terça-feira, 11 de março de 2014

Há mor

O amor fez meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor fez minha idade, minha genealogia, meu endereço. O amor escreveu meus cartões de visita. O amor veio e assinou em todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
 

O amor teceu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor desnudou metros e metros de pele em brasa. O amor ampliou a medida de meus tempos, a distância de meus passos, o tamanho de meus sonhos. O amor mudou minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor receita meus remédios, minhas curas, minhas dietas. Receitou mais euforias, maresias e partilha de energias. Receitou também muita loucura e manter-me molhado, para não desidratar.

O amor pôs na estante todos os meus livros de poesia. Narrou em meus livros de prosa as citações em verso. Inventou no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: anéis, instrumentos musicais, temperos, marca páginas, estiletes. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios e saltitantes, o rock pulado no banheiro, o edredom que cobre minhas pernas que mais parecem uma caldeira.

O amor se fez em frutas postas sobre a mesa. Inundou a água dos copos e das gargantas. Melou o pão de propósito de doce de leite. Bebeu as lágrimas dos olhos de tanto rir.

O amor refez minha infância, de dedos ágeis para brincar, cabelo curto de riso, pés descalços para correr. O amor desfez o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Plantou as conversas, junto ao balanço do parque, com os/as amigo/as que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre o amor, sobre o sexo dos anjos.

O amor rebelou-se contra o Estado e a cidade. Fertilizou a água viva dos mangues, contradisse a maré. Lambeu os mangues crespos e de folhas puras, mordiscou o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pela jangada branca, pelas velas e remos. Bebeu o cheiro de caldo de cana e o cheiro de maresia. Engoliu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor revelou até os dias ainda não anunciados nas estrelas. Perdurou os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão desenhavam. Desgrenhou o futuro grande poeta, o futuro grande vadio. Viveu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor transou minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Gozou meu silêncio, minha dor no peito, meu medo da morte.


Versão do poema Os Três Mal Amados, de João Cabral de Melo Neto.

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