terça-feira, 20 de outubro de 2015

Malefício da Dúvida


- É uma coisa louca o que acontece com gente como a gente. Tipo, nós somos pessoas muito carinhosas, quase sempre, sempre que dá, né? E aí como a outra pessoa pode saber se nós estamos afim dela ou se apenas estamos sendo carinhosas espontaneamente, sem querer nada além de sermos carinhosas como nós somos?!
- Porra, já aconteceu comigo. Muito tempo depois uma grande amiga me confessou que no começo ela super achava que eu tava afim dela, só porque eu era super afetuosa com ela, abraçava, fazia carinho na cabeça, brincava de chegar próximo por trás e fechar os olhos dela com as mãos para que ela adivinhasse quem era... Mas na real isso nunca me passou pela cabeça. Nunca senti atração física por ela. Se ela não tivesse dito, eu nem teria jamais imaginado que ela pensou isso de mim.
- Né?! Mas o foda é quando isso se volta contra nós! Tipo, se eu sou assim com as pessoas, suponho sempre também que não é porque a pessoa está sendo super carinhosa comigo que isso, necessariamente, já é sinal de que ela está afim! Tipo, o que nos diz se a pessoa está afim, se ela não fizer algo mais óbvio como dizer na cara "ei, tô afim de você" - coisa que não é muito normal, né? diga-se de passagem - ou simplesmente te beijar do nada - já aconteceu comigo - Sei lá... Talvez tenha gente que simplesmente não consegue explicitar em determinadas situações e com determinadas pessoas que elas estão atraídas pela gente, ainda que estejam... E fica nessa dúvida sem fim - Será? Vou? Faço alguma coisa? Ou eu tô viajando, não tá rolando nada, e se eu fizer algo vou  estragar tudo?
- Que foda é isso, né? Eu tenho um trauma. Seria ótimo se pudéssemos dizer simplesmente, quase "inocentemente", sem pretensão ou preocupação de reciprocidade nenhuma, poder dizer com naturalidade "olha, eu gosto de ti, sinto uma vontade imensa de te beijar, adoraria tirar toda tua roupa e acariciar e mordiscar todo o teu corpo... MAS, de boas se você não sentir isso, eu até tenho a sensação que tu não sentes, mas, na dúvida, achei por bem te dizer, né? Vai que... 
- Porra, seria lindo. Tudo seria mais simples. Seria como viver o tinder olho-no-olho, sem precisar da bosta de um aplicativo pra gente poder dizer na cara das pessoas que a gente está afim delas, que achamos elas lindas, atraentes, sensuais, encantadoras, gostamos do jeito delas rirem...
- E sem que com isso, as pessoas passem a agir estranhas com a gente, nos evitando, pra que a gente não "tente nada"...
- "Amooor, eu estou afim de você, mas não sou um bicho, não vou te atacar. Se tu não estiver afim, beleeeza! Estamos de boa, podemos conversar, podemos ser amigos, tranquis"!
- Né? Tem gente que o simples fato de saberem que estamos afim delas e elas não estarem também causa um incômodo, elas acham ruim, querem distância, aff!
- Traumas... Porra. Estava super apx pela mina, mas eu tinha quase cem por cento de certeza que não rolava nada além de amizade com a gente. Mas burramente eu tava com uma necessidade idiota de botar pra fora, sabe, dizer o que eu estava sentindo, porque aquilo tava me angustiando, me asfixiando de algum modo, e eu achava que se eu dissesse, eu me libertava, sabe?
- E aí?
- Tipo, eu disse exatamente assim, no ouvido dela "sou apaixonado por você" e ri. Ela fez cara de surpresa, de "quê?" e começamos a rir. E aí eu expliquei a coisa toda, de que tinha quase certeza que não rolava nada entre a gente, o que ela confirmou, que só éramos amigos, que isso era ótimo, que eu só precisava compartilhar isso com ela e tal pra me sentir melhor. O quê? Altas tretas. Ficou seis meses sem falar comigo. E hoje em dia a gente praticamente não se fala...
- Porra, que merda. 
- Pois é, desde então cheguei a conclusão de que se você tá sentindo que não tá rolando, não vale a pena dizer só por dizer... Por que vai que, né, explode uma bomba na tua mão...
- Own... que triste...
- Pois é... queria eu fosse mais fácil... 
- Eu queria que pudéssemos dar o benefício da dúvida... Pensar, "olha, não tenho certeza se ela está afim, mas, vai que está e eu não me liguei? Melhor perguntar"... Mas na real o mais provável é o malefício da dúvida "ó, se tu ainda não tem certeza que ela tá afim, se ainda tá em dúvida, é porque claramente ela não está afim e tu só queria que ela estivesse e fica na 'dúvida' por pura esperança idiota"...
- Own... (Ela segura na mão dela, como um gesto de apoio, talvez, ou de compreensão, de proximidade mesmo, ou...?)
- E, por falar nisso...
(Silêncio)
(Se olham nos olhos)
(Suspense)
(O ar parado congela. Ela pensa - o que será que ela quer dizer? A outra pensa - Será que falo mesmo?)
- Por falar nisso... eu sinto uma vontade louca de te beijar... Uma atração absurda por você... fico te olhando feito boba, contemplando como tua boca é bonita, tua orelha, teus cabelos, tuas mãos, teus pés...
(Silêncio. Piscar de olhos. Olhos nos olhos. Lábio inferior tremendo. Mãos ainda dadas. Mas imóveis...)
(Então, lentamente, as mãos dela começam a acariciar as da confessa. E aos poucos os dedos se apertam, segurando forte. E aos poucos as mãos dela a trazem para mais perto. Até elas ficarem cara a cara, a centímetros de distância. 
- Por que você não disse isso logo?
(E a beijou como uma ventania que leva embora as pétalas das flores, que derruba árvores, que destrói em seu alvoroço violento e devastador.)
(E foi um beijo longo, mordido, doído até, porque atrasado, que deveria ou poderia ter sido há tanto tempo já, mas foi só agora... Como que um beijo urgente para tirar este atraso, como se ele tivesse que compensar todos esse tempo não beijado, esse tempo não tocado, esse tempo não expresso desejo. Um beijo de corpo, de braços, mãos, pernas enroscadas, de seios apertados, de pernas agarradas, de tesão liberto, de querer solto, de finalmente...)  

Camomila - Cícero - é...

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