segunda-feira, 25 de abril de 2011

Fóssil

Já teve uma relação muito íntima com a dor. A necessidade de senti-la. E o hábito de provocá-la, criá-la, com as mãos, em suas mãos... Após séculos de repressão, de reclusão, de aperto dentro dos seus limites corpóreos-espirituais, chegou ao ponto de massa crítica, em que a energia agressiva que havia e que nunca tivera uma forma de existir, fluir, gastar-se, descobriu um meio, uma brecha, uma saída... É assim que surge a violência. O desejo de destruir, de ferir, de doer... Pura energia envelhecida, azedada, que passou longo período corroendo o barril fraco que a contém, até estourá-lo, transformada em algo ruim, venenoso e ácido. Violento, batia em quem o tocasse, mexesse com ele, ousasse provocar. E a violência era tão séria, firme e decidida, que não pensavam ser uma brincadeira, fingida... Era real, queimava quem tocasse. No entanto, não tinha motivos nem propensão a agredir o mundo externo... Sentia que seu ódio voltava-se contra o interior, contra a masmorra fétida em que passara tantos anos, aquelas pedras asquerosamente cobertas de musgo, umidade doentia, tristeza sem dó. Queria destruir tal estado de espírito interior, rasgar as correntes de sua alma e só, sem mais... Armava-se, então. Afiava os ossos das mãos como facas, esmurrando paredes, madeiras e pedras para modelar os punhos. Lembrava-se da história de que os ossos reconstróem-se diariamente, reforçando-se onde são mais cobrados, aperfeiçoando-se a estrutura vital. Desta forma mantinha as mãos sempre em agonia, para que a dor curasse a si mesma, doendo até não mais doer... E, nessa histeria insana de ira, cultivava uma fantasia, um extremo exemplo de sua loucura viceral, chegar, enfim, ao limite de sua dor, ao quebrar o osso forte, romper sua resistência, despedaçar a parede óssea de sua prisão. E naquela manhã de domingo, quando viu-se novamente acorrentando diante de seus desejos, seus sonhos, suas possibilidades, quando viu que não podia correr até seu destino, esbarrando na maldita grade cinzenta e podre de sua vida, n'um ápice de cólera, deu um murro n'uma parede irregular, com tanta força e tão sem jeito e despreocupação que sentiu uma dor aguda. E só. Não se importou. Fugiu... Andou... Derramou no mar os rios de suas trevas, pois não aguentava mais carregar nem violentar qualquer coisa... E ao voltar, percebeu então o resultado, sua conquista, seu espólio. A mão estava quebrada... rachado o osso da quarta falange, rocha despedaçada após a tempestade... E vislumbrou a luz... e sentiu prazer... imenso prazer com a mão imobilizada, com a sensação do acontecido, do realizado, do presente...


E depois de tantos anos... livre, longe, irreconhecível para aquele passado, lembrou-se sem qualquer razão desse fato memorável... Passo fundamental para estar aqui e agora...

domingo, 24 de abril de 2011

Antimúsica

Os ouvidos vibram incessantes, micr'ossinhos de sensibilidade sutil levados aos extremos do desgate ininterrupto pela impossibilidade contemporânea de sua paz. A calma, o descanso, a tranquilidade destes esforçados membros de nossa constituição sensível é algo tão raro, talvez só possível durante o sono, e olhe lá! Depende de onde você mora, se não tem nenhuma avenida movimentada e insone por perto, nenhuma alcatéia de cães a falar sobre a última novela animal, nenhum alarme de carro zunindo noite adentro, como cigarra/o eletrônica/o expelindo sua fumaça sonora. Ah! A música do silêncio, qual é? Onde está? A sonoridade inaudível do existir, a forma risonha da voz calada, a trama insinuante da vida muda, sem trilha, fora da trilha sonora...?.
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Por dois dias houvi/mos música sem parar... O som colocado no alto da geladeira, coração da casa, irradiava sua vibrante energia, reverberando pelas cavernas escuras de meus ouvidos, rachando-lhe as paredes imperceptivelmente, ocupando cada brecha de meu espírito, pensamento, vazio... O tão precioso vazio... morto - a machadadas ritmadas. Toda sorte de música, forte, suave, clássica, pós, minha, d'outro, além, depois... Até que.
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Eu disse
- Estou afim de ouvir nada.
E o Coro disse
- Eu também / Eu também / Eu também.
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Putz, ouvimos música até cansar, todos os instantes de cozinha, de mesa, de cama, de riso, permeados pela música. E a manhã vitoriosa do terceiro dia foi, enfim, acompanhada pela beleza acústica do nada... do silêncio... dos mínimos sons naturais do coração, do vento, do chuvisco, do viver...
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E Ele disse: Faça-se o Silêncio.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Ab-T-orto

Qual o controle que temos sobre nossas ações? Temos controle? Não? Partindo de nossos desejos ou convicções, o que fazemos marcará a vida, cicatrizes ou lembranças felizes.




Ter responsabilidade sobre si mesmo já é um desafio para o qual, muitas vezes, nos vemos despreparados. Imaginar ser responsável por duas pessoas nem passou pela cabeça da gente.




Augusto mau começara a universidade. Ingressara no curso de artes visuais, já se envolvera com projetos, ideias, grupos. Um novo mundo. Estava naquela tarde voltando para casa depois de um dia bem empolgante. Encontrou com aquela menina. Na semana passada ele e ela passaram a noite juntos. Uma aventura despreocupada.




Luisa entregou-lhe um papel sem olhá-lo. positivo foi a primeira palavra que viu. Era um teste de gravidez. Aos 22 anos ele recebeu a notícia mais pesada de sua vida. Ficou em silêncio. Lembrou-se do dia que tivera na universidade.




O teste estava datado de três dias antes. Nessas 72 horas ela tomara uma decisão, não deixaria uma noite mudar toda sua vida. Na cama ela não tinha pensado nisso.



Os cabelos castanhos cobriam os olhos da jovem de 19 anos quando Augusto a olhou. Voltando para o chão, ele pensou - meu curso é à tarde. Vou ter que trancar, preciso de um emprego.



Aquela menina lhe era quase uma estranha, mas naquele instante em que ele a olhou, sabendo o que ela carregava, decidiu que tinha nove meses para conhecê-la o máximo possível.






Agosto ou setembro de 2009

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Pulando...


Sem ânimo para respirar... Não há sentido em levantar pela manhã.
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As vontades são um amontoado de pesos mortos... Todo o esforço é inútil... As pessoas estão mortas... gostaria que morressem novamente.
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Só eu e ela, mais ninguém... uma ilha deserta, meu espírito...
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Chovendo gotas pesadas, guarda-chuvas fugidios...
O inverno é a estação permanente, com ligeiros raios de sol aos sábados e domingos
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A fuga e a destruição é o que se chama sensatez
Razoável seria o Apocalipse...
O bom senso nos indica o suicídio...
A inteligência sugere algo coletivo...
E involuntário... e acíclico...
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A paz é a inexistência... a combustão eterna do sol...
A alegria é a ausência da loucura...
Realização é a instabilidade da queda livre
Desintegrando e desesperando
Pare de acreditar no amanhã
Pura ficção não escrita por você....
Pare de aceitar!
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A vida é um oceano e eu sou um quebra-mar...

segunda-feira, 11 de abril de 2011

de sal a sal...


Trabalhando oito horas por dia (só 8?), com afinco, concentrados, olhando atentamente o que fazem, com as mãos ou com uma parcela da mente. Seguem suas rotinas, cumprem suas tarefas, aceitam suas obrigações, não como prisões, mas como a forma exata de suas vidas. Nem um passo além, conformados. Ou não fazem tão compenetrados assim, mas simplesmente fazem, empurram o tempo, carregam cada minuto como um monolito, Sísifos assalariados, arrastando a jornada de trabalho como destinos inevitáveis, como moldura invencível da realidade.
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Trabalham, assim, unicamente. Trabalham, há apenas isso para fazer. Oito horas, dez, doze... o dia inteiro como parte de suas vidas. Em casa comem, dormem e esperam o dia seguinte, fazem apenas a manutenção de si mesmos, para que não faltem o expediente. Assistem Tevê para o tempo passar ligeiro... não há muito que fazer fora do emprego... De manhã logo cedo, lá estão eles... tão dignos, tão valorosos... trabalhadores... eternos trabalhadores, a serviço dos patrões que com eles recheiam os bolsos... Tão corretos diante da moral que não é deles, mas que beneficia outros...
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Às vezes querem que seus filhos sejam o que não foram, conquistem o que não conquistaram, lutem pelo que não lutaram. Transferem para os filhos o futuro que não tiveram nem buscaram. Não tiveram oportunidades, mas continuaram trabalhando... para existir... Pra quê? Sobreviver como o fim em si mesmo... Pra quem?...
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Às vezes encomizam, sacrificam-se mais ainda, além de todos os limites, apertam os cintos até a espinha, engolem o estômago e "poupam"... Querem abrir o próprio negócio, querem virar a mesa, arranjar outros pobres não poupadores para trabalhar para eles... Acreditam na loteria do um em um milhão... um em milhões com seu próprio negócio, próspero. E não dá certo. Vão à falência e vêem que outros chegaram antes e mais bem preparados... e tentam de novo... ou outros tentarão...
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E trabalham... e trabalham...
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Com o único fim de gastar a vida... de ir vivendo... como Deus quer e o patrão manda... De novela em novela, de domingão em domingão... vivendo... cada dia como o dia anterior...
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E quando morrem... sentem-se felizes por terem sido "trabalhadores"... "honestos"... "lutadores"...
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Ou sentem a tristeza do nada, da pobreza, da miséria, do cansaço da vida inteira...
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Ou não sentem nada, quando morrem...