terça-feira, 25 de outubro de 2016

Rendição dos Arrefices




I
Um marco, uma bandeira representando um novo ciclo. Aquele portal que nos guia entre os antes e os depois. Aquele lugar-história que está presente em nossa memória do viver e que se tornou ritual de celebração, exaustão, abandono, encontro e despedida. Quarta dimensão, quarta vez lançando no ar esta experiência, lançando no ser esta história pessoal.

II
Fui só, fui acompanhado, comigo, mas partilhado, dançando e se entreolhando, perdendo, mas encontrando. Outra forma de presença, outra forma de contato. Tão perto, em parte. Até certo ponto, faz parte. Manifestação do universo experimentando-se em nós, tensionando suas limitações, expandindo suas emoções, querendo e se rendendo.

III
Um caminho mais longo, passando pelo futuro, subindo serras, ladeado por verdes e recém fraternos, estabelecendo planos, plantando estradas e possibilidades. Leituras, canções juntas, danças velozes, sonos e sonhos vagos, distâncias e linhas, proximidades que tardam, saudades e próximos passos.

IV
Chegar, chegar, no correr da correnteza, caronando os fluxos, ligeiro, que já começou, se localizando e se guiando, pra onde vamos, amor? Qual canção nos chama agora? A música enfim se faz, envolve a carne, penetra profunda, faz da gente uma onda, reverberando nas quebras circulares dos sons, afins nesse seguir, linda companhia, lindo dançar de olhos e mãos, amo estar, te admirar, gostosa partilha dos acasos bons...

V
Mar. Jornada longa. Apenas três horas de sono. Suficientes. Acordar desperto naquele apartamento estrategicamente localizado, cercado de pessoas queridas de longa data, rumo ao destino mais bonito, o mar infinito, repleto de perigos e salgados sentidos. Sem música, sol intenso, chuva estranha, bairro lunar, sem esperas urbanas, boas conversas, risos fáceis, introspecção, com meus botões, minhas emoções, seguindo o vai-e-vem do ser...

VI
Eu não menti naquela noite. 
Mas também não era verdade.
Eu estava tentando entender, processar, digerir tudo aquilo. Foram dois dias de excesso de convívio. Um contato demasiado para quem tem tanto preso na garganta e nos nervos. Fui exposta a possibilidades que beiravam os limites de até onde eu podia ir, onde eu gostaria de ir e onde jamais chegaria. Poder acarinhar-te a pele, abraçar-te, acolher-te, cuidar-te de alguma forma, segurar tua mão, estar o dia inteiro contigo, dormir perto, fazer-te rir e te ouvir e você a me ouvir e estar lado a lado tanto. 
Queria e quero e quis tudo isso. Mas queria e quero e quis muito mais. Que isso não fosse um borrão ligeiro no tempo, mas uma pincelada forte de um quadro maior, mais bonito, mais detalhado, demorado. Que isso significasse mais, que aqueles olhos encontrados tivessem mensagens bonitas de bem-querer, que a dança partilhada demonstrasse desejos brotados da pele e de sentimentos ternos e fortes, que os gestos divididos fossem encontro mais além do que uma ocasionalidade.
Mas em todos esses instantes continuou translúcido de que não, nada disso era possível, que você continuava lá, do outro lado da linha que separa amor de simpatia, ternura de gentileza, cumplicidade e companheirismo de amizade e afinidade aleatória sem grandes vontades e direções.
Sentada em posições de meditação, de resiliência diante das ondas suaves, mas traiçoeiras, que pendularmente me desequilibravam, movendo as areias sobre mim, enterrando-me numa cova rasa, meditando de olhos fechados numa penumbra esverdeada pelo sol brilhante que transpassava minhas pálpebras, ciente de que você estava logo ali, brincando com as ondas, arrebatadoramente bela, decorada com gotas salgadas e refrescantes em todos os lugares da pele em que eu gostaria de me aquietar ou selvageriar, ali, naquele lugar, sentindo-me infinitamente só, veio-me esta suposta interpretação do que eu poderia estar sentindo, que só depois pude perceber não ser de fato o que eu estava sentindo. Ad-miração, supus. Só me restava te admirar. Te olhar, da distância desse abismo de sentimentos desencontrados. Encantar-me com cada gesto teu do longe desta plateia em que me refugio. Colecionar em meus porta-retratos interiores cada jeito teu de olhar, dançar, mover-se, rir, falar, ouvir, dormir, observar, respirar, existir. A atração tão inevitável que ora eu sentia só podia ser bloqueada e meu inconsciente talvez inventou essa história de admiração para encontrar alguma alternativa aparentemente possível, viável, realizável, que não me levasse para longe de ti. 
Mas no instante seguinte em que te contei tal historieta que na hora eu supunha real, virei para a janela do ônibus, salpicada de fracas luzes amareladas, e chorei. Acho que o absurdo daquilo tudo saltou do meu estômago direto para meus lagos tristes, lançando ondas por sobre meus olhos, fazendo-me sentir absolutamente estúpido, irrelevante, insignificante, vazio, inútil, com frio e só... inteiramente só... 

VII
Esses dois dias... Essa cidade... Esse festival... Essa companhia...
 

Nenhum comentário: