O sono lhe era um fantasma chamado culpa. Passou os três primeiros dias sem conseguir dormir, angustiada, chorando e repondo a água de sua angústia em goles derramados pelos cantos da boca... O corpo amarrotado entre as colchas e edredons encardidos com sua dor e o abafado do quarto que já não via luz além dos filetes audaciosos que se esgueiravam pelo ar até o chão gelado, desviando e refletindo-se na espessa camada de tristeza que se arrastava pelo espaço aéreo, como águas mortas n'um rio fúnebre. Depois de uma semana trancada, o lugar já se tornava inabitável e assim também ela se sentia, incapaz de existir. O chão tornara-se uma armadilha de pó de vidro e cacos pontiagudos resultantes dos copos atirados contra as paredes, furiosa consigo pelo que aconteceu... Como podia ter acontecido? Como podia? Por quê? Ela só queria esfriar a cabeça em uma atmosfera longíngua, ir até algum lugar desconhecido e excitante, dançar toda a sua adrenalina para limpar-se das sensações acumuladas em tantos meses com aquele rapaz... para poder experimentar algo novo. Precisava de algo novo! Mas ao fim de dois meses de viagem, exausta e até um pouco subnutrida, resolveu-se por voltar... estava faminta de saudade... a ausência prolongada, nunca antes experimentada, a fez sentir algo realmente 'novo', de tal modo que não esperava. Até ela própria pareceu-lhe estranha tamanha era a vontade de revê-lo... e finalmente, decidida e apaixonada, fez o caminho de volta. Uma noite antes de voltar, sonhou com uma tempestade quebrando um barco ao meio. De alguma forma, ela observava do céu, como um pássaro acima das nuvens... Mas sabida pássaro, ignorou o naufrágio e pôs-se a voar o mais veloz possível, superou a cinzenta massa eletrizada e alcançou camadas mais calmas e amplas, esquecendo-se dos restos devastados de madeira que ficaram boiando pela superfície negra do mar. Quando acordou nesse dia, saltou da cama e correu para a rodoviária, em busca do primeiro ônibus que sairia para sua casa. Esperou lá mesmo as poucas horas até o embarque e deitou-se na poltrona ansiosa. Nunca lhe passou pela sua imaginação mais tenebrosa o que se seguiu... e tem a potente certeza que a atrocidade que derreteu seu coração jamais foi sentido por outra pessoa.. Quando uma tarde arrastou-se até a cozinha, deparou-se com o cheiro podre da geladeira, abandonada por meses... não havia nada que não estivesse vencido... Ah, tinha uns amendoins murchos e umas compotas de alguma coisa verde... Pegou o telefone e pediu desesperada por algo... os 35 minutos se passaram contados cada segundo lentamente... Comeu, enfim... e percebeu que o paladar desfalecera... a boca estava tão desiludida que se recusava a sentir. Deitou-se novamente, as mãos doídas, o corpo trêmulo, a alma condenada... Como pode ter acontecido? Nem pôde vê-lo uma última vez... nem tivera coragem para tanto... Não olhara para trás... não voltara... até que não houvesse para onde voltar... ela está em lugar nenhum... aquele lugar não é mais nada... Como se pela primeira vez ele se tornasse insubstituível. Tantas vezes antes passou perfeitamente bem sem... Mas agora que não o tem... o quer. No oitavo dia, já quase acompanhando-o, ela resolveu levantar e tomar uma chuveirada (se é que a água não teria sido cortada)... limpou os coágulos das mãos... os pequenos cortes profundos... os movimentos limitados... deixou-se ficar sob a corrente líquida por vários minutos, ouvindo o choque das gotas contra suas costas, seu cabelo. Depois saiu para a rua, com qualquer roupa, ver novamente o mundo... A dor já penetrara nela de tal forma que começava a chegar ao subconsciente e escapar do consciente... Respirava novamente... A perda se perdeu... em algum buraco que no futuro ela reencontraria... Limpou os cacos do chão, abriu as janelas... Fazia tudo sem si mesma... talvez ela tenha si perdido também... e apenas o corpo se movesse por autopreservação... Sem pensamentos... oca. Mas não podia evitar a dor em ver as roupas dele que restaram e as que faltavam... A ausência de símbolos... a resistência de imagens... Quando conseguiria olhar novamente para alguém? Uma tal ruína de suas idéias, conceitos e estruturas... uma morte vivida... mas ela passara pelo túnel e chegara ao mesmo lugar... Após tirar tudo de onde estava, por em outros cantos, pintar as paredes de um roxo-asfixia com pitadas de azul mar-morto... Foi-se atrás de algum emprego... as economias praticamente não existiam mais... E aos poucos, foi retomando o dia-a-dia... Recolocando as janelas próprias que quebraram... Não imaginara que o novo que foi atrás seria tão definitivo. Como mudar-se para um planeta desabitado... Mas ela iria repovoar seu mundo... era preciso. A culpa que sentia... pensara... lhe fora destinada. Tinha muito o que fazer com ela. Desistira de perguntar por quê. Continuava a chorar toda noite antes de despencar no sono. Mas agora parecia-lhe um ritual, molhar os lençóis sob a cabeça... Qualquer conhecido só descobriu que estava de volta algum tempo depois... ela não estava disposta a conversar... Faziam-lhe companhia, às vezes cozinhavam para ela... às vezes não apareciam... não importava. Quando as mãos deixaram, ela pôs-se a escrever... o que surgia... sem reler... passava a página para outras palavras soltas... O som estava quebrado... só tocava uma música só. Ficava a maior parte do tempo desligado. A única coisa que tinha vida naquele momento e garantia alguma existência era a horta que subitamente ela resolveu fazer. Observar o lento crescimento das ervas de chá e tempero ajudava-lhe a conhecer o tempo... colocar aquele verde brilhante em sua comida permitia restaurar o sabor... regar cuidadosamente nas primeiras horas da manhã davam um destino às suas lágrimas... a poda delicada ensinava-a a esculpir-se... os frutos mostravam-na como viver... a terra mostravam-na para onde ir.
Summer Dust - The Love Language - Uma música
Summer Dust - The Love Language - Uma música
Um comentário:
nossa...
ficou muito lindo o texto!
acho que vc conseguiu resgatar a alma da moça e tiveram momentos que pude sentir também
"Ela só queria esfriar a cabeça em uma atmosfera longíngua, ir até algum lugar desconhecido e excitante, dançar toda a sua adrenalina para limpar-se das sensações acumuladas em tantos meses com aquele rapaz... para poder experimentar algo novo. Precisava de algo novo! (...) estava faminta de saudade... a ausência prolongada, nunca antes experimentada, a fez sentir algo realmente 'novo', de tal modo que não esperava."
(me li)
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