Dizem que se observares atentamente a chama, em
especial de um fogo aceso em ritual, emanado por energias intensas de magia, tu
poderás vislumbrar ao menos as sombras das salamandras, seres místicos que
habitam a zona mais vermelha e calorosa do fogo. Dizem que se pores tua mão nas
pontas azuis da chama, poderás sentir o beijo da salamandra, que não queima a
pele, mas incendeia o espírito.
Dizem que certas mulheres, que naturalmente ou por
meio de encantos avermelham seus cabelos, atraem estes seres para dentro de
seus corposespíritos, transformando-se em fogueiras-humanas que incendeiam tudo
que as toca. Eu conheci uma dessas salamandras com linhas e gestos e vozes e
olhares humanos.
Ela tinha nos pés e nos quadris um rebolado misterioso, oriundo de suas raízes fumegantes nos desertos do Egito. Em seu ventre e em sua vagina existia como um caldeirão de carne e brasas incandescentes e líquidos borbulhantes. Sua pele alva escondia a sua lava sanguínea – mas bastava tocá-la mais intensamente para despertar-lhe a vermelhidão mais sincera da pele. Mas seus cabelos não escondiam seu incêndio ondulante, que balançava lançando fagulhas pelo vento, eventualmente tocando outros cabelos ou peles e causando inevitáveis devastações de ardências e sofreguidões.
Chegou às terras da ilha-continente da Tartaruga por meio dos navegantes mouros, que após conquistarem a ibéria lançaram-se ao mar em busca de novos povos com quem intercambiar as artes negras e obscuras do autoconhecimento e da autoexplosão. E desta origem guardou seu nome castelhano, La Peliroja de Fuego. Eu a conheci, ou melhor, ela me conheceu durante uma peregrinação a ilhas recém-nascidas de erupções vulcânicas. Os oceanos, poucos sabem, guardam imensas bocas de fogo que cospem novas filhas constantemente. Há poucos milhares de anos nasceu a ilha Cacira, palavra que significa maribondo na língua tupi, assim nomeada pelas tribos oceânicas que ali passaram e partiram em razão da escarpada montanha que se projeta no centro da ilha como um ferrão e da praia de peculiar formato arredondado, lembrando a sedutora bunda do inseto temido.
Na ilha habitava também uma variedade muito distinta de maribondo, que a semelhança das abelhas, produzia um néctar adocicado e avermelhado denomiado pelos índios de yapira, cujas propriedades gustativas e estimulantes dos sentidos e dos desejos foi muito apreciada pelos índios que por ali passaram. Antigas histórias dos povos nômades dos oceanos contam que na ilha Cacira se realizavam rituais profanos, em oferta aos espíritos vermelhos da Terra, temidos por suas perigosas manifestações vulcânicas. Conta-se de índios que tiveram seus corpos cozinhados por imprudentemente entrarem nas águas marinhas demasiado próximos dessas salamandras do mar.
Denominados Carirardos, estes rituais pediam clemência à impiedosa volúpia da grande embarcação Terra. E não raro as sacerdotisas e sacerdotes que os realizavam sucumbiam à morte pela exaustão sexual, tamanha fervorosidade eram dedicados às práticas orgíacas.
Cheguei naquela ilha na minha companheira de destemores Calé, termo árabe que significa cigana, minha estimada embarcação. Feita da madeira negra que nasce apenas nas florestas vulcânicas da patagônia, ela é pequena, veloz e amiga das tempestades. Vi minha vida ser salva por este ser-embarcação mais vezes do que posso me lembrar. Levei-a a praia e pequena como ela é, consegui trazê-la por meio de um sistema de troncos e cordas para de baixo dos coqueiros próximos. E então a Calé se transformou num acampamento árabe típico, com suas imensas velas se transformando em tendas e os tapetes que acolchoam seu interior se convertendo em camas macias sob a areia. Acesa a fogueira e posto para queimar incensos para agradecer a chegada àquela ilha, pus-me a explorar as redondezas.
Ouvi falar pela primeira vez sobre a Cacira num porto clandestino, só conhecido pelos nômades do mar, numa bacia escondida duma ilha do índico – mares perigosos habitados pelos temidos piratas somalis. Contaram-me sobre o pico da ferroada, no alto do qual existem certas rochas que parecem cristais de fogo, cujo brilho, quando a luz do sol ultrapassa seu interior, se assemelha à própria estrela-mãe. E advertiram-me: chegar ao pico é uma tarefa tão árdua e confusa que se converteu em uma enigmática e desejada peregrinação para os monges e druidas navegantes que ainda vagam pela Terra.
Eu, como aprendiz de bruxa-cigana-zen-lunática (sincretismo muito particular das minhas vidas passadas), zarpei imediatamente para a localidade obcecada. Em poucas horas de exploração das praias da ilha, percebi que não estava sozinho, ainda que a ilha não fosse permanentemente habitada por nenhuma tribo, pois se acordou há muito tempo que ela deveria ser guardada como lugar sagrado. Descobri sinais de fogueiras, de comida e até mesmo de fluídos sexuais nas areias sob os coqueiros. Mas pelas marcas parecia ser apenas uma pessoa. Quem seria? Como teria chegado ali?
Eu podia sentir uma energia poderosa naquela presença misteriosa. E isto se mostrou para mim como um sinal intenso do destino. Em dois dias circundei a ilha inteira e retornei à minha tenda-navio. Realizado este perímetro exploratório, podia iniciar a mais delicada entrada ao interior denso e exuberante da ilha.