domingo, 20 de setembro de 2015

Contos Caracoles



I
O estalo, o desenraizamento, o retiro, o pouso

Quarta-feira, 54, trepidando pela rua da lagoa, rua do sofá amarelo, rua da pousada dos pássaros. Estala, subitamente, em mim, uma iluminação. E novamente minha vida toma novo rumo. Naquela noite inusitada repentinamente percebi que precisava sair de onde estava e me estabelecer n´outra parte. Mudar. Mudança, palavra da Vida. Mudança, tatuagem do peito. Mudança, coreografia do agora.

Naquela noite vi, como naquelas visões de quem tem a Visão, premonição, adivinhação, ou simples e pura, mas da pura mesmo, imaginação, uma outra vida, em outro lugar – e o lugar eu já sabia qual era. Mas não podia imaginar que seria tão bom quanto está sendo – mas isso é outra história.

Foram duas semanas resolvendo perrengues antes de jogar a bomba – vou embora! Uma das melhores bombas!

Foi uma semana louca encaixotando tudo, os livros, as memórias, as frustrações, os sonhos, as vitórias e os fracassos.

Joguei tudo no ninho que estava recém-nascendo e, como gaivota criada, parti para longe (aff!), para milhares de quilômetros e milhares de experiências, vivências e paixões que iriam me transformar ainda mais para o que eu estava para viver aqui. Eu tento não ser nômade, mas o nomadismo não sai de mim.

E quase um mês depois volto, encontro, como se pela primeira vez, essas paredes, esse chão de pedras, essa varanda ainda cinza, esse espaço tanto que anseia por se preencher de mim.


II
A desforra dos Livros

Confesso, sou um acumulador de livros. Aquele tipo de pessoa que compra livros quando está triste, para ficar feliz, compra livros quando está feliz, pra comemorar, compra livros quando está tudo normal, pra dar uma animada, sair da mesmice, enfim, que tem uma relação até certo ponto doentia e compulsiva com livros, mas não tanto quanto gostaria [haha]. Aquele tipo de pessoa que conta os livros na estante e se compraz de um número possivelmente “digno” e que demonstra alguma coisa sobre o meu “caráter”. Vaidade livresca, egocentrismo de papel, provavelmente. Estou trabalhando nisso.

Ano passado eu conheci um cara que me inspirou profundamente. Ele é livreiro na cidade dos bons ares. E me contou uma obscenidade que me deixou inquieto. Ele lia um livro por semana. Mentira, eu pensei. Humanamente impossível. E não é que neste ano absurdo isso me sucedeu?! Pasme.
 

Acontece que para mim mudança quer dizer, mais do que tudo, caixas e mais caixas de livros, para desfazer a(s) estante(s) e para refazer a(s) estante(s). Cada vez que fiz isso na vida foram histórias, companhias, alegrias e muito trabalho também, porque, afinal, haja livro – parece até que procriam. E, melhor do que tudo, a atitude madura de quem reconhece quais livros já não me representam e que, consequentemente, podem e devem buscar seus novos caminhos e leitores. Uma caixa inteira de livros inqueridos e dois dias mágicos rodando sebos em busca dos novos tesouros perdidos. Foram cerca de vinte e poucos livros que se transmutaram em oito deusas de papel. Eu as amo, todas. E me fazem muito feliz.

III
Primeiras

Nenhuma casa pode ser chamada de casa sem você haver transado ela pela primeira vez. Porque é a primeira foda que dá o tom (ou não) da acústica local, vocal e visceral. Tudo ainda encaixotado, sem lençóis para cobrir a cama, no chão da sala mesmo, sobre almofadas e colchas presenteadas, ao ritmo das imprevisibilidades dos corpos, malditos, queridos.

Nenhuma casa pode ser chamada de casa sem você haver comido ela pela primeira vez. Feito a primeira feira de frutas e legumes, feito as primeiras feitiçarias gustativas. A primeira lasanha de berinjela cujo encantamento a impedia de terminar e cujo recipiente-assadeira era tão lindo que enfeitava a geladeira.

Nenhuma casa pode ser chamada de casa sem você haver plantado ela pela primeira vez. Organizado enfim o verde no olhar, nos dedos, na varanda. Não basta apenas molhar a terra, é preciso situá-la no espaço externo e interno, colocá-la no plano imaterial do sentimento e transformá-la em sua própria existência.

Nenhuma casa pode ser chamada de casa sem você haver dormido ela pela primeira vez. Deitando seus olhos nos sonhos e no sonho que se realiza(m), no novo quarto que agora aconchega seu ser, sua forma de ver e viver o mundo e sua própria vida.


IV
Am´Orgasmo

Essa Casa já é palco dos melhores dias da minha vida. Nela já habitam as maiores belezas e os encontros mais bonitos. Nela os sentimentos e os sentidos são apenas uma só palavra e vivência: am´orgasmo.

V
Aberto Debute e Celebração

A magia é a realização da vontade – e esta casa também. Sendo assim, tudo aqui está cercado de magia. A magia está cercada de mim, ou o inverso, ou tudo e mais. A casa inteira é um templo, um altar, um santuário. A casa é protegida por símbolos e quereres invencíveis e se transforma e cresce e brilha como flores espontâneas no jardim.

Para marcar e impulsionar tamanha potência e potencialidade, fez-se necessário um ritual igualmente potente e potencializante. Um ritual para agradecer à Deusa, à Vida, ao Movimento, tudo que é, foi e será. Um momento para agradecer a todas que estão comigo por todo amor que temos, me têm e lhes tenho. Uma dia e noite para celebrar a existência que escolhemos existir. Um instante, afinal, para deixar claro que na vida existiu um antes e um depois desta casa.


A música do dia - Mutilation is the most sincere form of flattery - Marilyn Manson

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