quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Uma História Libertinha - Parte 2



I
Sua boca estava úmida pelo frio da manhã. Passou a língua pelos lábios. Uma vez lhe contaram que as gotas de orvalho são partículas de lembranças que, saturadas no ar, se liquefazem sob a temperatura suave da alvorada. Fechou os olhos para sentir o que acabara de sorver. Lembrou-se de um dia no topo de um morro de onde se via o horizonte ao longe, da caminhada solitária, dos cheiros de mato e dos gostos de sementes e frutas secas que levara para comer. Gostou das imagens sentidas e imaginou - preciso fazer isso... Estamos todas ligadas de um jeito ou de outro. Em que medida aquilo que eu imagino é fruto da minha invenção ou simplesmente uma vivência de outra pessoa transbordada e espalhada no ar que de alguma forma chegou a mim? O que criamos sozinhas? Será que fazemos algo sozinhas? Ou tudo vivemos acompanhadas de todas as pessoas que viveram caminhos próximos, afins, todas que querem viver tais direções, todas que passaram por direções diferentes ou transversais? E então recordou a noite anterior – exalando essa lembrança no ar, o encontro, as graças partilhadas, o riso, o toque, a sensação de proximidade e mesmo conexão, os aprendizados. Alguém um dia lembrará isso? Sorriu.

II
Passou algum tempo ainda espreguiçando-se no seu colchão de tecido natural. Sua cama era macia, recheada de muitas folhas e flores secas, que exalavam um calmante perfume sobre uma esteira de palha no chão do quarto limpo e amplo e vazio. Além da cama, tinha apenas uma mesa e uma cadeira de madeira muito bem trabalhadas, uma pequena prateleira com livros, cadernos e um copo no qual haviam lápis e pincéis ao lado de um vidro de tinta, um pequeno baú de madeira entalhada, no qual desenhava-se a imagem de árvores, um lago e pessoas alegres e duas pinturas em aquarela na parede à esquerda da cama. Por fim reuniu forças para levantar-se. Fez um rápido alongamento, despertando as articulações e músculos. Então tirou do baú uma esteira, sentou-se nela com as pernas cruzadas e por cinco minutos ficou em silêncio, de olhos fechados, concentrando-se apenas na respiração. Levantou-se. Pela janela podia ver o jardim comestível ao lado da Casa Comunal, no qual via algumas pessoas já trabalhando, coletando serrapilheira do bosque mais próximo para renovar a cobertura de solo dos canteiros do jardim. De seu quarto, no primeiro andar, podia apreciar as belas formas desenhadas pelos canteiros, círculos, espirais, mandalas, ondas, todas repletas de cenouras, couves, girassóis, hortelãs, abóboras, abobrinhas, berinjelas e uma infinidade de hortaliças, medicinais e aromáticas mais. Os delicados e variados cheiros chegavam-lhe intensamente, pois o calor da manhã trazia os odores para cima. Desceu as escadas, atravessando o longo corredor cheio de outros quartos, algumas portas abertas, outras fechadas. Em uma havia um Kusudama, origami feito de encaixes de várias partes, neste caso, formando uma multicolorida bola com um sininho pendurado em baixo. Era gostoso acompanhar com as mãos a forma irregular do corrimão, um belo galho de goiabeira retorcido na forma exata da escada espiral.

III
Duas pessoas cortavam frutas, fazendo saladas e sucos. Abraçou-as e beijou-as em comprimento de bom dia e pensou no que fazer. Resolveu-se por uma fornada de biscoitos de aveia com passas e chia. Sentiu o cheiro de pão subir do forno - que delícia, sentiu. Em trinta minutos tudo estava pronto. Sentaram-se todas na mesa de madeira, três àquela hora da manhã, e começaram a se servir. Havia também geleia de banana com maçã e canela, patê de berinjela e azeite para passar no pão quentinho.

"Como foi o dia de vocês ontem? Que fizeram? Estão aproveitando o festival? Perguntou Pequena Mar.

"Sim, sim. Estou participando na organização da grande tenda de circo aéreo, então passo o dia lá auxiliando e cuidando de tudo, disse Nuvem Alta. Esse ano está muito bonito, não é? Muita gente! Acho que está sendo o maior festival que já tivemos. Muitas e muitas barracas acampadas pra lá do campo de girassóis. Conheci umas queridas de Altos Aires, elas me contaram as coisas que tem rolado por lá... Elas estão inventando uma nova linguagem de símbolos recombinantes - cada frase dá para ser entendida pelo menos de dez jeitos diferentes por qualquer pessoa, mesmo quem está vendouvindo pela primeira vez essa linguagem... A compreensão de qual o sentido exato que se quer expressar depende muito do jeito de olhar, de gestos e da energia no momento. Logo, a linguagem escrita serve mais para poesia do que para registros, porque oferece uma infinitude de possibilidades interpretantes, imaginantes e transcendentes.

"Que lindo, respondeu Pequena Mar.

"Vou propor no conselho dessa semana escrevermos uma frase bonita nessa linguagem na entrada aqui da Casa Comunal, continuou. "A frase diz, entre outras coisas, esse é o sentido que eu mais gosto, vem com calma vem intensa no brilho da terra que aqui se cultiva.

"Pois me avise que eu quero te ajudar!

"Pode deixar!

"Ai, já eu esse ano estou em clima de outros ares... estou aproveitando que quase todas estão concentradas no festival para conseguir me isolar mais e produzir... estou trabalhando no bosque, construindo uma casita na árvore. Será um belo mirante, biblioteca, cantinho de encontros, refúgio. Mexer com madeira, ferramentas, medir tudo nos tamanhos exatos para se encaixarem perfeitamente, reciprocamente, usar o mínimo para fazer o máximo, não há nada melhor para mim, disse Lua Cheia.

“Que lindo. Também quero te ajudar! Posso te acompanhar hoje? Interessou-se Mar.

“Claro! Será um prazer ter sua companhia.

“Hmm, como está incrível este pão! Hmmm! disse Nuvem Alta. A geleia se desmanchava no pão que Nuvem segurava, enquanto ela, de olhos fechados, gemia de contentamento.

“Nunca me canso de ouvir teus gemidos. Você é a melhor pessoa para se estar quando se come. Tudo fica duplamente mais gostoso, tanto você saboreia e mergulha cada comida, comentou Pequena Mar.

IV
Assim que acabaram de comer, Mar e Lua prepararam uma sacola com frutas, suco e um pouco de torta salgada que havia guardada para almoçarem mais tarde. Antes de seguir para as brincadeiras do dia, precisavam contribuir com o cuidado da horta ao lado da Casa. Pequena Árvore estava orientando o manejo agroecológico naquele momento e solicitou que elas fizessem uma poda regenerativa das plantas, retirando as folhas secas e levando-as para a composteira e colocando apoios nas ervas que cresceram mais do que conseguiam sustentar. Aguaram cada planta conforme sua sede. A Mar era especial o jeito como a água era absorvida pela terra úmida, animando-a. O som produzia era diminuto, mas lembrava-lhe o estourar de minúsculas gotas. Observou a movimentação dos insetos, a vivacidade do solo, uma minhoca aparecendo aqui e ali, aproveitando-se da sombra e refrescância da terra molhada. Colheram algumas berinjelas já graúdas e brilhosas, cortaram as folhas de couve mais desenvolvidas, alguns couve-flor enormes e suculentos e foram acomodando tudo no carrinho. Após três viagens do carrinho à grande e fresquinha dispensa, deram seu trabalho ali por encerrado. Mas Mar e Lua aproveitaram mais alguns minutos no grande cômodo, que tinha uma temperatura bem menor do que do lado de fora, pois suas paredes de barro e muito material isolante térmico e um sistema de resfriamento natural usando evaporação de água em alguns tanques junto à partes mais finas da parede garantiam o efeito, além, claro, da posição escolhida na casa, no lado sul, onde praticamente não recebia sol direto em nenhuma época do ano.

V
Seguiram por uma das inúmeras trilhas que saíam da Casa Comunal, esta dirigindo-se para a lagoa mais próxima.

“Que delícia! Esta água está perfeita, bem friinha, pra refrescar e animar o corpo! Comentou Lua.

“Às vezes eu passo tardes inteiras aqui, boiando e vendo o sol lentamente mudar do azul pro alaranjado e pro negro estrelado.

Ainda molhadas caminharam pro bosque. Lá, já secas pelo calor do exercício, Lua Cheia explicou a Mar o que já tinha feito e o planejava fazer naquele dia. A base da casa já estava pronta, precisavam agora estruturar as vigas do teto. Cortaram as madeiras com cuidado, cortadas dias antes no bosque reflorestado, área preparada especialmente para colheita para construções. Posicionaram-nas e as encaixaram de forma que cada uma sustentava o peso da outra, em estrutura recíproca. Fizeram alguns nós com cipó encerado para garantir e começaram a colocar a cobertura de palha seca que também já estava preparada ao lado. A casa se erguia entre duas enormes e orgulhosas árvores centenárias, uma jaqueira e uma mangueira.

“Essa casa será meu novo cantinho preferido, disse Mar.

“Acho que já trabalhamos o suficiente por hoje, disse Pequena, quando o sol começou a se pôr. O que acha de caminharmos até o riachinho do bosque? Podíamos dormir lá.

“Adorei a ideia.

VI
Pegaram a trilha que seguia pela floresta, bem sinalizada com laços coloridos que indicavam os vários lugares sagrados da mata, o riachinho, o altar das ancestrais, a clareira dos conselhos de visões, os caminhos suspensos de arvorismo, o vale dos cogumelos mágicos, a tenda da lua, entre tantos outros. O riachinho era ladeado por grandes rochas, onde elas podiam deitar-se para observar o sol se pôr e lentamente dar lugar às infinitas estrelas. Com os pés sentindo o fluxo das águas e os olhos entregues ao brilho negro no céu, elas passaram várias horas sem dizer palavras. Respirando a beleza de cada instante. Pequena aninhou-se no ombro da outra e fechou os olhos, sentindo a carícia delicada dos dedos da querida nos cabelos. E os carinhos continuaram por horas, mesmo depois dela já estar dormindo.

“Colhi amoras e ameixas para nós. Bom dia, disse Lua Cheia, tocando os lábios na boca da outra.

Sob a luz de Aurora - Runaway