domingo, 3 de novembro de 2013
Era verdade
Sente uma faísca percorrer-lhe o rosto cada vez que seus lábios tocam os dela. As línguas e os dentes disputam vontades, como se fosse uma corrida pelo ouro, pela mina, para o oeste. Aquela mulher o enlouquece, com ela acomete-o uma desrazão possuída, a fúria dos sentidos em ebulição, como se o sangue estivesse fervendo e a única forma de não morrer fosse derretê-la com ele. Pela garganta dele fugia a ânsia, o gemido de orgasmo. Sentia que apaixonava-se a cada boca untando seios, língua lambuzando clítores, lábios, pelos, cada penetração desfrutando texturas, umidades, temperaturas. A paixão para ele representava este impulso, essa tempestade, esse desastre natural... como a fome, a luta pela sobrevivência, o desespero da morte, qualquer coisa incontrolável, qualquer estado de corpo/espírito avassalador, que era tudo e era nada, tão derradeiro, último... A cada reencontro ele tinha mais sede, mais ânsia, mais desejo, mais amor... estar com ela representava um estar no mundo, um estar com o mundo, com a vida, toda a vida fluindo pelas peles, subindo pelas paredes, alçando voos... Ali, naqueles braços, tudo fazia sentido, ou pelo menos, perdia a importância se fazia ou não, estar bastava para satisfazer o ser... Só que era pago. A encontrou numa praça pouco movimentada, sentada n´um banco de pedra sob uma árvore de copa e folhas largas, mini-saia preta, meia arrastão, blusinha tomara-que-caia (e ia cair) vermelha, unhas pintadas de preto, muitas pulseiras metálicas, bota, piercing no nariz, lápis de olho bem marcado, cabelos cacheados e longos. Estava andando por ali, voltando para casa a pé de um trampo cansativo, sentindo-se só, e em abstinência há já um tempo danado. Tava feito um bicho no cio. E avista aquela mulher, sentada com a perna cruzada balançando, com um papel na mão e anotando algo. Parou, meio desorientado. Ficou ali uns segundos demorados. Depois sentiu-se confuso. Bateu aquela dúvida - quem é? o que está fazendo ali e a essa hora? Ficou na dúvida se podia se aproximar. O que diria? Mas não conseguiu evitar. Foi, devagarinho, mãos nos bolsos, pés hesitantes. Chegando, a cada passo um pouco mais. Ela não levantou os olhos de seu bloquinho de capa verde e folhas cor laranja escuro e papel rústico ou reciclado. Sentou-se ao lado dela, um pouco distante. Assim, ao lado, ela mostrava-se estonteante, desnorteante. A boca dela, estranhamente sem batom, era tão brilhante e naturalmente vermelha, túmida, quase uma pitanga molhada de chuva. O que estás escrevendo, perguntou. Uns versos que me ocorreram há pouco, quando vi um gato descer ali no córrego seco do esgoto, respondeu, ainda com os olhos baixos. Só um instante que falo contigo. Pronto. Olá, tudo bem? Vamos fazer um programa? A ficha não caiu, foi jogada na cara dele. Não quiria subentender que ela fosse prostituta apenas pelas roupas que usava. Afinal, isso não é prova nem nada. Ele sorriu desajeitado, sem saber o que dizer. Então, aceitou, ou melhor, confirmou, sem saber muito bem o que estava fazendo. Levantaram-se. Eu moro logo ali, disse ele. Subiram as escadas e todo o caminho em silêncio. Ele estava confuso, nunca transara com uma prostituta antes, sorte que tinha um dinheiro extra em casa. E bastante camisinha. Ela ainda estava pensando no gato. Entraram. Era um apê tudo-em-um-lugar-só. Um espaço grande, onde ficava uma cama no canto direito, uma estante dividindo o espaço, umas almofadas fazendo-se de sofá, a cozinha do lado esquerdo, a porta do banheiro após a bancada da pia, uma janela grande ao fundo, com cortinas espessas. Ela colocou sua bolsa na mesinha ao lado da porta e olhou para ele. Ele olhou para ela. Ficaram assim, quase sem piscar por um tempo que pareceu uma travessia. Então beijou-a com fulgor, enquanto seus corpos cambalearam em direção às almofadas sobre o tapete macio. Tiraram as roupas como se fosse água escorrendo pelo corpo e ele então parou um instante, admirando-a deitada entre as cores das almofadas. Os pelos íntimos dela desenhavam um pequeno retângulo, delicado. Seus pés eram também delicados, e isso o alucinou. Começou por eles, beijando-os, enaltecendo-os com seus beijos, um súdito diante da majestade. E a cada centímetro que subia, o mundo dava voltas e caiam as estrelas. Ela gemia com uma musicalidade, uma sonoridade, era um prazer tão autêntico, tão delicioso, que excitava-o mais ainda, se é que era possível. Beijando-a toda e mais um pouco, agarrando-lhe o corpo, fez com que girasse, colocando-a sobre ele. Ela então posicionou-se, posicionou-o, para que a penetrasse, e foi guiando-lhe os sentidos com seus quadris, com sua cintura, sua ginga, sua graça. Sorria com alegria. Rebolava sem música além da respiração vibrante. E assim foi, até amanhecer, três gozadas e um sem-número de orgasmos múltiplos (segundo ela). O primeiro e único cliente da noite e ela nem cobrou o adicional por ter dormido e acordado lá. Até tomaram café da manhã, preto, levemente adocicado, com bolachas de coco e queijo de coalho derretido. Marcaram para a quinta-feira seguinte. Ela sabia onde morava agora. E assim foram, durante todas as quintas de setembro, outubro e novembro. Entre um colapso de exaustão e nova vontade louca, conversavam, sob o efeito extático do recém-prazer, compartilhando sensações, sonhos, ideias, imagens, lembranças. Ela mostrou-lhe os versos, deu-lhe alguns, que ganharam lugar nas paredes, dentro do livro que estava lendo, no lugar em que guardava suas cartas de amor. Ela até escrevera-lhe poemas. Dizia que pensava muito nele e esperava ansiosa pela quinta. Era quase um dia de folga, ou melhor, de transbordante trabalho excessivo. Mas nele agulhava uma dúvida. Seria verdade? Sentiria ela algo por ele? Estaria, ao menos, sentindo de fato o prazer, a emoção, a fusão orgásmica que ele sentia tão desesperadamente? Seria assim com os outros? Estaria fingindo? Seria ainda capaz de sentir algo, nessa rotina de sexo profissional, por obrigação, para ganhar a vida? Às vezes esses pensamentos lhe ocorriam durante o ato, ouvindo aqueles gemidos tão inspiradores, tão doidos. Seria possível encenar isso? Estaria acostumada a tanto? Sentia-se ora enganado, ora desiludido, ou frustrado. Mas logo esquecia, afogando-se naqueles seios suaves, frágeis, que lhe demandavam um carinho e adoração infinita. E ele, que editava e produzia livros artesanais, organizou um livro com os poemas dela, e fizeram um lançamento num cantinho especial e querido pelos artistas e adoradores de arte da cidade e ela fez um barulho razoável com aquelas palavras subterrâneas, escritas pelas madrugadas cansadas e suadas. Ela ficou-lhe imensamente agradecida pelo reconhecimento, pela valorização dela de algo que não seu corpo e pelo retorno dos livros vendidos. A partir daquele dia não aceitou mais que ele pagasse. E passaram a ver-se mais dias na semana. Até todos os dias da semana. Ele escrevia no corpo dela e fotografava. E fez uma exposição dessas poesias dérmicas. Ela escreveu-lhe uma parede inteira, nua. E depois de tudo isso, ele enfim acreditou que era verdade... o prazer/querer dela.
I Follow River - Lykke Li - dançante
Inspirado por: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios
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