segunda-feira, 18 de abril de 2016

Manifesto das Relações Autônomas





Cada individualidade é um universo. Cada sujeita está no mundo: por um lado inteiramente só, consigo; por outro lado, estamos com tudo, somos absolutamente parte de tudo, em conexão que pode ou não ser sentida, vivida, assumida, mas que é – cada partícula de nossos corpos é fruto da transformação da matéria de tudo, somos fruto do movimento de tudo, e não há nenhum lugar em que possamos nos esconder e fingir estarmos isolados. Não existe isolamento, pois que não existe um “fora” de tudo que existe.

Esta conexão, contudo, não significa dependência. Não dependemos de tudo, reféns desse mundo exterior, pois já temos em nós a partícula desse todo, em desenvolvimento, amadurecimento e emancipação, nos fortalecendo e empoderando na medida em que tomamos consciência disso e exercemos essa totalidade em expansão que somos. Estamos, sim, em relação permanente com tudo. Cada ato, cada gesto, cada pensamento e sentimento, nos move e move tudo que nos cerca. Afetamos e somos afetados por tudo, pelo clima, por um olhar, pela nossa atitude perante os acontecimentos.

Apesar da interrelação, da interconexão com tudo, nossa condição de seres conscientes de si mesmos nos torna responsáveis por quem somos e pelo que fazemos, para onde vamos e o que sentimos. O exterior nos afeta. Mas a maneira como lidamos com isso é uma escolha nossa. Autonomia é esse exercício constante e imperativo de ser soberana sobre si mesma, buscando compreender tudo que se passa conosco, esmiuçando nossas causas e efeitos, assumindo responsabilidade sobre nossas ações e reações, refletindo sobre nossas opções e possibilidades, correndo os riscos e enfrentando com coragem nossos desafios e conflitos.

Então, o que significa estabelecer relações com o mundo, e em especial com os outros seres? É preciso lembrar que a autonomia é um processo constante, em desenvolvimento permanente, em persistente aprimoramento. Sabe-se que não há perfeição em nada nem ninguém, que por mais que se busque intensamente a autonomia, nos esforcemos para exercer nossa soberania de si, temos sempre que lidar com diversos elementos fragilizadores e enfraquecedores de nós mesmos. Ressalta-se, principalmente, que vivemos uma forma de organização política, social e cultural das sociedades humanas que tem interesse e ação ativa na debilitação das sujeitas, pois tal ideologia se baseia na dominação e exploração de algumas poucas pessoas sobre as demais, com ênfases econômicas, de gênero, de sexualidade e étnicas.

Para tal ideologia, pessoas fragmentadas, frágeis e com sensação de isolamento, carentes, desesperadas e depressivas são mais facilmente controláveis e domináveis, se submetem mais facilmente à exploração e aceitam mais calmamente este estado de coisas.

Esta ideologia, que eu nomeio “sistema de relações de poder e dominação” e que ao longo da história se configurou de diversas formas, das teocracias, feudalismos, absolutismos, mercantilismos, chegando ao atual capitalismo, é verdadeiramente um desafio/obstáculo/impedimento e até mesmo violação e destruição da autonomia de todas as pessoas, individual e coletivamente. E neste contexto histórico, o exercício da autonomia se coloca também como uma questão coletiva de transformação dessa realidade, destruindo tal sistema de relações.

Para tal, precisamos sempre nos fortalecer, confiar em nós, assumirmos, como dito, nossas vidas como nossas, inteiramente nossas, para serem exercidas, vividas, extrapoladas da maneira que melhor nos convier – posto que a vida é essa oportunidade de autorealização, automanifestação, autoexpressão neste mundo partilhado.

Não podemos simplesmente externalizar nossas responsabilidades, responsabilizando a outra pessoa pelas nossas demandas, fraquezas e carências. Nem tampouco nos confiar na outra pessoa, esquecendo ou ignorando que elas também tem demandas, fraquezas e carências a serem compreendidas, superadas, geridas, transformadas.

Estabelecer relações significa, antes de tudo, relacionar-se consigo próprio. Nossa maior e mais intensa relação na vida é conosco. A partir de uma intensa e profunda relação conosco, podemos estabelecer relações intensas e profundas com outras pessoas e com tudo que nos cerca. Se somos superficiais para nós mesmos, nada além disso poderemos oferecer, partilhar e receber.

E estando em harmonia e plenitude – ou no caminho constante e dinâmico de estabelecer harmonia e plenitude de nossas existências, poderemos melhor lidar com as dificuldades e limitações das demais pessoas, aceitar (sem nos conformar) suas ações, ainda que nos incompreendam ou que sejam divergentes de nossas perspectivas. Em harmonia com nossas próprias ações, não esperamos nem projetamos comportamentos e ações das outras pessoas, algo que tanto nos frustra por não podermos controlar o movimento da vida e das outras pessoas, como também de alguma forma coíbe ou limita a autonomia da outra pessoa.

Vamos assumir nossas vidas, vamos ter coragem para a autonomia, vamos estabelecer relações que assumam as autonomias dos seres em relação, a outra pessoa não é responsável por mim nem tem que me dar satisfações, eu/nós seguimos nossas vidas e nos encontramos para nos somar, nos crescer, nos fazer bem... Se não for assim, não é/será relação.


Imagem de Andy Kehoe

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