quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Como não?

Minha mãe me pergunta Por que sofres? E eu sinto Como não sofrer? Se tudo a nossa volta é dor e violência, tudo que nos cerca foi feito, pensado, planejado e imposto para garantir o Poder de algumas pessoas sobre outras, ensinar a essas a reproduzir suas regras e seus gostos, multiplicar em todas as dimensões da vida suas artimanhas e ganâncias, destruindo toda possibilidade de resistência, arrasando tudo por onde passa, todas as relações marcadas por relações de Poder, de uma construção ideológica de superioridade de um certo masculino sobre certo feminino, de uma certa cor de pele sobre as demais, de um modo de falar sobre os outros, um jeito de se vestir em detrimento de tantos, o lugar em que se deve morar em consequência daquele em que só se deve dormir para poder então servir e usar, a transformação da Vida em Coisa, em mercadoria, posse e instrumento de força, de controle, de compensação das baixezas e grotescos dos que se põe acima, sobre pedestais de ossos e destroços, e cercado por tudo, percebendo-me parte, amaldiçoada a reproduzir tantos males, tomando consciência das dores por mim causadas, nos tantos processos de destruição de si pelo qual passamos, com os quais convivemos, toda a hostilidade causada, as resistências e iras, de que lado estamos? quantos lados existem? Como fazer diferente, se nunca conhecemos algo diferente? Se tudo está de alguma forma contaminado pelos visgos asquerosos do Poder? Como se desfazer inteiramente de tudo isso, estabelecendo outros possíveis? Mas sempre perseguidas, ora pelos fantasmas do Poder que nos tomam em novos atos insensatos, desapercebidos, traiçoeiros, ora pelo Poder em si que não suporta nada que lhe desafie, nada que se queira livre dele, nada que viva sem ele, esse câncer, que se multiplica rápido, por cada subterrâneo, que eclode às vezes disfarçado, às vezes explícito, violentando tudo nas caras e nas carnes, desferindo golpes em cada molécula de nossa dignidade, nossos sonhos frágeis, nosso ar respirável, nossas estruturas físicas e psicológicas, envenenando tudo, milimetricamente, como viver assim? Para onde ir? Como fazer diferente? Como não repetir os erros? Se eles se transformam, revelando-se novos, tantos novos erros? Como confiar em si? Que capacidade temos para lidar com tudo? Cada história, cada luto, todo trauma e sentimento duro, como viver assim? Se a cada hora levamos novos murros, violentadas e despejadas nas valas coletivas, se a cada levante nos deparamos com chumbo, choques e choros, se diante de tanta Dor só encontramos Morte, como viver assim? Que fazer de si? Que relações construir? Como nos reunir e com quem? Podemos começar tudo, desta vez sem Poder? Podemos reconstruir o mundo? Tantos povos já viveram bem, sem se explorar, não podemos neles nos inspirar? Nos identificar? Com eles aprender, nos colocar lado a lado? Esvaziar-nos de toda educação vilã, essas programações cruéis, reiniciar do zero, nos fazendo pó, respirando outro ar, sem nenhum Poder, só nos realizar, juntas e por amor, criando e transformando, fazendo algo maior, indo um tanto além, abandonando, então, esse passado horrendo, revelando presentes finalmente livres... do poder, das opressões tantas, das vilanias, baixezas e covardias...

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