terça-feira, 8 de junho de 2010

m(ú)sicas da margem e rede no jardim

Vagabundo d(i)mundo, com um sax, um bandolim ou gaita qualquer, qualquer latinha ou instrumento de corda, algum tambor improvisado, um lápis e um papel, ou carvão riscando a parede, um giz desenhando no chão, qualquer forma de expressão... para ele se alimentar... pela rua vazia de espíritos pessoais, vagando por entre as telas privadas sem pedir permissão... esgueirando-se por debaixo do nariz autoritário, (por)sobre/vivendo ao claustro urbano que ele penetrava com seus pés libertos... ele a ninguém pedia licença para existir. Não deu informações para registro estatal, negou-se a aparecer no alistamento, a polic(v)iolência) da sociedade não sabia encontrá-lo, pois ele esqueceu seu endereço, suas indicações e pontos de referência. Ou não, não esqueceu, apenas sub(verteu) pela pele e garganta outras opções, suas próprias direções, seus lugares para estar. Por(des)ventura, esbarrava com as coerções da lei, ávidas por árbitrar suas jogadas, ditar-lhe regras de cima, caindo-lhe com mão pesada sobre as costas para fazê-lo ajoelhar. Mas, ágil e sabido que era de cada beco e ruela daquela imensidão concrética, pulando cercas, escalando bueiros, enterrando-se sob papelões ou atrás de latões nas sombras, ele costumeiramente fugia das tentativas de cercear seu auto-ser.

Sentava-se a beira do calçadão, de frente para a praia, à margem dos passos indiferentes das pessoas. Conseguira um caderninho e uma caneta barganhando trocados em troca de favores. Pelos poemas pedia afetivas contribuições... por um retrato ou caricatura conseguia o jantar... por um conselho sobre os búzios e os destinos de alguém, garantia o transporte por um longo trajeto, com as coisas que encontrava e que lhe davam, trocava em sebos e brechós pelo que por hora queria. Nada acumulava, tinha o de agora, jamais o de depois, a cada instante sabia as suas possibilidades, sem se vender para nenhuma delas, seguindo seu prazer e sua ânsia. Não rendia-se nem mesmo às carências do corpo, pois acostumara-se a viver de acordo com as circunstâncias. Tinha um quê de monge nesse aspecto, conquanto sua roupa fosse predominantemente preta e rasgada... Sua higiene era naturalmente fluvial, pluvial e marinha... secava a vento ou ao sol, corpo nu em lugar distante... Maçãs que encontrava em jardins particulares escovavam-lhe os dentes... ou os anti-sépticos de restaurantes... as pastas de dentes vinham de amigos... seus chuveiros eram de fraternos... muitas vezes uma rede escondida n´um buraco, pendurada em antenas de tv no alto de um prédio antigo, debaixo do céu estrelado, bastavam para descansar-lhe os ossos...quando o sol era alto, ajudava a vender picolés e garantia seu gelado... como um guia, camarada comun(itário) de tantos e quaisquer vizinhos... ninguém negava-se à uma mão de sua prosa, era tão costumeiro chamarem-no para um almoço agradável.
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Era ele quem fazia as festas da rua... onde as crianças riam e andavam de bicicleta, as senhoras dançavam as valsas de antigamente e os jovens encontravam-se encostados nas paredes corpo-a-corpo... Tantas coisas sabia fazer, aprendido com tantos outros que conhecia pelo caminho, que para tudo podiam chamá-lo para resolver... podia fazer suas próprias roupas com uma agulha cega e linhas escuras... tantas pulseirinhas, pingentes, trançados afins, tinha a habilidade total... seus dedos eram hábeis pois eram livres... inalienáveis, eram seus e somente seus... uns anos pegou carona em um barco até ilhas desconhecidas, outro tempo integrou-se à trupes andarilhas de circo e folia... em várias cidades teve passagem... e tantos conhecidos por aí deixados e encontrados... de fato era um moço alegre e amigável... impossível não gostar... impossível não sentir aquele desejo escondido, interior, uma ponta de desejo de ser tão livre quanto aquele pássaro de pernas longas... se tivessem coragem... se não fosse a rotineira covardia das garantias correntes do dia-a-dia... o dia de amanhã, as contas a pagar, o endereço e os impostos... coisas que só aquela gaivota urbana ignorava, boicotava com toda a troça e graça... brincando de utopia a cada dia que acordava... plantar flores em terrenos baldios, pintar murais com tintas vencidas, ornamentar as calçadas tão insípidas. Verdadeiras reespiritualizações de espaços descalços. Os seus pés eram capazes de amaciar as pedras e preencher os buracos. Em seus jardins consentidos e queridos, tirava também o que comer, garantia temperos para as donas-de-casa e os paladares satisfazia com sementes trazidas das viagens. Era um espírito impossível, um corpo imprevisível, uma alma inaprisionável... Era assim que era... é assim que é... e toda hora... é uma boa hora...
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(Beach House - Heart of Chamber - uma música...)

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