quinta-feira, 12 de julho de 2018

Farol


Kalma, respira. Está chegando. Aquele trecho da trilha era íngreme, escarpado, mas proporcionava algumas visões deslumbrantes do universo. Dali podia-se observar a constelação do Bailar dos Barcos, contemplar o pulsar do centro da Galáxia Leoa e tinha-se a impressão de que o Sol e a Lua piscavam uma para a outra, quando fechava-se o olho direito e o esquerdo lacrimejava.

A medida que se subia aquela interestelar montanha, os corpos se tornavam mais leves, pois os corações eram incitados a inflar um tanto, pelo esforço, e tamanha já era a distância do centro do Ego, que a gravidade balançava e afrouxava um bocadim.

Ela ia na frente e muitas vezes desaparecia da vista nas curvas da relva, da floresta ou das ondas rochosas. Mas a confiança garantia que Ela estava logo ali. Ele aproveitou para contemplar seus passos, estudar seus sinais, apanhando alguns de seus fios de cabelo encaracolando-se pelo caminho, resgatando sua fragância captada pelas flores próximas. Levava consigo seu Xequerer, instrumento musical reinventado, com o qual dançava em sua caminhada, conduzindo sua respiração.

Aonde Ela for, eu vou, pensou, de qualquer jeito. Posso até me perder, mas o Beija-Flor que observa lá de cima e nos observa, sempre me deixa pistas. E o maravilhamento da vida de tantas formas me sopra que caminho Ela tomou. E não importa o que aconteça, seguir caminhando, descobrindo todos os detalhes dessa estrada, enlevando-se até a beira do voo, é uma aventura. Uma jornada cheia de encontros, com todos os seres mágicos que nos guiam por este caminho. 

No início do caminho, na planície ao pé da montanha, o Coiote travesso riu-se de seus tropeços e brincou "quando a gente ri, ficamos mais leves. Não esquece de libertar sua graça, emanar tua paz contente". E então ele riu-se de todas as suas feridas, gargalhando ao ponto de lágrimas brotarem em seus olhos, fazendo-o correr de alegria, até ouvir o rugir da água que caia dos céus rochosos. O Pavão decorava os caminhos até a cachoeira resplandecente e ao vê-lo, demorou-se examinando-o. Então lançou um canto profundo, advertindo-o da urgência de guardar e propagar a beleza da vida e do coração. Atravessando a passagem molhada das águas em queda, tomou-lhe uma profunda sensação de perdão, por tudo que errou, por tudo que sofreu. Aquelas águas eram como um bálsamo para os pesos que carregamos, sem precisar. Atrás abria-se uma caverna , início da trilha que subia a montanha. Um grande Urso guardava a entrada. Recitou-lhe os versos

“Tendo procurado no mais profundo
das montanhas longínquas
achei o meu lar.
Meu lar, onde tinha sempre vivido.”

*

E indicou-lhe que seguisse, pois era digno de sua confiança. A escuridão mostrava-o por onde ir, olhos fechados, mãos tateando seu interior, memórias e desejos mais impregnados, pistas de como chegar ao lado de lá, ao lado dEla. A luz se manifestou tão logo se entregou inteiro e chegou na passarela sutil que ladeava a montanha do universo, diante de um precipício cósmico, perante o infinito. Podia ouvir os passos dEla um pouco mais a frente. Estás comigo, eu sei, e estou contigo, até o fim. Por isso eu vim, por isso estou aqui e por isso sigo.

Então um chiado e um susto que fizeram-no agarrar-se à parede mineral. Uma Serpente eriçava-se, atenta a sua presença. Sua língua percebia no ar cada molécula de meus sentimentos e anseios. "Viajante, cuidado em cada passo. Percebe-te, donde te feres e a quem feres, para transformar teus venenos em outra forma de ser e cuidar. Que o amargo possa adoçar e o azedo chegue então a apimentar, aquecendo e intensificando o estar". E abriu-lhe caminho.

Ao fim, no pico, deparou-se com um surpreendente Farol, construção brilhante, cuja luz guiava cometas e amantes. Torre espiral que brotava das costas de um imenso Caracol.  Lá em cima ele A via. O Caracol olhou-lhe bem dentro e murmurou "O que é para ser, nada impedirá. Quem quer chegar, todo caminho levará. O amor inteiro torna tudo Uma", concluiu "Vá até Ela...".   

* O poema é um haicai de Dogen Zenji, mestre zen japonês.

Ao som de Bailar dos Barcos - Wado

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