terça-feira, 2 de agosto de 2011

Contos vindos do nada (I) - parte II


Aquele cheiro a levou subtamente para sua infância, quando, em sua primeira casa, sua mãe fazia pães caseiros aos domingos, quentinhos, fofinhos, dourados, com fina camada de grãos de açúcar... Essa visão aqueceu o corpo como uma lareira n´uma noite de inverno, em algum lugar onde de fato tenha inverno (frio). Ela parou, concentrando-se na sensação.
- Venha, não chegamos ainda. É mais pra frente. - Disse o rapaz, aproveitando a oportunidade para segurar-lhe a mão.
- Ah, está bem. Estou indo.
Percorreram a pequena rua, estreita demais para passar um carro. Ali brincavam, seguras, crianças de bolinha de gude, pular corda e amarelinha. Uniformes escolares secavam em varais estendidos na rua, pois as casas eram pequenas demais e a rua era uma extensão das casas de todos. Dobraram a esquerda em outro beco, cruzaram com uma bicicleta azul com cestinha e fitas, sobre a qual uma menina pedalava, trazendo as compras da semana. Saíram n´uma clareira urbana, um campinho de futebol rodeado por casas e três árvores diferentes.
- É por ali. - Disse o rapaz.
Ainda de mãos dadas, ele a conduzia para qualquer lugar. Para ela, era uma descoberta dos detalhes daquela cidade... bairro... comunidade... pessoas... Ladeando o campo, onde acontecia a final de um campeonato de meninos de rua, entraram em outra rua e percorreram rapidamente um ligeiro labirinto de ruelas, chegando finalmente à outra pracinha onde quatro árvores enormes garantiam uma sombra fresca, uma abóbada natural. A praça era no limite da terra, de onde descia uma colina. Podia-se ver ao longe, a cidade lá em baixo, a serra no horizonte. N´um dos galhos das árvores majestosas, havia um balanço improvisado, de cordas e tábua de madeira. N´um outro canto tinha uma cigarreira.
- Estás com sede? Adoro tomar o suco de maçã com tangerina que tem ali. Vamos? Eu pago.
Sem dizer nada, ela o seguiu. Ainda olhava a vista, as árvores, as coisas.
- Olá mocinho. Nunca mais tinha lhe visto. Pensei que estivesse esquecido de mim - Disse a senhora que cuidava da cigarreira. - O de sempre?
- Com certeza! Dois, por favor. Caprichados.
A senhora sorriu, aquele sorriso mais que um simples sorriso, como uma insinuação, uma troça, achando graça do casal imaginário que via.
- Ah, e me vê aquele pastel de presunto e gorgonzola especial também. - E virando-se pra garota - Você vai amar o pastel da Dona Amélia. É fodástico...
A menina esboçou um sorriso tímido, mas permanecia calada. Quando a senhora entregou os sucos e o pastel, foram sentar-se n´um banquinho.
- Então, o que achas? - Ele perguntou.
- É realmente muito gostoso. - Disse ela, ainda mastigando.
- Não, estou perguntando daqui da praça.
- Ah, muito lindo. Obrigado por me trazer aqui. Eu nunca encontraria sozinha, depois daquelas curvas e ruazinhas. Na verdade, acho que nem sei voltar.
- Não se preocupe, eu te levo de volta. Mas não agora... né? Você já quer ir embora?
- De jeito nenhum... está ótimo aqui...
Fez-se um momento de silêncio... Um silêncio quase natural, transpassado apenas pela ansiedade do menino. Ele sentia algo estranho na boca do estômago, como se uma emoção estivesse prestes a pular de dentro dele... Era à tardinha e o sol ia se pondo, entre as nuvens cheias, pintadas de mel e calda caseira de morango...
- Eu lembro que um dos muitos lugares em que já morei era uma cidadezinha na serra e um dia, andando pela cidade ao léu, encontrei um lugar bem esquecido, mas que tinha uma vista maravilhosa das colinas, do horizonte, do além do longe... e eu gostava de passar tardes inteiras ali, sozinha, olhando... observando a brisa, a luz, as gotinhas de chuva que hora caíam, os passarinhos...
Enquanto ela falava, ele observava sua boca com tanta atenção que estava quase a tocando com o olhar... Quando percebia sua atitude, desviava o olhar, dava uma mordida no pastel disfarçadamente, mas ela nem notava, tão absorvida na paisagem e na imagem que tinha na mente daqueles tempos idos...
- Muitos lugares em que já morou? Como assim?
- Ah, é porque eu vivo me mudando. Quero dizer, meus pais... e eu vou no meio... Nunca passamos mais que um ano n'um lugar... - disse as últimas palavras de maneira quase inaudível, como se uma pequena bolinha de tristeza tivesse apertado os sons finais...
- Um ano?! Mas, faz quanto tempo que você chegou?
- Poucas semanas... Três, na verdade... e veja só! Já conheci esse lugar maravilhoso! Graças a você!! - disse isso de maneira entusiástica, dando-o um abraço ao redor do pescoço que quase o asfixiou... não porque ela o tenha machucado, mas porque o ar lhe fugiu de tamanha surpresa e emoção. Seu rosto corou e ele ficou envergonhado com o gesto de afeto tão espontâneo, mas não esboçou nem uma mínima resistência... Rapidamente ela desenlaçou-o e pegou novamente o pastel que tinha pousado no colo. Deu antes o primeiro gole de suco, disse pra ele que estava muito gostoso e depois fez silêncio... mordiscando o pastel, para demorar o máximo possível para acabar... Ela estava sentindo uma sensação tão inesperadamente gostosa em estar ali que quase sem perceber queria prolongar ao máximo o pôr-do-sol, o suco, o sabor de queijo e a presença praticamente desconhecida... não conseguiu dizer mais nada... e ele não queria tocar no silêncio... ficaram apenas observando... contemplando a serena jornada do sol até seu fenecimento diário... Quando acordaram do sonho, viram que era melhor irem embora, pois por ali à noite podia não ser tão acolhedor quanto de dia... perceberam que os sucos e pastéis estavam quase intocados e tiveram que engoli-los rapidamente, aproveitando apressadamente do sabor... e foram correndo de volta para a pracinha... Ele segurava na mão dela que se deixava levar... até estarem novamente em frente ao banquinho.
- Eu moro ali.
- Eu sei.
- Quer subir?
- Não, obrigado. É melhor ir para casa... Gostei muito do passeio, do lugar pra onde você me levou. Foi muito especial - Dizendo isso, ela rapidamente se aproximou, ficou nas pontas dos pés e deu-lhe um beijo na bochecha, quase encostando na boca.

(Parte I aqui)

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