sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Exemplos?


Eram um casal. Eram um casal? Realmente é algo que me intriga desde o princípio. O que torna duas pessoas um casal? A exposição pública da condição conjugal? A formalidade de mãos dadas eventualmente? Uma fotografia posta na mesa do trabalho, cultivando elogios de romantismo? Estar sentados n´uma mesa, diante um do outro, aguardando o pedido enquanto o silêncio os une sombriamente? O hábito de mandar fabulosos buquês de flores em toda data comemorativa, colorindo, assim, o acinzentado do dia-a-dia? A conversa banal na hora do almoço, preenchida de anedotas rotineiras e vazias? Os passeios formais à compra de qualquer buginganga que numerosamente simplifique a complicação das nossas cozinhas(vidas)? A ida ao supermercado, atulhando a geladeira de doces industriais que dêem algum sabor à boca amarga? Os jantares entre amigos, em que cada um senta-se em lados opostos despreocupadamente, como se isso fosse o mais natural? A busca por mais qualificação, a fim de que trabalho e mais trabalho dêem algo com que se ocuparem o maior tempo possível? O ritual condicionado de entregar-se à ilusão do altar televisivo, momento sagrado de reunião familiar? As brigas constantes por razões incompreensíveis e totalmente insolucionáveis? A melancolia dos espaços reservados à solidão de cada um? A desesperança impregnada no pensamento, incapaz de sentir a brisa do sonho chegar-lhe à alma? Os monólogos cruzados convencionalmente nomeados de conversação? Os presentes de aniversário repetitivos, antiguados objetos que guardam a certeza do contentamento superficial? O ato nobre de dividirem a mesma cama e, eventualmente (ou não), o mesmo calor, de tempos em tempos, para não fugir à memória a afamada sensação? Ou o sacrifício dedicado à um deus que pede-lhes que esperem para conhecerem-se intimamente até que a Igreja o conceda cerimonialmente? A nostalgia dos primeiros momentos, quando cada um tinha bem clara a motivação, a emoção, o ímpeto do sentimento que os unira? A necessidade de ser bem visto socialmente através da 'nobre' instituição do casamento?... A abnegação... que guarda para amanhã... um amanhã qualquer, desconhecido, impalpável, qualquer coisa que nomeiam felicidade...

Trabalhando 8h por dia (oficialmente), não hesita em prologar um pouco o horário do expediente, marcar reuniões na hora do almoço e dar uma passadinha para ver como andam as coisas mesmo nos fins de semana, feriados e férias. Ele é deveras um funcionário exemplar. Há décadas esmera-se em tal função cuja única realização é manter seu padrão de vida. Ela afirma que a família é o seu maior tesouro. No entanto, quando não estava no trabalho, estava estudando algo a ele relacionado, ou então descansando da exaustão por ele causada, recuperando-se de enxaqueca fruto do estresse... Ou assistindo ao ritual televisivo... aderindo ao padrão de entretenimento... A atenção aos filhos é acadêmica, dedicada ao estudo, ajudar-lhes nas tarefas, auxiliar-los nos trabalhos, garantir-lhes o êxito, para saber em si o mérito de qualquer conquista filial. Ah, e se pouco podemos dizer sobre a relação do casal, é porque pouco há para se dizer... Quando ao lazer pessoal, um e outro distraem-se como podem, à sua maneira, consigo. Seja o hobby cultivado desde a juventude, sejam os livros sobre psicanálise que sabe-se lá que efeito causam ou a obra completa de João Ubaldo Ribeiro, ou ainda os intermináveis cursos de línguas que preenchem perfeitamente o horário noturno que, infelizmente, não pode ser empregado na empresa.

É curioso observar os seres acorrentados uns aos outros, questionando-se que motivo poderá ser suficientemente forte para desperdiçar toda a existência presente (cada dia que passa, esvaindo-se na fumaça do passado) em rotinas monótonas, aborrecidas e cruciantes. É, no mínimo interessante, investigar quais os fundamentos da covardia que aprisiona incontáveis almas em gaiolas autofabricadas. E não se pode inocentar nessa análise divertida aqueles que se aprisionam do lado de fora das gaiolas, engolindo a chave que abre as portas de seus inalcansáveis desejos por prazer e paixão... Nunca saciados, vagam por aí, sedendos, línguas caíndo das bocas, em busca de algo que possa-lhes diminuir o fogo que os consome... E a vida, então, torna-se um deserto, cheio de oásis imaginários, os quais perseguem, indo de um para o outro interminavelmente, a cada noite, a cada saída, a cada encontro...



"A vida é muito curta para ser pequena."
Benjamin Disraeli

3 comentários:

Samis disse...

o melhor em ser irônico é quando temos argumentos suficientes para isso

lindo lindo

Lidiany Schuede disse...

"É, no mínimo interessante, investigar quais os fundamentos da covardia que aprisiona incontáveis almas em gaiolas autofabricadas."

Infelizmente há gente que faz dos dias, dias jogados ao vento.
Tem gente que não ama de verdade e finge amar. E isso me entristece.

Samis disse...

24 de setembro
e há a necessidade de uma nova postagem, ok?

dê-nos palavras