Elas eram um grupo de mulheres que há séculos
vagavam pelas montanhas, desertos, bosques e campos férteis do Médio e Extremo
Oriente, chegando aos limites da Turquia, às margens do Egito, e aos sagrados rios
da Índia. Observe que esse triângulo não é por acaso, mas confere um grande
poder a essa região e, consequentemente, elas não se sentiam muito tentadas a
sair dele, apesar de em ocasiões especiais peregrinarem para as distâncias da Sibéria,
Mongólia e Somália, lugares também especiais, de incomuns concentrações
energéticas e humanas.
Perseguidas, clandestinas na maioria das sociedades
de sua época, talvez por algumas razões dignas, outras nem tanto, elas eram
conhecidas como rebeladoras de escravas, agitadoras de forças desconhecidas,
indomadoras de selvagerias. Mas elas preferiam se identificar por Leelas, que
na língua antiga dos hindus expressa aquelas que brincam como deusas as
brincadeiras das deusas.
Não se reproduziam. Não. Em sua vida andarilha, suas práticas rituais, suas perspectivas existenciais não cabia a reprodução tradicional. Mas ainda assim havia crianças, adolescentes e jovens entre elas. Acontece que eventualmente acampadas próximas a um aglomerado de gentes em alguma terra perdida, elas convidavam, convocavam ou mesmo invocavam pessoas mais jovens, digamos, a se juntarem a elas. Algumas não entendiam bem o que estava acontecendo, mas outras pode-se até dizer que estavam sendo resgatadas por elas – libertadas e fugidas de seus mundos de impedimentos, morais religiosas, patriarcais e violências consequentes.
E assim as recém-chegadas eram iniciadas nos rituais das Leelas. Pode-se dizer que eram uma mistura de tantras, ciganidades, misticismos do deserto e de filosofias árabes muito antigas, inspirações chinesas e mitos da longínqua ilha da Tartaruga, que alguns acreditam existir para além dos mares da África, a oeste. Mas as más-línguas dizem apenas que as Leelas, ou Poeiras Malditas, como foram apelidadas em algumas terras na região do Afeganistão, praticavam cultos orgíacos, deploráveis manifestações de prazeres mundanos, de adoração às forças impetuosas e luxuriantes da natureza e das trevas. Elas produziam o que costumavam chamar de POEmas, em referência ao termo poeiras malditas, que no final das contas, elas gostaram e aceitaram como presente dos povos tementes.
Os POEmas eram feitiços cujos princípios mágicos eram justamente as poeiras do deserto, as tempestades de areia, esses insignificantes grãos de pedra que em quantidades inimagináveis podiam destruir e soterrar tudo que vissem pela frente. Elas usavam substâncias especiais para derreter e colorir a areia, tornando-a um material translúcido e rígido que elas chamaram de Verdro, pois se podia ver através deles. E do verdro produziam esculturas, joias, utensílios mágicos, como recipientes para poções e jarros de bebidas alucinógenas a base de certos tipos raros lagartos secos. Cada POEma trazia a fórmula para um tipo, cor e poder especial de verdro. A arte de produzi-los era muito valorizada entre elas. Eram textos mágicos muito belos, sensuais, intensos, e devastadores. Se mal produzido e conduzido, poderia arruinar todo um ritual e muito trabalho. Por isso as Leelas dedicavam-se com muito afinco a sua arte.
Em seus rituais, chamados kama leelas, que significa a busca pelo prazer divino, todas elas, nuas e ornamentadas por um líquido mágica negro e brilhante, que refletia estranhas cores diante da luz de um fogo poético e intenso de fogueira ritualística, dançavam em transe ao redor da chama, mortalmente próximas das fagulhas que podiam, a qualquer momento, incendiá-las, tão inflamáveis eram suas vestes líquidas. Mas habilidosas em seus movimentos, isso nunca aconteceu ou aconteceria, pois a arte de controlar o fogo, bebê-lo e fazê-lo voar em formas de pássaros também era um de seus feitios. E essas danças, a medida que circundavam o fogo, de certa forma sim, incendiavam, porque dos corpos saiam fagulhas, dos encontros e toques dos corpos chispavam-se os ares de ardores, de êxtases, de desejos liberados no ápice da plenitude.
É preciso dizer que o líquido que as ornava era
também uma bebida, degustada vastamente durante a cerimônia. Chamada de Amrita,
trata-se de um fluido sagrado produzido pela agitação do oceano por deusas ancestrais
a partir de certas ervas especiais. O oceano, na prática mortal, eram as
vaginas e sucos de algumas sacerdotisas escolhidas dentre as Leelas. E a
agitação nada mais era do que a masturbação utilizando-se essas ervas, que, ao
cerem maceradas, tornavam-se óleos essenciais introduzidos e estimuladas nos
oceanos por instrumentos mágicos, delicadamente entalhados em madeiras de
árvores perfumadas e raras existentes apenas em certas montanhas do Tibet e da
Índia. Havia um ritual próprio para produção do Amrita, durante as festividades
da lua violeta. Durante a kama leela a ingestão do Amrita pelas mulheres
intensificava os apetites e ânimos sexuais, fazendo de cada corpo um vulcão e o
encontro entre eles verdadeiros choques tectônicos. Elas tocavam-se,
agarravam-se, esfregavam-se, beijavam-se, mordiam-se e pressionavam-se na busca
sagrada pela morte ritual, a acumulação de orgasmos em cada uma e em todas,
produzindo uma imensa onda de prazer, luz e gozos.
Após as danças, destruídas pela entrega extrema de
seus corpos às brincadeiras, todas deitavam-se, umas por sobras as outras, ao
redor da fogueira, formando uma mandala humana. E um longo movimento lunar se passava enquanto
elas sentiam-se carinhosamente, acariciando-se, pés, tornozelos, panturrilhas,
coxas, virilhas, oceanos, barrigas, seios, braços, mãos, pescoços, orelhas,
bocas, línguas, narizes, sobrancelhas, cabelos... dedicavam-se a uma descoberta
minuciosa de todas as sensações que seus corpos poderiam sentir e provocar,
suavemente, languidamente, mas aos poucos reacendendo-as... Produziam um tênue
coral de sons, gemidos, cantos, ais. Na proximidade do nascer do sol, no ápice
da madrugada, elas aos poucos começavam a sentar-se, umas nos colos das outras,
e lambiam-se. Todo Amrita precisava ser bebido, devia unir-se às suas correntes
sanguíneas, urgia transmutar-se em suor, saliva e gozo. Bebiam, beijavam-se,
penetravam-se com seus dedos e línguas, bebendo oceanos de sucos vaginais e
bebida sagrada. E a mandala lentamente movia-se, umas serpenteando pelas
outras, roçando, apertando, sugando. Na primeira luz da aurora todas estavam
inteiramente encharcadas, o chão era uma poça de sofreguidão, seus corpos eram
incapazes de mover um músculo, todas, de olhos fechados, ouviam a tênue canção
do amanhecer, aquele som mítico que só os seres iluminados podiam ouvir. Seus
corpos, limpos-úmidos, brilhavam como cristais diante desses primeiros e puros
raios de luz. Alçado o sol um pequeno percurso, as meninas mais jovens dentre
elas, demasiada imaturas para participar da cerimônia e incubidas de garantir certas
tarefas no ritual, armavam uma tenda sobre as mulheres, protegendo-as do
poderoso sol que em breve arderia as areias do deserto. E lá elas permaneciam
por todo o dia, assimilando toda a experiência, a sabedoria e a transcendência
vivenciada na kama leela. Ao cair da noite e sob as primeiras luzes da lua,
elas ceavam uma refeição especial, capaz de retomar-lhes o fogo e o ânimo das
ações cotidianas.
Ao som de Absense to Excess - Opala
Arte adaptada de Kim Joon
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