O mar negro e pesado soluçava cadentemente contra as rochas do paredão literâneo por onde passava o tão famoso calçadão daquela capital caribenha; nas lamparinas coloniais brilhavam as envelhecidas lâmpadas elétricas, pintando o chão de amarelo escurecido pelo véu da noite; a espuma marinha efervecente inundava o ar com os estalos de sua angústia; um pescador solitário mantinha-se firme e ereto, empunhando sua plácida lança rumo aos escuros confins do mar; um ou outro velho cidadão voltava para casa n´uma antiga bicicleta na ciclovia desgastada pelo tempo; os bares salpicados na extensa orla emanavam as fragâncias e sonoridades típicas daquele tão especial região da Terra.
Caminhava pesado como um robusto contrabaixo, vestido em trajes escurecidos no tom de sua visceral madeira envernizada. Os pensamentos lhe tinham fugido para caçar sardinhas boêmias nas ondas caudalosas, pensamentos-albatrozes-fugidios... Com as mãos aventureiras a procurar tesouros nos bolsos, os olhos detetives a desvendar as pedras do calçamento, os sentidos escondidos no fundo da garganta, ele caminhava, voltando não sabia de onde em direção à lugar desconhecido. Seu coração sincronizava-se com seus passos, ora acelerados e impactantes, ora arrastados e sonolentos. Seus ombros doiam levemente, sem motivo bem definido, talvez fossem as tensões emergentes dos calos dos pés. Vagamente, começou a sair-lhe dos lábios uma canção antiga e melancólica, como uma balada de navegadores perdidos na inescrutável imensidão do mar. Os sopros leves e quase inaudíveis foram ganhando força e tornando-se possantes, regendo o ritmo de seu passar. Absorveu-se nesta canção repentinamente criada, espontaneamente exposta aos seus ouvidos diretamente de seu submundo... até que vários minutos depois, com os músculos faciais exauridos pelo esforço sonoro, fez pequena pausa. Que espanto! não foi ouvir distantes palmas de aclamação vindas logo atrás de si, por outra caminhante que, aparentemente, pôs-se a ouvi-lo. Olhou para trás para observar sua perseguidora e reconhecendo a alegre vendedora de flores da sua rua, tratou de passar para o outro lado da avenida, a fim de fugir de sua suposta admiradora. Era demasiado reservado e, pior, não suportava qualquer tipo de elogio ou apreciação. Porém, a garota o seguiu, apressou-se para alcançá-lo e logo banhou-lhe de palavras como se uma onda forte tivesse espirrado no calçadão, encharcando o tímido e seco caminhante.
- Ai, como é bonita a sua música, como são límpidas cada nota que assovias... ai, fico louca só de ouvir, dá-me uma vontade de pular, sabia? Apesar de carregar uma tristeza muito exagerada, eu acho. Você não deveria derramar essas lágrimas todas n´uma música tão bonita, viu? Trate de consertar.
Ele limitou-se a olhá-la, constrangido pelos incontáveis comenetários. As músiquetas que ora assoviava, improvisadamente, eram meras distrações, formas de apaziguar-lhe os ânimos aflitos pela constância e imutabilidade do seu cotidiano. Nessas longas caminhadas noturnas, fazia um pacto sombrio com o mar. Comprometia-se em despejar impiedosamente todos os pesos de chumbo do espírito no corpo marinho, e, em contra partida, prometia render eterna reverência à entidade mágica do oceano.
- Você não acha que deveria estar fazendo alguma outra coisa? - foi a resposta que ele conseguiu elaborar.
- Como assim? - questionou a menina, levantando a sobrancelha esquerda, sem entender o que ele quis dizer. - Eu estou fazendo o que me acontece fazer. Estava caminhando e comecei a ouvir a sua música. Gostei muito e por isso vim conversar contigo. Espero que não se incomode.
- Me incomoda sim, se importa? Preferiria continuar sozinho. - disse o moço, secamente.
- Não seja bobo! Eu sei que não é verdade. Dá para ver no fundo, lá no fundo dos seus olhos que só o que você precisa é uma companhia. Bobo! Fica fazendo uma de difícil. Eu te vejo todos os dias passar pela rua onde eu vendo flores, sabe? Me parece tão triste. Por que você é assim?
- Pergunte ao mar porque ele é insondável e assim que ele responder, eu também talvez lhe responda. - fechou a conversa. Mas a menina, inabalável, persistiu:
- Nada nisso. Não aceito. Acho que você só precisa de alguma coisa pequena, não sei, talvez uma flor? Tome! - disse, entregando-lhe uma flor do campo retirada d´um canteiro próximo - Ou então, companhia? Posso conversar contigo sempre que quiseres. Onde moras? Que músicas tens na tua casa para ouvir? Tem sorvete? Vamos tomar um pouco de sorvete? Te fará bem! - e ela falava, falava, dizendo mil coisas que pudessem alegrar o estranho. Porém o impenetrável muro que circundava o homem mostrava-se com poucos pontos fracos.
- Não precisa de nada disso. Eu estou bem. Apenas deixe-me em paz. - E afastou-se da menina, frustrando todos os inúmeros planos que ela já elaborava para mudar radicalmente a vida daquela alma em penumbra. Mas ele ficou a olhar para a flor que ela lhe deu. A guardou dentro de seu livro de cabeceira, aquele que todas as noites ele lia e relia. E toda noite passou a olhar para a pequena e ressequida flor, lembrando-se do olhar do anjo que lhe presenteara. A partir daquela data ele nunca mais a viu na rua onde morava. Será que alguma coisa aconteceu a ela? Alguma tragédia? Nunca saberia, mas passou a procurar por ela em todas os rostos que cruzavam com ele na rua. E ao assobiar, seu canto ganhou uma razão, encontrar, enlaçar a presença daquela menina. Todas as noites suas canções tinham esse motivo misterioso para tornarem-se alegres, fortes, indagadoras. E as flores ganharam um novo significado, um novo interesse, um novo olhar. Flores belas... lembranças...
Caminhava pesado como um robusto contrabaixo, vestido em trajes escurecidos no tom de sua visceral madeira envernizada. Os pensamentos lhe tinham fugido para caçar sardinhas boêmias nas ondas caudalosas, pensamentos-albatrozes-fugidios... Com as mãos aventureiras a procurar tesouros nos bolsos, os olhos detetives a desvendar as pedras do calçamento, os sentidos escondidos no fundo da garganta, ele caminhava, voltando não sabia de onde em direção à lugar desconhecido. Seu coração sincronizava-se com seus passos, ora acelerados e impactantes, ora arrastados e sonolentos. Seus ombros doiam levemente, sem motivo bem definido, talvez fossem as tensões emergentes dos calos dos pés. Vagamente, começou a sair-lhe dos lábios uma canção antiga e melancólica, como uma balada de navegadores perdidos na inescrutável imensidão do mar. Os sopros leves e quase inaudíveis foram ganhando força e tornando-se possantes, regendo o ritmo de seu passar. Absorveu-se nesta canção repentinamente criada, espontaneamente exposta aos seus ouvidos diretamente de seu submundo... até que vários minutos depois, com os músculos faciais exauridos pelo esforço sonoro, fez pequena pausa. Que espanto! não foi ouvir distantes palmas de aclamação vindas logo atrás de si, por outra caminhante que, aparentemente, pôs-se a ouvi-lo. Olhou para trás para observar sua perseguidora e reconhecendo a alegre vendedora de flores da sua rua, tratou de passar para o outro lado da avenida, a fim de fugir de sua suposta admiradora. Era demasiado reservado e, pior, não suportava qualquer tipo de elogio ou apreciação. Porém, a garota o seguiu, apressou-se para alcançá-lo e logo banhou-lhe de palavras como se uma onda forte tivesse espirrado no calçadão, encharcando o tímido e seco caminhante.
- Ai, como é bonita a sua música, como são límpidas cada nota que assovias... ai, fico louca só de ouvir, dá-me uma vontade de pular, sabia? Apesar de carregar uma tristeza muito exagerada, eu acho. Você não deveria derramar essas lágrimas todas n´uma música tão bonita, viu? Trate de consertar.
Ele limitou-se a olhá-la, constrangido pelos incontáveis comenetários. As músiquetas que ora assoviava, improvisadamente, eram meras distrações, formas de apaziguar-lhe os ânimos aflitos pela constância e imutabilidade do seu cotidiano. Nessas longas caminhadas noturnas, fazia um pacto sombrio com o mar. Comprometia-se em despejar impiedosamente todos os pesos de chumbo do espírito no corpo marinho, e, em contra partida, prometia render eterna reverência à entidade mágica do oceano.
- Você não acha que deveria estar fazendo alguma outra coisa? - foi a resposta que ele conseguiu elaborar.
- Como assim? - questionou a menina, levantando a sobrancelha esquerda, sem entender o que ele quis dizer. - Eu estou fazendo o que me acontece fazer. Estava caminhando e comecei a ouvir a sua música. Gostei muito e por isso vim conversar contigo. Espero que não se incomode.
- Me incomoda sim, se importa? Preferiria continuar sozinho. - disse o moço, secamente.
- Não seja bobo! Eu sei que não é verdade. Dá para ver no fundo, lá no fundo dos seus olhos que só o que você precisa é uma companhia. Bobo! Fica fazendo uma de difícil. Eu te vejo todos os dias passar pela rua onde eu vendo flores, sabe? Me parece tão triste. Por que você é assim?
- Pergunte ao mar porque ele é insondável e assim que ele responder, eu também talvez lhe responda. - fechou a conversa. Mas a menina, inabalável, persistiu:
- Nada nisso. Não aceito. Acho que você só precisa de alguma coisa pequena, não sei, talvez uma flor? Tome! - disse, entregando-lhe uma flor do campo retirada d´um canteiro próximo - Ou então, companhia? Posso conversar contigo sempre que quiseres. Onde moras? Que músicas tens na tua casa para ouvir? Tem sorvete? Vamos tomar um pouco de sorvete? Te fará bem! - e ela falava, falava, dizendo mil coisas que pudessem alegrar o estranho. Porém o impenetrável muro que circundava o homem mostrava-se com poucos pontos fracos.
- Não precisa de nada disso. Eu estou bem. Apenas deixe-me em paz. - E afastou-se da menina, frustrando todos os inúmeros planos que ela já elaborava para mudar radicalmente a vida daquela alma em penumbra. Mas ele ficou a olhar para a flor que ela lhe deu. A guardou dentro de seu livro de cabeceira, aquele que todas as noites ele lia e relia. E toda noite passou a olhar para a pequena e ressequida flor, lembrando-se do olhar do anjo que lhe presenteara. A partir daquela data ele nunca mais a viu na rua onde morava. Será que alguma coisa aconteceu a ela? Alguma tragédia? Nunca saberia, mas passou a procurar por ela em todas os rostos que cruzavam com ele na rua. E ao assobiar, seu canto ganhou uma razão, encontrar, enlaçar a presença daquela menina. Todas as noites suas canções tinham esse motivo misterioso para tornarem-se alegres, fortes, indagadoras. E as flores ganharam um novo significado, um novo interesse, um novo olhar. Flores belas... lembranças...
(Arcade Fire - Crown of Love - uma música)