motriz, geradora... Como o calor da fusão dos átomos, da criação do mundo, da destruição de tudo...

Ela... se via... como ela, somente... qualquer coisa sem nada, sem destino, fim, princípio, justificativa... Pro inferno com isso, foda-se aquilo... não importa, sabe. Aguarrar-se nela era impossível... Invisível, infalivelmente fatal e nebulosa, o que você via já não era mais e assim ela se ia, sem você perceber... Precisar de quê? Por quê? Nem da vida, nem da luz, nem de qualquer refúgio para olhos sensíveis... Ela se fundiu à sombra, atravessou as portas, mastigou as grades e decepou as veias... E ninguém poderia impedir. Já longe, em qualquer lugar inescrutável.
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Logicamente que os dois não aguentaram viver sem ela. Como o vício ou a dor que une... Qualquer coisa malignamente necessária... Quando ela se foi, tornaram-se estranhos... Ele não tinha ânimo para ir além, ficava a perguntar-se das possibilidades para as quais não estava indo... Ela ficou com aquela eterna dúvida ou culpa sobre quem fora o responsável... Como assim? O que aconteceu? Culpa minha? Culpa minha?... Fez então disso um amuleto para carregá-lo sempre debaixo da pele...
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Desfez-se então a Guerra... em cinzas de sua própria combustão... Ela facilmente renasceria em qualquer lugar, lábio, ódio, sangue, cruz...
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A Paz recolheu-se sob um véu e vagou... penitente... Vendo nos outros pessoas que se afastavam... somente...
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Ele diluiu-se na fumaça que restou... virou vento... virou ar...
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terça-feira, 19 de outubro de 2010

Sem início ou fim

“Nunca tenha expectativas”, ouvi quando eu tinha 15 anos e participava de um grupo de jovens. Uma das primeiras palavras do responsável pelos encontros. Na época esta frase me marcou como uma flecha e, ao longo dos anos, foi ganhando novos significados e impactos na minha forma de encarar a vida.
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Expectativa é querer ter controle sobre a matéria prima fluída do destino, é escolher o futuro, é esperar que a nossa vontade seja superior à gratuidade da vida. Quando lidamos com as pessoas, geralmente construímos diversas expectativas, como a presença, a participação, a interação, os sentimentos trocados...
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Agir em coletivo, estar com pessoas, ao contrário do que desejamos, é algo livre de seguranças, livre de amarras, pois cada pessoa é um caminho rumo ao sonho, e as rotinas ‘imprevisíveis’ produzem frustrações e novas possibilidades.
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Essa relação, o "nós", para mim, surge assim, como esse aprendizado constante de como sentir o outro e a si mesmo nessa fluidez do tempo e do espaço, que aproxima e afasta independentemente da proximidade ou da distância, que conflui, conflita e colabora de maneiras diversas e surpreendentes.
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Como lidar com o não-outro, com o outro? Lidar com a presença vazia? Ou com a ausência concreta? Qual a minha/nossa disposição para a entrega espiritual? Ver o outro está muito além do sentido da visão... o sentir é algo maior que os cinco sentidos... A interação não depende do tempo e do espaço... Ela é, independentemente... A conexão é algo difícil de estabelecer... Como fazê-lo?... Como criar a partir da matéria etérea da alma e da incerteza? Como ir além dos acordos e das definições? Saber sem ninguém ter dito? Ouvir o que falamos, calados?

Psico

Alguma vontade de isolamento... O que é mudar? A mudança repentina de rotina gera alguns estranhamentos... Venha para perto... só caminhar nas sete areias do esquecimento... Anos inteiros despejados d'uma só vez nas ondas de carangueijos e faíscas... qual o resultado? Dessa multidão de emoções degustadas... Correndo pelo silêncio suave, esticando os tendões da pantorrilha até a chama... controlando as portas do pulmão... Não há tédio... fortes emoções... novas cores, novos ares... Novas palavras? Nova voz...? Para onde se está indo?... É bom saber?... tudo planejado... Não saber... Nas mesmas águas, na mesma praia... tantas faces, tantas formas e tanto tempo... E mais nenhum... Aprender... com você. O que podemos ensinar? Balanços... rítmicos... Encontros ao acaso... Paradas... recomeço?... Para onde levará essas correntezas? Como navegar? Deixar levar... Viajar... caminhar em linha reta... sem retornar... a vida inteira... ao som das ressonâncias da mente... Onde você está? Escarpado...

Ria sem cessar
Irmã de sangue
Deita-me o coração
Na pedra de orvalho
Refaça-te o olhar
N´um sonho quebrado
A manivela furou
Afundou o barco
Vamos nadar
Não importa o frio
Queimar músculos
Exalar minúcias
Inspirar idéias
Ser sem estar
Desfazer o eu
Desaparecer no ar
Irmão do pó...

Ana - Pixies - uma música

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Exemplos?


Eram um casal. Eram um casal? Realmente é algo que me intriga desde o princípio. O que torna duas pessoas um casal? A exposição pública da condição conjugal? A formalidade de mãos dadas eventualmente? Uma fotografia posta na mesa do trabalho, cultivando elogios de romantismo? Estar sentados n´uma mesa, diante um do outro, aguardando o pedido enquanto o silêncio os une sombriamente? O hábito de mandar fabulosos buquês de flores em toda data comemorativa, colorindo, assim, o acinzentado do dia-a-dia? A conversa banal na hora do almoço, preenchida de anedotas rotineiras e vazias? Os passeios formais à compra de qualquer buginganga que numerosamente simplifique a complicação das nossas cozinhas(vidas)? A ida ao supermercado, atulhando a geladeira de doces industriais que dêem algum sabor à boca amarga? Os jantares entre amigos, em que cada um senta-se em lados opostos despreocupadamente, como se isso fosse o mais natural? A busca por mais qualificação, a fim de que trabalho e mais trabalho dêem algo com que se ocuparem o maior tempo possível? O ritual condicionado de entregar-se à ilusão do altar televisivo, momento sagrado de reunião familiar? As brigas constantes por razões incompreensíveis e totalmente insolucionáveis? A melancolia dos espaços reservados à solidão de cada um? A desesperança impregnada no pensamento, incapaz de sentir a brisa do sonho chegar-lhe à alma? Os monólogos cruzados convencionalmente nomeados de conversação? Os presentes de aniversário repetitivos, antiguados objetos que guardam a certeza do contentamento superficial? O ato nobre de dividirem a mesma cama e, eventualmente (ou não), o mesmo calor, de tempos em tempos, para não fugir à memória a afamada sensação? Ou o sacrifício dedicado à um deus que pede-lhes que esperem para conhecerem-se intimamente até que a Igreja o conceda cerimonialmente? A nostalgia dos primeiros momentos, quando cada um tinha bem clara a motivação, a emoção, o ímpeto do sentimento que os unira? A necessidade de ser bem visto socialmente através da 'nobre' instituição do casamento?... A abnegação... que guarda para amanhã... um amanhã qualquer, desconhecido, impalpável, qualquer coisa que nomeiam felicidade...

Trabalhando 8h por dia (oficialmente), não hesita em prologar um pouco o horário do expediente, marcar reuniões na hora do almoço e dar uma passadinha para ver como andam as coisas mesmo nos fins de semana, feriados e férias. Ele é deveras um funcionário exemplar. Há décadas esmera-se em tal função cuja única realização é manter seu padrão de vida. Ela afirma que a família é o seu maior tesouro. No entanto, quando não estava no trabalho, estava estudando algo a ele relacionado, ou então descansando da exaustão por ele causada, recuperando-se de enxaqueca fruto do estresse... Ou assistindo ao ritual televisivo... aderindo ao padrão de entretenimento... A atenção aos filhos é acadêmica, dedicada ao estudo, ajudar-lhes nas tarefas, auxiliar-los nos trabalhos, garantir-lhes o êxito, para saber em si o mérito de qualquer conquista filial. Ah, e se pouco podemos dizer sobre a relação do casal, é porque pouco há para se dizer... Quando ao lazer pessoal, um e outro distraem-se como podem, à sua maneira, consigo. Seja o hobby cultivado desde a juventude, sejam os livros sobre psicanálise que sabe-se lá que efeito causam ou a obra completa de João Ubaldo Ribeiro, ou ainda os intermináveis cursos de línguas que preenchem perfeitamente o horário noturno que, infelizmente, não pode ser empregado na empresa.

É curioso observar os seres acorrentados uns aos outros, questionando-se que motivo poderá ser suficientemente forte para desperdiçar toda a existência presente (cada dia que passa, esvaindo-se na fumaça do passado) em rotinas monótonas, aborrecidas e cruciantes. É, no mínimo interessante, investigar quais os fundamentos da covardia que aprisiona incontáveis almas em gaiolas autofabricadas. E não se pode inocentar nessa análise divertida aqueles que se aprisionam do lado de fora das gaiolas, engolindo a chave que abre as portas de seus inalcansáveis desejos por prazer e paixão... Nunca saciados, vagam por aí, sedendos, línguas caíndo das bocas, em busca de algo que possa-lhes diminuir o fogo que os consome... E a vida, então, torna-se um deserto, cheio de oásis imaginários, os quais perseguem, indo de um para o outro interminavelmente, a cada noite, a cada saída, a cada encontro...



"A vida é muito curta para ser pequena."
Benjamin Disraeli

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Fusão

O que significa o jeito sedutor? Que é sedução?... O conceito clássico, fatal, longas escadas de mármore até o paraíso, expostas detrás de vitrais entrelaçados, insinuantes cálices, contendo a fonte dos desejos e dos prazeres, a maçã proibida, vermelha e úmida, a flor do pecado, de pétalas macias e viciantes e todas as outras imagens, fantasias, sensações e desvarios que se desdobram?

Será sedução?... Ou trata-se de algo mais sutil, escondido entre as cortinas do mistério, a insinuanção de atrações, energias gravitacionais em suspense, a ânsia incubada desde o nascimento por um calor desconhecido, que permeie os cantos vazios da geografia corporal, da constelação espiritual, da curiosidade infantil, do feitiço secreto que envolve cada um? Mistério...


Ela era assim, Erupção subterrânea, Explosão subcutânea. Sua silhueta tinha algo de desfiladeiro, penhasco delgado e suave, sensual. Repelia a tranquilidade do espírito, punha em alerta os sentidos com um simples movimento da boca, docemente induzindo todos para o suicídio do excesso... A simples forma dos cabelos ondulados, cortinando os cantos do rosto, e o seu olhar dúbio, inocente e erótico simultaneamente, o modo como os braços envolvem-se, na carícia da própria pele em faísca, o brilho tênue da luz em sua pele...
A inocência, a armadilha... o jogo de esconder as intenções, de expor o desejo como um alvo a perseguir noit´inteira, o êxtase antevisto no canto dos olhos...

A sedução é uma máscara delicadamente delineada pelo controle... (mas que não se deixa controlar jamais)... e a porta fragrante para a entrega... Por que a moral nos oprime e queremos despedaçá-la... em qualquer forma de devassidão, de incêndio, de crime... Rasgando as regras com as unhas na pele, destroçando as leis com os dentes na carne, o ímpeto no ventre, o impulso adentro...


Seduz a ele e a ela... à ele inspira o seu pior... (ou seu desconhecido)... exibe aos próprios olhos as rachaduras da superfície, obriga-o a descer fundo nos porões da alma, vasculhando as incertezas das ações e das vergonhas... à ela, seduz pelo desejo de igualar-se, de ser tal qual... ou então de descobrir em si mesma as brasas e soprá-las até que ardam as entranhas... Seduzida ante a perspectiva de transformar o frio na barriga e o constrangimento no inverso, no universo em cataclisma de supernova... na criação divina do gozo, na luz difusa e obscura de si mesma... Ela sente que esta sedução pode guiá-la até o seu limite... e desfazê-lo em cacos de vidro decorativos... levá-la ao ápice, no momento em que as oposições e paradoxos se atraem com tal intensidade que se fundem... o Amor e o Ódio, a Paz e a Guerra, o Fogo e o Zero absolutos... o Bem e o Mal... até que desapareçam...


A sedução parece ser capaz de dar o empurrão necessário... para gerar movimento, fazê-lo despencar ladeira abaixo infinitamente... mas para nós, não estamos caindo, estamos voando... e que o chão não chegue nunca... seja atravessado através das dimensões existenciais da imaginação... do além...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Não-me-esqueças...

Abriu os olhos. O mundo estava deitado. Com um piscar, percebeu que não, era ele que estava no chão. Um tanto atordoado, zonzo, sem saber... o quê? Olhou ao redor e não reconheceu. Que lugar é esse? Então percebeu que onde estava deitada sua cabeça havia um pequeno lago... vermelho... Como um reflexo, levou a mão à cabeça e sentiu o ferimento, os dedos tingidos de rubro. Caíra? Terá sido um acidente? Ou alguém fez isso com ele? Estava n´uma rua vazia, apenas casas de uma ponta à outra. Ruídos de automóveis ao longe, o barulho de uma mangueira aguando algum jardim invisível, dois gatos olhando-o do outro lado do calçamento. Queria poder perguntá-los se viram o que aconteceu. De súbito, a surpresa. Tentou pensar e sua mente estava enevoada quando buscou na memória qualquer coisa. Fransiu a testa, apertou os olhos, como se olhasse através do chão, tentando focar a si mesmo, voltar os olhos para trás, no passado. Nada. O coração acelerou, um desespero subiu-lhe pela nuca. Qual é meu nome?! Correu as mãos pelos bolsos, verificando se não havia nada que iluminasse sua lembrança... Vazios... Quem sou eu?! Olhou ao redor, buscando o nome da rua, tentando lembrar que dia era aquele, mês, ano, que cidade!?! Os gatos, um preto com leve penugem branca sobre os olhos e na ponta das orelhas e outro branco com manchas douradas ao longo do corpo e até o fim da calda, olhavam-o, inertes, testemunhando tranquilamente seu isolamento e angústia, como se esperasse o homem para juntar-se a eles... Ficou ali ainda por alguns minutos, sentado, observando a poça cor de carmim, viva, quente... Deduziu que passou pouco tempo desacordado, pois o sangue nem começara a coagular... não pôde examinar melhor o ferimento em sua cabeça pois estava bastante doído ao toque... Vestido com uma camiseta branca sem detalhes, manchada de sangue na gola, uma calça e sapatos... parecia que nunca tinha visto tais roupas... Levantou-se vagarosamente... Está de frente para um muro de pedras lisas... Um jasmin resplandecia no quintal e mais gatos (amigos daqueles dois?) equilibravam-se no muro. Resolveu pedir ajuda... Bateu palmas, pois não havia campainha... Uma moça de cabeços ondulados, broche de flor de lã preso no cabelo que brilhava ao sol e sinaizinhos pelo rosto e ombros apareceu na porta. Explicou a situação o quanto pôde, pois ele não sabia muito mais que ela... Disse que estava ferido e mostrou a mão ensanguentada... Ela deu um gritinho contido de susto e correu para buscar as chaves do cadeado. Fez ele entrar, sentou-o na cadeira da varanda e foi buscar água, gelo, curativos... - Você precisa ir ao Hospital ver se não é algo grave... - Disse ela, no meio do rebuliço de ansiedade do sangue, do curativo, da emergência. Ele percebeu que a menina estava tão nervosa e aflita como se fosse alguém de sua família, alguém muito querido. Se sentiu bem por isso... Não lembrava de nada nem de ninguém e ter essa pequena prova de importância do destino ajudou um pouco o desconcerto estilhaçado de sua alma. - Quando eu terminar aqui, vou com você no Hospital... Não se preocupe, vai dar tudo certo. "Com você cuidando de mim, tenho certeza que sim", pensou ele. Sentia uma dor aguda no lugar do curativo... Foi bem doloroso para limpar a ferida e um pouco menos para enfaixar. Quando terminou, sentia-se um príncipe indiano com seu turbante... - Com esse alvoroço todo, esqueci de perguntar seu nome. - Disse ela, já mais calma. - Que nome você me dá? Me batize... - foi a resposta do rapaz, querendo fazer graça, mas triste pelo seu esquecimento. - Como assim, que nome te dou? Não sei... diga logo - Eu também não sei... Não consigo me lembrar de nada... - Uma expressão de comoção tomou o rosto de pele clara e suave da moça... - Own, que triste... sinto por você. Vou chamar-lhe então de Rodrigo... que tal? - Ele concordou com um sorriso. Apesar do sofrimento interior pela perda de seu passado, sentia-se feliz pela fortuna de tê-la encontrado. Não sabia exatamente o que representava essa felicidade. Era algo simples, imediato. Sentia como se tivesse borboletas no peito, voando com asas quentes, fazendo cócegas na sua alma, como se fossem esperanças ou bons pressentimentos. No Hospital, precisou raspar a cabeça para fazer o tratamento necessário. Após, o médico encaminhou vários exames para observar os danos cerebrais que causaram a amnésia para saber a gravidade da situação. Voltaram para casa sem conclusões. - Você pode ficar aqui esta noite. Coitadinho... para onde poderias ir? Não se lembra onde mora, quem é sua família. Eles devem estar desesperados atrás de você. Vamos avisar a polícia, para quando seus parentes te procurarem. Moro nesta casa trabalhando para uma senhora muito severa, mas tenho certeza de que ela compreenderá sua situação. Talvez possas ficar aqui me ajudando no serviço e ela deixe você ficar o quanto precisar. O que você sabe fazer? - Bem, não sei ao certo... Acho que sei cuidar de plantas, jardinagem, horta, algo assim... - Ótimo, a senhora vai gostar de saber disso! Ela trata suas petúnias e não-me-esqueças como se fossem seus filhos. Você poderá ser, então, o preceptor das 'crianças'... - Riram juntos... ele, principalmente, ante a perspectiva de permanecer perto da garota por mais tempo. - Vamos passear - sugeriu ela - para esquecer um pouco o susto da manhã? - Vamos sim, excelente idéia! - Foram caminhando então pela rua... A poça de sangue estava agora bem escurecida e macabra... Quando ela olhou para o círculo vermelho no chão, sentiu novamente uma grande pena tomá-la, virou-se para ele e o abraçou, como querendo consolá-lo - Own, tadinho... vai dar tudo certo, viu? - Disse, enquanto passava a mão no rosto dele. "Já está dando"... - Vamos cuidar disso quando voltarmos - Completou a jovem. Foram andando até uma pracinha que havia ali perto... Crianças jogavam bola, adolescentes andavam de skate n´uma pista improvisada, mães e seus bebês conversavam juntas sentadas nos banquinhos. Os dois caminharam ao redor da praça, até chegarem nos balanços vazios que os estavam esperando. Com impulsos fortes, se balançavam, em silêncio. Então ele começou a perguntar pela vida dela, já que não tinha muito o que contar. Ouviu sobre as dificuldades que passara quando criança, de sua mãe, fria e distante, que apesar de não deixar faltar o essencial em casa, nunca foi carinhosa nem a valorizava, o que contribuiu para uma infância muito tímida e para sua baixa auto-estima... Sentindo as sombras que circundavam essas palavras, o rapaz pôs sua mão sobre a mão dela... - Você é uma menina maravilhosa! Deve sempre estar certa disso! - Ele tentou alegrá-la. Levantou-se então e segurando nas duas mãos da menina, fez com que ela levantasse também e a abraçou - Obrigado, muito obrigado por estar aqui. Você não sabe como é importante. Você é a única pessoa no mundo que existe para mim... Não me lembro de nada nem de ninguém e sem você estaria perdido... Você me salvou... obrigado... - Ela derramou algumas lágrimas por ouvir aquilo... Aquela gratidão misturada com afeição por parte dele... Algo que nunca tinha recebido... Apertou-o forte e ficaram abraçados por longo momento... As árvores ondulavam com o vento lá no alto, as nuvens avançavam vagarosamente, o sol, cansado, resguardava-se para seu descanso, o céu tingia-se de amarelo alaranjado... O barulho das crianças, das mães, das pessoas todas silenciou... para ouvir os corações batendo juntos... Ele já não queria ser achado... não queria encontrar mais ninguém... Encontrara a felicidade ao perder seu passado... a pele de seu rosto roçava carinhosamente no pescoço e orelha femininas, delicadas... O momento se estendeu até onde podiam se lembrar...

Dying in the Sun - uma música - The Cranberries

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

É melhor remediar?


Eventualmente (últimamente com uma frequência um pouco maior) ou diria "tradicionalmente" acordo resfriado, nariz entupido, pingando, espirrando. Tusso um pouco. Os espirros quando contidos reverberam pelo corpo que deixa-se vibrar pela implosão. Quando libertos, alastram a atmosfera com gotículas inofensivas de células brancas perdidas em alguma batalha desconhecida. Às vezes não é ao nascer do dia, mas em algum momento aleatório que começa a bateria de espirros pipocando o ar, como tentando afugentar algum ataque aéreo. Hoje na hora do almoço, em perfeito estado, aproximei-me de meu avô e inesperadamente me vieram três espirros poderosos, prontamente repelidos pelo homem. Acredito que tenha sido algum atentado ou reles brincadeira de mal gosto dos interiores de meu corpo pelos repúdios e acusações de contágios proferidos contra mim. Uma vingança biológica involuntária. De todo modo, a avó, que é médica, desde pequeno me acostumou ao tratamento alopático. Ao menor sinal de tosse ou sibilo do peito, diagnosticava a mais devastadora bronquite ou o calafrio da fantasmagórica asma e prontamente despejava no copinho de 5ml o fluido viscoso, rosa, sabor framboesa estragada, capaz de curar todos os males dos brônquios e retirava de seu descanso eterno o objeto branco circular dito antialérgico de seu esquife de alumínio indicando ser ele capaz de magicamente expandir minhas vias respiratórias, anteriormente tomadas pelo muco. Aos quinze o missionário branco aparentemente considerou-me um caso perdido no pecado alérgico e deixou de agir com seus poderes santos e desde então nunca mais recorri a essa solução religiosa. Somado a isso, fui aos poucos removendo o véu da desinformação e descobrindo detalhes acerca da poderosa seita da indústria farmacêutica. Era, afinal, a maior seita, perdendo apenas para a venda de armas e o tráfico de pessoas. Seus emissários percorriam os médicos de todo o mundo distribuindo bençãos de amostras grátis para levar os fiéis doentes na fé do corpo rumo ao paraíso da saúde e eu, como neto de médica, sempre convivi com os elixires e hóstias capsulares placidamente doados aos médicos. Guiado pela minha inocente desconfiança ou talvez por pura intuição, ou quem sabe pela leitura das inquietantes bulas papais de letras miúdas, presentes em toda embalagem sagrada, contendo inumeráveis e inacreditáveis efeitos colaterais para a alma caso a fé trepidasse, como danos ao fígado, deficiência nos rins, tremores, insônia, taquicardia e tantos outros, mantidos desconhecidos do fervoroso rebanho, fui percebendo os meandros daquela instituição tão poderosa capaz de criar uma cultura medicamentosa que garante às pessoas munidas de seus instrumentos a cura para todas as dores, febres, depressões, síndromes e desarranjos intestinais. Em cada esquina há um templo desta fé, vendendo a preços variados os ingredientes contidos nas receitas médicas ou simplesmente indicados pela sabedoria popular, que tranquilamente adequou-se ao surgimento da tecnologia farmacêutica. Eu, em revolta, tornei-me ateu nesta fé química e passei a negar toda forma de tratamento alopático. Aprendendo com um filme sobre Amor além das fronteiras e aperfeiçoando-me com os ensinamentos da filosofia oriental, decidi aceitar a gripe enquanto parte do momento em que ela se mostra presente. Por que negá-la, afinal de contas? Ela é o que ela é, é preciso vivê-la e aprender suas lições gosmentas e valiosas, suas agonias e provações, para lapidar o caráter e iluminar o caminho. Reforço o espírito e o corpo com sessões de chá mate quente, fruto da efusão dos grãos torrados na água fervente e doses de filmes, livros... e chamas sensuais adentrando pela noite acompanhada, que, segundo dizem estudos na rede, expectoram muito mais que o catarro, como também qualquer preocupação, estresse e pensamento vão, limpando a mente e as veias. Quando a garganta, minha segunda maior arquiinimiga, inflama-se contra mim, despejo-lhe o dourado mel para deslizar incólume por entre seus planos maldosos e no dia seguinte encontro-me bem. No mais, esforço-me para praticar a mais pura alimentação holística, folhas verdes regadas à azeite, frutas variadas na maior quantidade, chocolate de meio amargo a amargo, para rejuvelhecer os ânimos e ternura e carinho desmedidamente, para acalentar o meu coração e o da amada. E, a despeito de eventuais alergias, acredito poder afirmar ter um corpo são e uma mente sã.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Menina

Segurou em sua mão e correram pelo campo, pulando pelo mato, escapando dos carrapichos, desviando dos capins altos e das flores, iam como animais selvagens, com o vento no rosto e as pernas ágeis. Giravam e às vezes caiam no colchão verde razoavelmente macio... rolavam um sobre o outro, cada toque das mãos e dos braços e da pele sendo uma emoção, a realização de uma ânsia, uma alegria escapando pela garganta. Quem ficava por cima ao final? Olhavam-se, respiração ofegante, sorriso incontrolável no rosto... brilho nos olhos... ele deixou os braços cercarem-na e pôs o rosto ao lado do dela, tocando com o nariz a orelha dela, um pequeno beijo na nuca para arrepiar. Ela olhava para o céu de olhos fechados... as nuvens tinham o formato do estremecer de sua pele ao contato da boca dele... Um perfume emanava da pele clara da menina, como se os sentimentos tomassem a forma etérea do cheiro e envolvessem os sentidos enamorados de ambos... Pouco depois, deitavam um ao lado do outro... e mãos dadas... punham-se a ouvir a música do vento... Olhando-se às vezes, para ver se o outro estava olhando... Alguns minutos depois, ela levanta-se, puxa-o. Quer levá-los para um lugar... Correm sem sentir qualquer cansaço... chegam a beira do bosque... percorrem a trilha até chegar à uma árvore antiga no alto da qual esconde-se uma casinha improvisada com tábuas e pregos enferrujados... lá em cima há ainda dois balanços dos quais podia-se ver ao longe... Ela subiu primeiro e ele não pôde evitar admirar as formas delineadas e suaves de suas pernas sob o vestido branco florido que mal a cobria até os joelhos. Será que ela fizera aquilo de propósito? Como uma menina marota, subia com incrível desenvoltura, sem se importar que vissem sua calcinha igualmente branca, do tipo shorte... Após chegar lá em cima, ela reclamou por ele ainda estar imóvel lá em baixo. Com grande esforço para sair do transe, segurou-se nos galhos, apoiou o pé onde pôde e subiu também. Sentaram nos balanços e lá ficaram por um bom tempo... Mas o apetite chamou-os e foram atrás de algum arbusto ou árvore frutífera... Encontraram, para grande satisfação, suculentas amoras silvestres que devoraram... e mais a frente um corregozinho molhou-lhes a garganta... Então ele percebeu um volume grande e vermelho além da copa das árvores... Correram para descobrir o que era... Tiveram que pular vários troncos apodrecidos e alguns galhos espinhentos, até chegar a extremidade oposta do bosque... na clareira estava parado um balão grandão, bonito, resplandecendo ao sol... segurando a cesta trançada estava o balonista, que verificava as cordas que amarravam o corpo flutuante. Aproximaram-se dele com a curiosidade de crianças e perguntaram para ele o que fazia... ele disse que esperava por eles... Surpresos, olharam um para o outro enquanto o homem abria a portinhola para que subissem. Subiram, o balão foi solto e o fogo aqueceu o ar enclausurado pela poderosa lona e lentamente despediram-se do chão...

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Não leia...

Olá, eu; olá você. Se te falo, na verdade converso comigo, pois gosto de ouvir a repetição de meus pensamentos... Não gosto de chamar de vaidade... prefiro nomear expressão. Evito a inevitável frustração da minha incapacidade verbal de traduzir satisfatoriamente o que penso. Ignorando esta sabedoria que pouparia o mundo de todas as orações, ou quase todas, faço como tu e converso. Raras são as vezes, de contar nos dedos, em que realmente me senti satisfeito com uma conversa, tive a sensação de ter transmitido qualquer pensamento de modo aproximado da semente que nasceu na minha cabeça e deixou escaparem raízes pela boca. No geral, são trocadas palavras vazias, atropeladas e entrecortadas, cada um interrompendo o outro com seus não-entendimentos e meias-explicações, findando-se o curto tempo de diálogo (ou duplos e simultâneos monólogos) sem nem a sombra de algum aprofundamento... é como transplantar as mudinhas da sementeira para a terra antes que tenham ao menos cinco ou seis folhas e já estejam mais fortalecidas. Inevitavelmente morrem. Assim são as palavras, nascem destinadas à coisa nenhuma além de nos aprazer de nossos belos pensamentos mal falados. E quando digo mal falado, não estou afirmando não haverem no mundo ou mesmo no meu círculo social excelentes oradores, capazes de se expressarem com graça e objetividade. Certamente que conheço vários... Mas que adianta? De que serve um belo discurso diante da memória de peixe dourado que todos temos e, pior, face a muralha da China de nossos próprios padrões de pensamento e atitudes? O outro fala e eu automaticamente faço uma releitura da sua fala "traduzindo-o" para minha forma de pensar. Ou então vou podando suas palavras, "corrigindo-o" mentalmente ou censurando as partes discordantes ou incompreendidas. Antevejo suas palavras seguintes, reprovando-as ou aceitando-as prontamente. Não há tempo... nunca há tempo para que a conversa realmente se torne algo... As pessoas não conversam por semanas seguidas, examinando os infinitos pormenores dos assuntos... Todos nós apenas brincamos de conversar... nunca realmente conversamos... E o que é este "algo" a que eu almejo que ela se torne? A certeza de uma mudança provocada por mim? Quero dizer (expressão que indica que tudo dito anteriormente foi dito sem querer ou que simplesmente ainda não tinha decidido o que pretendia contar?) que não importa o que digamos ou ouçamos, não há lições úteis ou conselhos proveitosos a serem recebidos ou doados... Que você não irá mudar a maneira como você vê o mundo amanhã por causa de algo que eu disse nem irá recusar algo de que você gosta porque eu mostrei o quão ruim isto pode ser para os pequenos agricultores ou para os pulmões de todo o planeta (ou ao menos os seus). Você irá colocar de lado todas essas palavras vãs e deixará que elas se dissipem no esquecimento como as cinzas dos mortos jogadas no vento. Os quebra-cabeças uma vez montados, dificilmente são desfeitos. Quando eu digo você, entenda que estou diante do espelho olhando para mim e apontando-me o dedo. Então não se sinta incluído nesta conversa. Te orgulhas dos teus padrões que ilusoriamente chama-os de teus. Os padrões nunca são feitos por ti. Aceite o fato de sua insignificância. És apenas uma roda dentada em milhões de engrenagens sem importância para uma máquina que alimenta-se unicamente da sua vida e não do teu bem-estar. Mas sabe-se bem que para que tu dês a vida sem resistir, é preciso alimentar tua vaidade, para que olhes para o manequim onde puseram teu nome e permaneças cego para tudo o que está em jogo... cego até mesmo para o que tu és. Como aprendemos a ser vaidosos? Pois atrás de tudo que fazemos, certamente há vaidade... seja tuas roupas, tuas escolhas, tuas palavras, tuas ações... esperas que as pessoas te vejam como queres que elas vejam, que elas percebam quem você "realmente" é... Se não fossemos vaidosos, todas as tentativas de distinções seriam desnecessárias... por que estampar um poema na camiseta ou calçar o tênis da propaganda ou ouvir a música padrão ou a dita não-padrão, para dizer-se de um jeito ou de outro? Por que dizer-se de um jeito ou de outro? Por que dizer qualquer coisa, senão para mostrar aos outros o que você acha que é, quem você se acha que é? Colocar uma posição tua que não significará nada para ninguém... Não, ninguém sabe quem você é... e, afogue-se na solidão de também não saberes quem é ninguém... Mergulhe até o fundo... e reze para chegar no outro lado do mundo... Talvez descubra o inverso da solidão... Qual é? Companhia?... Mas, voltando à ineficácia das palavras... Não estás entendendo nada do que eu disse... É certo de que estás entendendo algo, mas não o que eu disse... Por que o que eu disse não foi entendido nem por mim... Pois o pensamento dessas palavras aconteceu há dias, em um ônibus, no meu banheiro, sentado olhando para um professor duvidoso... E só agora pude tentar resgatar algo... Veja só como já começou errado. Mas, qual seria o começo correto? De todo modo, nesse momento posso repensar e, provavelmente pensar pela primeira vez... Não estou afirmando que não mudamos... Sim, mudamos constantemente. A maioria das mudanças nem são percebidas até nos pegarem de surpresa em um ato que contrasta com a nossa lembrança do que faríamos antigamente. Mas não foi por que alguém lhe deu um sermão ou contou uma história trágica. Foi puramente por que você quis. Ou por que você não quis... (provavelmente de forma inconsciente). De um jeito ou de outro, você foi o responsável, pela ação ou pela ausência... E essas mudanças estão intimamente relacionadas com os outros... Somos tão influenciáveis pelos outros que se soubéssemos, nossa vaidade não sobreviveria e todo o individualismo necessário para movimentar a economia do consumo teria sérios revezes... Na imensa maioria das vezes não são as palavras, mas os exemplos que nos fazem mudar, pela imitação deste ou daquele exemplo ou pela repulsa de algum antiexemplo. Que adianta eu dizer que amanhã será um bom dia? Não significa nada além de uma resposta automática à uma situação de tristeza alheia... Tanto melhor é estar do teu lado amanhã e ser o bom dia. É tão fácil dar conselhos que nós mesmos não somos capazes de seguir. Seja o seu conselho e quem sabe alguém te imite. Vê só a vaidade de querer ser imitado? É inútil eu dizer isso... De todo modo, é algo interessante de se examinar... meramente para passar o tempo... até irmos deixando de falar aleatoriamente e procurando formas mais coerentes de dizer algo. Talvez dizer algo através de uma música... ou então em um livro seja mais verdadeiramente comunicativo... Pois a conversa com a música e o texto (ou através de) pode ser mais demorada e profunda... (ao menos tem esse potencial)... ou não. Esqueça as palavras... Tente olhar nos olhos e usar os outros sentidos para conversar... Ou então respirar o mesmo ar e imaginar sentir o que o outro sente... Encontre a tua vaidade e converse com ela... descubra o que ela quer de ti... A quem ela serve, mesmo que seja a ela mesma, a ti mesmo e assim sucessivamente... E se pergunte - O que seríamos se não houvesse vaidade ou orgulho, se não impuséssemos um "eu" perante o "você" para nos protegermos ou nos vangloriarmos, se nada nos separasse de nada... (Você provavelmente não chegará a imaginar... ) Mas não tem problema, eu não estou falando com você.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A história de Bê e Jô

No princípio, era uma descoberta, uma sensação nova, uma fronteira inexplorada e emocionante... Foi ganhando formas as sensações e a alma mapeando as possibilidades conhecidas... Após, apresentou-se a dúvida, o ato incerto, seguido, tão rapidamente que o deixou incrédulo e um tanto indignado, de engano... resolveu não dar muito crédito. O momento seguinte foi conveniente para reestabelecer a confiança. Considerou um remédio apropriado, um aprendizado pouco mais concreto. Mas que logo perdeu a validade e tornou-se indigesto. Foi preciso abandonar. Enfim, deu-se a alegria de conhecer o entorpecente! Ah, sim, esse liberava o corpo das restrições, deixava-o suave, leve, instigado... Foi desfrutado por tempo considerável... levou a outros contentamentos interligados... E deixou uma marca de compromisso, quase uma cadeia destinada... Que foi preciso outro mais potente para desfazer e libertar. Livre de uma vontade de morrer típica do torpor prolongado, pôs-se primeiro na ânsia, no desejo... um desejo fatal... que captou todas as energias para si, multiplicou-as de modo sobrenatural, levou-as ao limite e ao êxtase... Para só então, presente da liberdade, derramar-se... tão rapidamente... rapida-mente... Que não durou nada... Mas ao mesmo tempo foi muito... mais do que poderia... E por sorte acabou, afinal, sabe-se lá. E as surpresas se acercaram dele e o presentearam com o delicado. O suave. O belo. Descobriu-se até que ele fizera gostar quem não gostava... E era maravilhoso... sim, sonhador... Mas não imutável. E sem perceber, foi-se transformando... E da emoção, revelou-se também a idéia... a troca de sensações comunicando o que se sentia no interior... Tornou-se, então, um laço, uma via, um canal para os sentimentos chegarem de maneira mais real... ou se equilibrarem... Um significado profundo... Uma história surpreendente de se perceber... com o coração...

A Linguagem, amor

A conversa
Transforma-se
Em novas formas
E meios
As palavras andam
incomunicantes
Conta esperando
Retornos e idéias
Um olhar pensativo
Percebe em reflexo
Perdido na mente
Voando alto
Estações assim
Causam estranheza
Quem pensativo fica
É o falador de horizontes
Melhor então
Guardar o dia
E por as sensações
Na ordem da conversa
E preferir ouvir
Quem gosta de contar
Talvez assim
Sinta-se melhor
Sem expectativas
Desnecessárias

Sente que a pele
Tem sido mais feliz
Do que a voz
E que os lábios
Têm dito mais
Juntos
Do que separados
E os olhos visto
Tanto melhor
Fechados

Deixe estar... deixe ser
Siga esse movimento
Conhecendo a melhor
forma de comunicar

Como incluir
Os próprios anseios
Sem falsificar
O resultado?
Espontaneidade
É sinônimo de
verdade...

Só quero, sim,
A verdade...

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Solo insone

O sono lhe era um fantasma chamado culpa. Passou os três primeiros dias sem conseguir dormir, angustiada, chorando e repondo a água de sua angústia em goles derramados pelos cantos da boca... O corpo amarrotado entre as colchas e edredons encardidos com sua dor e o abafado do quarto que já não via luz além dos filetes audaciosos que se esgueiravam pelo ar até o chão gelado, desviando e refletindo-se na espessa camada de tristeza que se arrastava pelo espaço aéreo, como águas mortas n'um rio fúnebre. Depois de uma semana trancada, o lugar já se tornava inabitável e assim também ela se sentia, incapaz de existir. O chão tornara-se uma armadilha de pó de vidro e cacos pontiagudos resultantes dos copos atirados contra as paredes, furiosa consigo pelo que aconteceu... Como podia ter acontecido? Como podia? Por quê? Ela só queria esfriar a cabeça em uma atmosfera longíngua, ir até algum lugar desconhecido e excitante, dançar toda a sua adrenalina para limpar-se das sensações acumuladas em tantos meses com aquele rapaz... para poder experimentar algo novo. Precisava de algo novo! Mas ao fim de dois meses de viagem, exausta e até um pouco subnutrida, resolveu-se por voltar... estava faminta de saudade... a ausência prolongada, nunca antes experimentada, a fez sentir algo realmente 'novo', de tal modo que não esperava. Até ela própria pareceu-lhe estranha tamanha era a vontade de revê-lo... e finalmente, decidida e apaixonada, fez o caminho de volta. Uma noite antes de voltar, sonhou com uma tempestade quebrando um barco ao meio. De alguma forma, ela observava do céu, como um pássaro acima das nuvens... Mas sabida pássaro, ignorou o naufrágio e pôs-se a voar o mais veloz possível, superou a cinzenta massa eletrizada e alcançou camadas mais calmas e amplas, esquecendo-se dos restos devastados de madeira que ficaram boiando pela superfície negra do mar. Quando acordou nesse dia, saltou da cama e correu para a rodoviária, em busca do primeiro ônibus que sairia para sua casa. Esperou lá mesmo as poucas horas até o embarque e deitou-se na poltrona ansiosa. Nunca lhe passou pela sua imaginação mais tenebrosa o que se seguiu... e tem a potente certeza que a atrocidade que derreteu seu coração jamais foi sentido por outra pessoa.. Quando uma tarde arrastou-se até a cozinha, deparou-se com o cheiro podre da geladeira, abandonada por meses... não havia nada que não estivesse vencido... Ah, tinha uns amendoins murchos e umas compotas de alguma coisa verde... Pegou o telefone e pediu desesperada por algo... os 35 minutos se passaram contados cada segundo lentamente... Comeu, enfim... e percebeu que o paladar desfalecera... a boca estava tão desiludida que se recusava a sentir. Deitou-se novamente, as mãos doídas, o corpo trêmulo, a alma condenada... Como pode ter acontecido? Nem pôde vê-lo uma última vez... nem tivera coragem para tanto... Não olhara para trás... não voltara... até que não houvesse para onde voltar... ela está em lugar nenhum... aquele lugar não é mais nada... Como se pela primeira vez ele se tornasse insubstituível. Tantas vezes antes passou perfeitamente bem sem... Mas agora que não o tem... o quer. No oitavo dia, já quase acompanhando-o, ela resolveu levantar e tomar uma chuveirada (se é que a água não teria sido cortada)... limpou os coágulos das mãos... os pequenos cortes profundos... os movimentos limitados... deixou-se ficar sob a corrente líquida por vários minutos, ouvindo o choque das gotas contra suas costas, seu cabelo. Depois saiu para a rua, com qualquer roupa, ver novamente o mundo... A dor já penetrara nela de tal forma que começava a chegar ao subconsciente e escapar do consciente... Respirava novamente... A perda se perdeu... em algum buraco que no futuro ela reencontraria... Limpou os cacos do chão, abriu as janelas... Fazia tudo sem si mesma... talvez ela tenha si perdido também... e apenas o corpo se movesse por autopreservação... Sem pensamentos... oca. Mas não podia evitar a dor em ver as roupas dele que restaram e as que faltavam... A ausência de símbolos... a resistência de imagens... Quando conseguiria olhar novamente para alguém? Uma tal ruína de suas idéias, conceitos e estruturas... uma morte vivida... mas ela passara pelo túnel e chegara ao mesmo lugar... Após tirar tudo de onde estava, por em outros cantos, pintar as paredes de um roxo-asfixia com pitadas de azul mar-morto... Foi-se atrás de algum emprego... as economias praticamente não existiam mais... E aos poucos, foi retomando o dia-a-dia... Recolocando as janelas próprias que quebraram... Não imaginara que o novo que foi atrás seria tão definitivo. Como mudar-se para um planeta desabitado... Mas ela iria repovoar seu mundo... era preciso. A culpa que sentia... pensara... lhe fora destinada. Tinha muito o que fazer com ela. Desistira de perguntar por quê. Continuava a chorar toda noite antes de despencar no sono. Mas agora parecia-lhe um ritual, molhar os lençóis sob a cabeça... Qualquer conhecido só descobriu que estava de volta algum tempo depois... ela não estava disposta a conversar... Faziam-lhe companhia, às vezes cozinhavam para ela... às vezes não apareciam... não importava. Quando as mãos deixaram, ela pôs-se a escrever... o que surgia... sem reler... passava a página para outras palavras soltas... O som estava quebrado... só tocava uma música só. Ficava a maior parte do tempo desligado. A única coisa que tinha vida naquele momento e garantia alguma existência era a horta que subitamente ela resolveu fazer. Observar o lento crescimento das ervas de chá e tempero ajudava-lhe a conhecer o tempo... colocar aquele verde brilhante em sua comida permitia restaurar o sabor... regar cuidadosamente nas primeiras horas da manhã davam um destino às suas lágrimas... a poda delicada ensinava-a a esculpir-se... os frutos mostravam-na como viver... a terra mostravam-na para onde ir.

Summer Dust - The Love Language - Uma música

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Provérbio Zen

"Um mestre Zen viu cinco dos seus discípulos voltando das compras, pedalando suas bicicletas. Quando eles chegaram ao monastério e largaram suas bicicletas, o mestre perguntou aos estudantes: “Por que vocês anda com suas bicicletas?”

O primeiro discípulo disse: “A bicicleta carrega, para mim, os sacos de batatas. Estou feliz por não ter de carregá-los em minhas costas!” O mestre elogiou o primeiro aluno: “Você é um rapaz muito inteligente! Quando você crescer você não andará curvo como eu ando.”

O segundo discípulo disse: “Eu adoro ver as árvores e os campos por onde passo!” O mestre elogiou o segundo discípulo: “Seus olhos estão abertos e você enxergará o mundo.”

O terceiro discípulo disse: “Quando eu pedalo minha bicicleta eu fico feliz". O mestre louvou o terceiro estudante: “Sua mente se expandirá com a suavidade de uma roda novamente centrada.”

O quarto discípulo falou: “Pedalando minha bicicleta eu vivo em harmonia com todas os seres sensíveis.” O mestre ficou feliz e disse ao quarto estudante: “Você pedala no caminho dourado do bondade.”

O quinto aluno disse: “Eu pedalo minha bicicleta por pedalar”. O mestre sentou-se aos pés do quinto estudante e disse: “Eu sou seu discípulo."


Retirado do blog Bicicleta Alternativa

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Borandá

A grama à noite é fria e úmida. Algumas luzes espalhadas e distantes dão algum sinal do caminho. O prédio lá para trás não incomoda... como uma montanha. O estranho cheiro de cevada já se acomodou nas narinas... a água de cor incomum faz seu burburinho de soneca. A espuma é amarela, a onda é dourada, o fundo brilhoso, como se todo coberto de pepitas de ouro e cascalho misturado. Caminha. Pisa na madeira, igualmente úmida com o sereno. Quase escorregadia. Passo ante passo, afasta-se da terra. Vê as águas de baixo de si, entre as tábuas. Ouve as vozes baixas mais a frente. Naquele quadrado de madeira ao fim da ponte, aquele pier no meio do lago amarelo escuro, extremo, marítimo, algumas pessoas sentadas, deitadas... ora no colo de alguém, ora no próprio chão... ouvidos na água, olhos nas estrelas. Tantas e incontáveis. Muitas mais do que podem contar os dedos e as verrugas. Chego. Sento-me. Comento sobre as roupas de órion, seu cinto, sua calça amassada, seus anéis perdidos dentro do aquário. Penso nos ancestrais que não estão lá. Na distância que não alcançamos... mais distante que o tempo... o passado, o perdido e o esquecido... mas ainda diante de nós... as estrelas... mortas... suas cartas brancas que nos chegam com mensagens sobre as origens da criação. A água e o horizonte ondulam como uma música em transe... os que estão ali estão ausentes... a madeira desaparece... a água cala. O universo derrama-se... as estrelas caem. As pálpebras se fecham ante as janelas do mundo. A praia do lago, a ponte para o sempre... o lobo da colina azul... A passarinha com olhos grandes, bico risonho, penas macias... desce a0 mundo e abraça o camundongo para levá-lo e ensiná-lo a voar... fazem-se um e mergulham no marinho do céu. Durmo ali... manhã cedo, frio intenso... braços cruzados... ali.
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Ritmo

Passeando na rua, sobe no carrossel velho no meio da praça. Girando ao som da fúnebre música alegre, observa o mundo como a lua, pálida, distante e fria... Os cavalos trincados rangiam n´um coral de gemidos... as carruagens vazias corriam em círculos... As pessoas na rua não o viam naquele camarote escuro... seguiam suas conversas, suas alegrias, suas iras e estórias desconhecidas... Um momento para observar... para sair do plano para algo paralelo, algo atrás... da cortina do espetáculo... Ela dança... ela drama... ela tanto... ela nela... ela alcança... ela cansa... ela ânsia... ela espera... ela enérgica... ela festa!... ela ela... / E lá, tão longe, vê o sorriso dela... quando está só ela... antes do carrossel de fotografias tragicômicas... Ela sentiu algo que há muito não sentia... Ela feliz de formas antigas... Ela saudade dela?... No outono caem as folhas... as árvores secas recolhem suas forças... para o interior dos galhos e das entranhas... Despidas, finas, famintas, as árvores nem tão vivas, nem tão cinzas... amareladas no chão varrido pelo vento... cobrem as superfícies com camadas de pálpebras... olhos cerrados até a primavera... A onda vem e vai... a praia sobe e desce... afastam-se e unem-se como uma forma de soneto de pés valsantes...
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terça-feira, 10 de agosto de 2010

Outubro

A casa tinha vários vazios... dois tapetes grandes no chão da sala. Algumas almofadas espalhadas... felpudas... fofas... As paredes eram pintadas uma de preto, outra de branco... duas de azul escuro... alguns jarros de plantas pelo chão... alguns pendurados no teto... outros amarrados na parede... A parede branca era a tela projetada com filmes. Havia uma caixa decorada com recortes onde se guardavam os filmes. Muitas pilhas de livros e prateleiras pregadas aleatoriamente... a anti-simetria era o toque de decoração predileto. Alguns tijolos pintados aqui e acolá servindo de suporte para livros, estantes, portas. Uma fonte n´um pequeno móvel de madeira circulando as energias da casa. Alguns cataventos na janela para zunir a brisa. Um balãozinho roxo e florido e seu balonista pendurado no canto do teto. Algumas frases escritas em momentos certos refletindo nas paredes e nos espelhos... Uma cesta de frutas n´um canto. Flores sobre livros cobertos por um paninho delicado. Alguns instrumentos musicais inspiradores espalhados por aí. Fotos jogadas em baixo das coisas e pregadas com durex nas superfícies. Janelas muitas e redondas. O céu era parte da decoração também. Chamamos os amigos e passamos quatro dias deitados, fazendo malabarismos com palavras, pirotecnia com poemas, equilibrismo com mímica e palhaçadas com filmes. As receitas inventávamos na hora com o que estivese à mão. Cada um trouxe uma coisinha de casa para alimentar os apetites. Pelo fim da tarde era um silêncio de cada um no seu canto... Um lia um livro, outro mal-me-quer-bem-me-quer n´uma margarida, a menina de lá descascava uma tangerina e o rapaz mais alto olhava pela janela as formações de nuvens... Os dois daquela casa deitados na rede balançavam-se... Era muita coisa acontecendo e tantas pequenos acontecimentos sendo... Qualquer música alguém botava para tocar... e à noite era de festa...

Festa para comemorar a boa estação... a nova estação...

Ainda lá

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Cai uma gota... outra respinga... estoura aquelas moléculas minúsculas de água contra a superfície lisa da pedra no leito do rio... fina garoa... só para umidecer a folha das árvores e a tez... granular o cabelo de gotículas brilhantes... salpicar os óculos de espelhos circulares... esfriar a brisa e a alma... o cascalho molhado estala a cada passo... a água corrente do rio vaporiza o ar, cria pequenos arco-íris... Após bom tempo de caminhada, despe-se da camisa, dos sapatos, dos anéis... tira a amarra do cabelo e coloca-a no pulso (para não perdê-la) e entra... Sente a pele tremer de súbito... os ossos se espriguiçarem de susto... a respiração acelerar n´um pulo... dá braçadas, gira... mergulha, sente a água fria no rosto... sente as pedras no fundo... as ondas nos cabelos, a umidade na boca... nublado, a luz é amena... pernadas fortes para manter-se na superfície... energia... o frio desperta o corpo... vitalidade... Nada em direção a ela... se olham... se aproximam... suas peles se encontram... os narizes se encostam... não piscam... o máximo possível... olhos nos olhos... castanhos escurecidos... como uma madeira antiga mas alegre... as sobrancelhas pingam... os narizes gelam... as bocas respiram... os ouvidos confundem o murmurar da água com o do peito... mãos dadas, flutuam... chegam ao céu com a vista... desfazem as nuvens como algodão... bebem a água sem querer... matam a sede das mãos... navegam até uma pequena ilha... colhem dela uma maçã fria... mordem o mesmo pedaço... escondem-se na semente...
e deitam no chão...
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Se há solução, por que se preocupar? Se não há solução, por que se preocupar?


Alcançar o destemor...

Alcançar?...

Quem não teme, teme não temer?

O que é temer? O que é o medo?

Quantos paradoxos e contradições do pensamento...
Como transcendê-los pelo próprio pensamento?
Como utilizar a lógica, se ela se emaranha?

Então... há apenas a inexistência de resposta... - Não há...


Nem temor nem destemor... Não há medo, não o tenho...
Não há alegria nem tristeza... pois caminho pela vida
Não existe ansiedade nem excitação... há o impulso de viver
Não há a certeza nem a dúvida... apenas é o que é
Não há dor nem prazer... há o sentimento pleno de todos os sentimentos
Há todos os risos e todas as lágrimas...
Há todo o amor... toda a luz... toda a treva... toda a vida...


Uma noite sentado no colchão sobre os lençóis amarelos da simples generosidade, procurava imagens que dessem cores vivas e linhas firmes à lembrança querida... Outra noite ouvia as sílabas saborosas nos poros de meus sentidos... N´outra, deitado no ar engaiolado, senti a falta do abraço aconchegando minha alma... Sinto tantas faltas...
Por que senti-las?...
O que me falta?...
Nada...

Então não há faltas a sentir...
Nem presenças a reafirmar...
Elas são e isso basta.
O dia não reafirma sua presença com brilhos inesperados...
Ser como o dia que é, nos tempos que lhe são próprios e que só ele determina...

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Duas meia-noites...


Busco refúgios às dores que me causam... encontro explicações que me protejam... Traço um caminho com as minhas pedras... deixo que se quebrem as pedras alheias... às quais, antes, partiram sob meus pés... Procurei-me nos outros e não olharam para mim... Hoje me pergunto "por que deveriam?"... Apenas é o que simplesmente é, apenas fazem o que querem fazer... como eu iria impedir? Não existem meios para tal. E hoje eu não espero por ninguém, não espero que ninguém apareça, nem conto com essa presença incerta... Quem está ao lado é contemplado e tratado como dádiva... Algo que me é dado pelo caminho da vida... E cabe a mim viver esse momento. Quem me acompanha nesse caminho, é tida como a graça... a bela e infinita graça de duas flores entrelaçadas descendo a corrente do rio... Não a procurei, por isso a encontrei. Não me obrigou, eu simplesmente a amo. Ninguém se conquistou, mas nos cativamos e nos apaixonamos. Afinados como um acordeão e um baixo acústico... em uma valsa de duas meia-noites.

Mas, aprendiz eterno, vez por outra erro a nota, esqueço um acorde, e desafino... e o som causa mágoa... e a mágoa acústica me estremece o peito, esmaga o estômago e enregela a mente... Quero aprender... quero que a música seja perfeita... todas as notas deste dueto harmônicas, belas, uníssonas... mas às vezes erro... não quero perder a música... temo que se partam cordas e se apaguem sons que eu amo... Rogo para que esta canção seja tão natural que se recrie após as tempestades, que as sementes jogadas a cada dia nasçam, refazendo as paisagens danificadas pelo erro... meu erro... A Natureza é eterna e infinita... espero que nossa música seja assim, natural... (eu sinto que é...)


"A dor é inevitável, o sofrimento é opcional"... dizem que disse Carlos Drummod.


Me dói quando faço sofrer...