Abriu os olhos. O mundo estava deitado. Com um piscar, percebeu que não, era ele que estava no chão. Um tanto atordoado, zonzo, sem saber... o quê? Olhou ao redor e não reconheceu. Que lugar é esse? Então percebeu que onde estava deitada sua cabeça havia um pequeno lago... vermelho... Como um reflexo, levou a mão à cabeça e sentiu o ferimento, os dedos tingidos de rubro. Caíra? Terá sido um acidente? Ou alguém fez isso com ele? Estava n´uma rua vazia, apenas casas de uma ponta à outra. Ruídos de automóveis ao longe, o barulho de uma mangueira aguando algum jardim invisível, dois gatos olhando-o do outro lado do calçamento. Queria poder perguntá-los se viram o que aconteceu. De súbito, a surpresa. Tentou pensar e sua mente estava enevoada quando buscou na memória qualquer coisa. Fransiu a testa, apertou os olhos, como se olhasse através do chão, tentando focar a si mesmo, voltar os olhos para trás, no passado. Nada. O coração acelerou, um desespero subiu-lhe pela nuca. Qual é meu nome?! Correu as mãos pelos bolsos, verificando se não havia nada que iluminasse sua lembrança... Vazios... Quem sou eu?! Olhou ao redor, buscando o nome da rua, tentando lembrar que dia era aquele, mês, ano, que cidade!?! Os gatos, um preto com leve penugem branca sobre os olhos e na ponta das orelhas e outro branco com manchas douradas ao longo do corpo e até o fim da calda, olhavam-o, inertes, testemunhando tranquilamente seu isolamento e angústia, como se esperasse o homem para juntar-se a eles... Ficou ali ainda por alguns minutos, sentado, observando a poça cor de carmim, viva, quente... Deduziu que passou pouco tempo desacordado, pois o sangue nem começara a coagular... não pôde examinar melhor o ferimento em sua cabeça pois estava bastante doído ao toque... Vestido com uma camiseta branca sem detalhes, manchada de sangue na gola, uma calça e sapatos... parecia que nunca tinha visto tais roupas... Levantou-se vagarosamente... Está de frente para um muro de pedras lisas... Um jasmin resplandecia no quintal e mais gatos (amigos daqueles dois?) equilibravam-se no muro. Resolveu pedir ajuda... Bateu palmas, pois não havia campainha... Uma moça de cabeços ondulados, broche de flor de lã preso no cabelo que brilhava ao sol e sinaizinhos pelo rosto e ombros apareceu na porta. Explicou a situação o quanto pôde, pois ele não sabia muito mais que ela... Disse que estava ferido e mostrou a mão ensanguentada... Ela deu um gritinho contido de susto e correu para buscar as chaves do cadeado. Fez ele entrar, sentou-o na cadeira da varanda e foi buscar água, gelo, curativos... - Você precisa ir ao Hospital ver se não é algo grave... - Disse ela, no meio do rebuliço de ansiedade do sangue, do curativo, da emergência. Ele percebeu que a menina estava tão nervosa e aflita como se fosse alguém de sua família, alguém muito querido. Se sentiu bem por isso... Não lembrava de nada nem de ninguém e ter essa pequena prova de importância do destino ajudou um pouco o desconcerto estilhaçado de sua alma. - Quando eu terminar aqui, vou com você no Hospital... Não se preocupe, vai dar tudo certo. "Com você cuidando de mim, tenho certeza que sim", pensou ele. Sentia uma dor aguda no lugar do curativo... Foi bem doloroso para limpar a ferida e um pouco menos para enfaixar. Quando terminou, sentia-se um príncipe indiano com seu turbante... - Com esse alvoroço todo, esqueci de perguntar seu nome. - Disse ela, já mais calma. - Que nome você me dá? Me batize... - foi a resposta do rapaz, querendo fazer graça, mas triste pelo seu esquecimento. - Como assim, que nome te dou? Não sei... diga logo - Eu também não sei... Não consigo me lembrar de nada... - Uma expressão de comoção tomou o rosto de pele clara e suave da moça... - Own, que triste... sinto por você. Vou chamar-lhe então de Rodrigo... que tal? - Ele concordou com um sorriso. Apesar do sofrimento interior pela perda de seu passado, sentia-se feliz pela fortuna de tê-la encontrado. Não sabia exatamente o que representava essa felicidade. Era algo simples, imediato. Sentia como se tivesse borboletas no peito, voando com asas quentes, fazendo cócegas na sua alma, como se fossem esperanças ou bons pressentimentos. No Hospital, precisou raspar a cabeça para fazer o tratamento necessário. Após, o médico encaminhou vários exames para observar os danos cerebrais que causaram a amnésia para saber a gravidade da situação. Voltaram para casa sem conclusões. - Você pode ficar aqui esta noite. Coitadinho... para onde poderias ir? Não se lembra onde mora, quem é sua família. Eles devem estar desesperados atrás de você. Vamos avisar a polícia, para quando seus parentes te procurarem. Moro nesta casa trabalhando para uma senhora muito severa, mas tenho certeza de que ela compreenderá sua situação. Talvez possas ficar aqui me ajudando no serviço e ela deixe você ficar o quanto precisar. O que você sabe fazer? - Bem, não sei ao certo... Acho que sei cuidar de plantas, jardinagem, horta, algo assim... - Ótimo, a senhora vai gostar de saber disso! Ela trata suas petúnias e não-me-esqueças como se fossem seus filhos. Você poderá ser, então, o preceptor das 'crianças'... - Riram juntos... ele, principalmente, ante a perspectiva de permanecer perto da garota por mais tempo. - Vamos passear - sugeriu ela - para esquecer um pouco o susto da manhã? - Vamos sim, excelente idéia! - Foram caminhando então pela rua... A poça de sangue estava agora bem escurecida e macabra... Quando ela olhou para o círculo vermelho no chão, sentiu novamente uma grande pena tomá-la, virou-se para ele e o abraçou, como querendo consolá-lo - Own, tadinho... vai dar tudo certo, viu? - Disse, enquanto passava a mão no rosto dele. "Já está dando"... - Vamos cuidar disso quando voltarmos - Completou a jovem. Foram andando até uma pracinha que havia ali perto... Crianças jogavam bola, adolescentes andavam de skate n´uma pista improvisada, mães e seus bebês conversavam juntas sentadas nos banquinhos. Os dois caminharam ao redor da praça, até chegarem nos balanços vazios que os estavam esperando. Com impulsos fortes, se balançavam, em silêncio. Então ele começou a perguntar pela vida dela, já que não tinha muito o que contar. Ouviu sobre as dificuldades que passara quando criança, de sua mãe, fria e distante, que apesar de não deixar faltar o essencial em casa, nunca foi carinhosa nem a valorizava, o que contribuiu para uma infância muito tímida e para sua baixa auto-estima... Sentindo as sombras que circundavam essas palavras, o rapaz pôs sua mão sobre a mão dela... - Você é uma menina maravilhosa! Deve sempre estar certa disso! - Ele tentou alegrá-la. Levantou-se então e segurando nas duas mãos da menina, fez com que ela levantasse também e a abraçou - Obrigado, muito obrigado por estar aqui. Você não sabe como é importante. Você é a única pessoa no mundo que existe para mim... Não me lembro de nada nem de ninguém e sem você estaria perdido... Você me salvou... obrigado... - Ela derramou algumas lágrimas por ouvir aquilo... Aquela gratidão misturada com afeição por parte dele... Algo que nunca tinha recebido... Apertou-o forte e ficaram abraçados por longo momento... As árvores ondulavam com o vento lá no alto, as nuvens avançavam vagarosamente, o sol, cansado, resguardava-se para seu descanso, o céu tingia-se de amarelo alaranjado... O barulho das crianças, das mães, das pessoas todas silenciou... para ouvir os corações batendo juntos... Ele já não queria ser achado... não queria encontrar mais ninguém... Encontrara a felicidade ao perder seu passado... a pele de seu rosto roçava carinhosamente no pescoço e orelha femininas, delicadas... O momento se estendeu até onde podiam se lembrar...
Dying in the Sun - uma música - The Cranberries
Dying in the Sun - uma música - The Cranberries
Um comentário:
e Manu, sempre suave.
linda história
deliciosa
(mas o titulo me inspirou viu? hehehe - depois verás)
Postar um comentário