quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Sidarta

(da) Rua. Feridas nos olhos, uma pedra no estômago e... sem dono. Seus pés estão perfeitamente adaptados para percorrer quanto precisar, descalço, no cascalho ou no asfalto. Não é bonito de se ver, mas serve ao propósito de andar. O calor é enorme, mas ele é parte do calor, como se fosse um carvão - vegetal... É incrível - Seu olhar carrega uma consciência determinada de seu estado e circunstância, uma áurea de saber, de erudição. A expressão de seu rosto é tão enigmaticamente confiante que entala a dúvida na garganta - é quem e como é por querer? A vida errante, áspera e frugal foi uma escolha cônscia, um experimento, uma pesquisa ou uma adversidade? Um espanto, de qualquer modo. Não se vê pesar, miséria nem carência no olhar brilhante, incrustado no rosto batido, sujo e bruto. Como se o espírito em nada fosse afetado pela decadência da matéria. E soa tão viceralmente natural que, um dia, quando andava pela rua ladeada pelo fluxo constante de fumacentos automóveis, viu diante de si uma manga caída, vinda do outro lado do muro enorme, onde resplandecia uma mangueira, calmamente, sem pensar, automaticamente, pegou a fruta e rasgou-a com os dentes, comendo-a, de maneira simples, primitiva, verdadeira. Fiquei atônito com o ato, com a pureza e espontaneidade. Frequentemente o via deitado quando passava, pelas duas da tarde, no seu lugar... um trecho de calçada refrescantemente sombreada por árvore imensa, que ocupava metade do terreno em que estava. Sobe ele um papelão, próximo uma mochila com provavelmente era tudo que tinha, cabeça sempre cuidadosamente raspada. Certa vez almocei ali próximo e tendo sobrado muito, resolvi dar-lhe a comida. Aproximei-me do corpo deitado e de olhos fechados. Chamei-o e entreguei-lhe o pacote, o qual recebeu sem cerimônia, como se recebe a chuva ou a brisa. Em silêncio, começou a desembrulhar, enquanto eu já me afastava, cada vez mais tocado por aquele espírito singular. E o último incidente de sua existência que me marcou foi um dia, duas da tarde, quando eu estava sentado esperando o ônibus, no fim da rua comecei a vê-lo, caminhando na direção em que eu estava, como muitas vezes já o vi fazer. Mas sua expressão estava tão sorridente como jamais o vira. Costumeiramente tem no rosto uma forma serena, tranquila, mas sem exaltações como um sorriso. Desta vez não, estampava no rosto um largo sorriso. E o que mais me impressionou foi, no ato em que cruzou comigo e passou adiante, perceber o estado debilitado de seus dentes, um deles em falta, amarelados e sujos. Fiquei surpreso e desconcertado. Como se esse símbolo demonstrasse duas coisas, que a situação em que vive e para a qual parece tão preparado e resistente de fato supera suas forças ou capacidades, ou ele vai tão além no propósito de descobrir o nada, o desapego e a desapropriação da matéria que nem mesmo esse sinal valioso da aparência foi guardada... Não sei... realmente, não sei... Mas guardo comigo um desejo tímido e silencioso de um dia conhecer realmente quem é essa criatura que caminha tranquilamente pela cidade como se fosse uma trilha na mata, como se o barulho dos carros fosse um quebrar de ondas da praia, como se o sol fosse agradável e ameno. Conhecer sua história e seu caminho...

2 comentários:

Samis disse...

subitamente vemos
alguém nos mostra um caminho
um texto
ou simplesmente uma nova forma

é assim que vejo os olhares que vejo
ou os sorriso que passo
mas que ficam em mim

Nikku disse...

Rastros de manga e dentes.