domingo, 26 de outubro de 2014

Buenos Caminos

O que é uma aventura? O que significa ter coragem? Não termos medo diante de algo novo, um caminho, uma pessoa, algo desconhecido?

I

Dormir num sofá alheio, de pessoas até então desconhecidas, muito bem acolhido por várias camadas de cobertores, muito bem alimentado por culinária caseira local e hospitaleira, entre dois gatos e dois cachorros, com bastante frio. O mundo, em sua arte de encontros, a humanidade, em sua mania de proezas, possibilita contatos impossíveis. Da moça de cabelos curtinhos que passa todo o dia produzindo desenhos animados em sua casa e que percorreu mochilando boa parte da América do Sul e do moço livreiro e devorador de livros e super falante e conhecedor de tantos assuntos conversados até breve madrugada, sempre guardarei amizade imensa.

II

"De onde es? Cual es su nombre?" As perguntas mais comuns e mais fáceis de se fazer em um albergue, praticamente uma regra geral de convivência, ou etiqueta. Um ambiente em que se você não falar com estranhos, você é estranho. Um ambiente em que todos se sentam na mesma mesa e conversam, brasileiros, argentinos, colombianos, chilenos, franceses, alemães, americanos, vanezuelanos. No idioma local, no idioma materno, no idioma que alguém esteja querendo aprender, na mistura de todos. Um francês simpático que ensaia algumas conversas curtas, um venezuelano sério, mas conversador, que fala russo, hebraico e outras três línguas e conta históricas sobre Angola, uma espanhola de cabelos cacheados, riso fácil, arredondado e um jeito cativante, um equatoriano que não fala coisa com coisa, um colombiano que deu em cima de mim, dois brasileiros barulhentos e estúpidos, outro cheio de histórias exóticas, muitos argentinos comunicadores populares, politizados, transformadores... Entre tantos outros perfis...

III

Uma tarefa talvez atrasada no seu tempo pessoal, talvez aleatória na sua história pessoal, talvez sem lógica na sua utopia pessoal. Mas ainda assim um motivo. Uma boa justificativa para conhecer outros lados e experiências ou simplesmente um vento que movimenta. Do cartaz entre mil cartazes naquela faculdade social e impactante à participação num programa de rádio, à viagem surgida de um dia pro outro para uma cidade mais acolhedora, muita gente, muitas conversas, vários trechos não muito compreendidos dum idioma ainda sendo desbravado...

IV

Uma língua, uma cultura, uma nação, infinitos mundos. Nas muitas horas de trem para a cidade dos olhos grandes e novíssimo sorriso redondo, nas horas de frio e vontade de ficar quietinho e escondido na toca, nas praças, nas esperas, nos intervalos quaisquer, dois livros vencidos no idioma estrangeiro! Um bloqueio em processo de superação, desobistruindo os caminhos interiores rumo a outras formas de expressar o que se quer, o que se tem, o que se vai... Interiorizando ou fazendo intuição, mesmo sem saber, a língua dos conquistadores com a qual agora fortalecemos uma identidade latino-americana.

V

Uma inspiração antiga, que remonta aos primeiros contatos com a língua espanhola em um curso de espanhol que partia da cultura latino-americana para aprender a expressar-se. Uma revista independente, de cultura, social, transformadora, que atua com pessoas em situação de rua. Por meio da venda da revista, eles podem ter uma renda mais digna. E ter acesso a outras oportunidades, arte, cidadania, expressão. Lá deixei pequenos gestos. Um aprendizado sobre criatividade em situações difíceis, persistência e paciência popular, educadora. Pequenas trocas sobre o que nos é imprescindível. De churros à realidade das comunicações na Argentina com a revista Hecho en BsAs.

VI

"Andar, andar, que um poeta não necessita de casa" (Cecília Meireles). O chão sob os meus pés se mexe, sigo sem pensar para onde estou indo. Andar por andar, somente. Andar para chegar mais longe. Longe é um lugar aqui dentro da gente. Andar é chegar mais dentro. Há tempos não lembrava o que significava andar tanto, preferir andar mais do que tudo, mais do que ônibus, mais do que metrô, mais do que motor. E ter um clima para ajudar (porque andar no frio, até certo ponto, é melhor do que andar no calor). Nas ruas portenhas e rosarianas passei dias tardes e noites de ruas e becos, naquela velocidade mínima que os pés proporcionam. É que andar a pé nos faz ver mais sentir mais ouvir mais. É lento o suficiente para o mundo se mostrar, para perceber os detalhes, para olhar para as pessoas sem correr risco de acidente (mas olhe pro chão, senão tropeça). É lento o suficiente para divagar, refletir, deixar o pensamentosentimento fluir, esvair, esvaziar e desabrochar uma vez mais. É lento o suficiente para dançar, sapatear, sambar, sentar num banco de praça e ficar, beber água, respirar fundo, sem grande esforço, devagar e sempre.

VII

E ver, não só olhar. Fotografar para mim é quase um gesto de viagem. Fotografar é um gesto inteiro, que demanda dedicação e integração. Observar atentamente tudo, todos, gestos, olhares, texturas, detalhes. Captar os momentos decisivos, em que acontece a mágica da vida - segundos sublimes que piscam constantemente diante dos nossos olhos. Os encontros, as percepções, os brilhos, as surpresas que vivem e se realizam em nós e diante de nós e conosco. Fotografar é também um gesto delicado - que pressupõe respeito e encontro, cuidado para não agredir. Às vezes gostaríamos de ser invisíveis ou nos sentimos invisíveis, como se pudéssemos flagrar o mundo sem que o mundo se dê conta. Às vezes as imagens só podem ser registradas em nossas retinas - e as melhores fotos serão unicamente nossas.

VIII

Aprendi que a saudade é um poço sem fundo. Nunca chega ao fim. Não vale a pena esperar o barulho da moeda, nem tampouco que se realize o desejo pedido (perdido). O melhor que a gente faz é viver o aqui e agora, celebrar tudo que se viveu, transformar o presente no sublime e ter certo que o amanhã será mais e mais - infinito somos.

IX


Viver é estabelecer lógicas, compreensões, fazer do absurdo normal, do normal, absurdo. Viajar por um tempo prolongado é fazer rotina o inusual - conviver com gente de todo o mundo em um albergue não tão aquecido quando gostaria - ir atrás de comidas diferentes e pagáveis em uma cidade semidesconhecida/conhecida. Acordar para tomar café, voltar a dormir, passar dias e noites de andanças, descobridanças e crianças. Conversar em várias línguas e ficar confuso. Rir, ir, estar só... e estar junto...

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