terça-feira, 12 de abril de 2016

Videquilíbrio


Viver. Tão simples quanto a respiração, gesto que esconde infinitas mágicas de transformação de gases nos pulmões, processos químicos metabólicos, circulação de moléculas pelo sangue por todo o corpo, energização e limpeza no simples ato de inspirar e expirar.

Viver. Simples, mas tão complexo. Necessário, mas com cuidado. Preciso, mas imprevisível. Inevitável, ou não.

Viver entendo como cuidar de si. Realizar essa chama, esse movimento que existe em nós, seguir essa direção que nos impulsiona. Respeitar e dignificar esse ser corpóreo que somos, transformá-lo, expandindo-o, desenvolvendo nossos potenciais e sonhos. 

Uma integralidade, em que diversos fatores e dimensões coexistem, demandando nossas energias e ações para esse fazer viver diário, constante. O comer é uma de nossas necessidades mais insistentes. Sempre nos acompanha, nos move, dedicamos nossas vidas, tantas vezes, para garantir o alimento. Mas o que significa comer? Nutrir-se, apenas ingerindo certas quantidades de substâncias químicas, nutrientes, que nos manterão funcionando? Encher uma barriga de produtos comestíveis, não necessariamente nutritivos, para saciar um apetite altamente estimulado? Ou alimentar nossos corpos signifique estabelecer uma relação profunda com o alimento, todo o seu ciclo, desde a terra, a vida no solo, a luz do sol, a complexa biodiversidade que transforma energia em algo bom de comer e saborear, passando pelo semear a semente do alimento - você conhece a semente do tomate, do espinafre, da rúcula, do coentro? - regá-lo e vê-lo crescer, cuidar dele, protegê-lo de doenças, trocar energias. Colhidos os infinitos e belos ingredientes que a natureza nos ofereceu, agora precisamos prepará-los por meio da amorosa arte da culinária, transformando cada grão, raiz, folha e fruto em incontáveis e indescritíveis sabores, prazeres e elementos que constituirão nossa saúde e bem-viver.

O comer então se relaciona intimamente com nossa espiritualidade e corporeidade. Espiritualidade na medida em que a Terra é parte deste Todo que todas as religiões querem nos religar. Nos conectarmos com a Terra, cuidarmos dela, plantarmos e colhermos seus frutos é também uma forma de rezar, de se colocar e sentir em tudo que existe. E corporeidade porque alimentar-se bem significa respeitar nosso corpo, garantir a ele tudo que precisa para existir, cuidar-se, curar-se, fortalecer-se, de modo a termos disposição, alegria, tesão pra viver!

O sono é outra forma de alimento. Vivemos duas realidades paralelas, o mundo acordado e o mundo dormindo. Dormir nos permite organizar o vivido, descansar os músculos, as vontades e dores, mas permite também navegar por outros universos, inventados, conectados, surreais. Cuidar de nosso sono é cuidar de nosso estar acordado, desperto, com ânimo, atenção, disposição. 

A espiritualidade, como dito, remete à uma angústia fundamental do ser humano em sentir-se separado de tudo e sua necessidade em se conectar com algo maior. Uns personalizam esse Todo numa entidade, uma divindade, um Ser que os transcende, ora de forma autoritária e punitiva, ora de forma inspiradora e esperançosa. Outros entendem o Tudo como esse Todo. Tudo que existe, o Universo, as Estrelas, a Terra, todos os seres vivo, Tudo, ou como gosto de chamar, A Vida. Nossa personalidade e compreensão de um "eu" diferente e separado de tudo que é "não-eu", tudo que está fora de nós, tudo que aparentemente desconhecemos e não fazemos parte, cria uma angústia, um desamparo, um medo existencial da solidão no fim de tudo. E a espiritualidade é o caminho de retorno a essa compreensão de que o eu e o não-eu são uma só existência, que somos parte de Tudo, somos Tudo, ainda que individualizados. Cuidar desse caminho, dessa espiritualidade, dessa conexão, é tão fundamental que caso caiamos nas desesperanças e medos vitais, podemos parar de nos alimentar, podemos não querer mais viver, podemos cair em fundamentalismos que nos enganam e aprisionam.

A corporeidade não se resume também à alimentação e ao sono. Um corpo vivo é um corpo ativo. Precisamos sentir nossos movimentos, estimulá-los, libertá-los. Vivemos uma sociedade de grande repressão e violência contra nossos corpos. Aprendemos a ter vergonha de nós mesmos, de partes de nossos corpos, nossos sexos. É preciso libertar nosso ser corpo de tudo, nus, leves, próprios. Viver fisicamente, despertar nossa sensibilidade, nossos sentidos, ver, ouvir, tocar, degustar, cheirar com atenção, com intensidade, com abertura para ir além. 

E nosso corpo não se resume à carne e ossos que nos erguem. Nossa expressão de si se manifesta naquilo que nos cerca, nossos adornos, nossas artes - literatura, teatro, dança, pintura, música, escultura, circo, cinema, fotografia e tantas outras artes e artesanias -, nossa casa, nosso jardim. Cuidar de nós é cuidar de nossa casa, os elementos materiais que não são imprescindíveis, não dependemos deles, mas que podem contribuir, levemente, conosco. Cuidar jardim, nosso plantar, nosso colher, nosso participar do ciclo de vida, florescimento, morte e decomposição, retorno, renovação, ciclo.

Corpo em conexão tem movimento próprio, tem sentidos vitais, caminhos para onde segue, múltiplos, em constante transformação, busca propósitos, ideais, utopias. Como realizar-se vivo, como realizar-se e garantir suas condições materiais de existência, comumente entendido como uma renda ou formas de garantir o comer, o dormir, o teto e demais matérias fundamentais. 

E, afinal, viver é também estar em relação. Na medida em que nos entendemos 'eus', abre-se todo o universo para nos relacionarmos, todos os demais seres, todas as demais pessoas. E o afeto se coloca como essa abertura, essa possibilidade de transcendermos, de chegarmos na outra e nos deixarmos chegar, transpassar, ampliar nossos limites físicos e perceptivos, esse afetar e nos deixarmos afetar tudo e todas quem estão, estiveram e estarão conosco. Afeto-amor, ser-viver.

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