Daquele cone preto fosco, espécie de tuba musical, fluia uma liquidez sonora tão melódica que podia-se tocar as vibrações que passeavam pelo ambiente. O objeto antigo, adquirido n´um antiguário por um valor razoavelmente abusivo mas que, como era tão bonito, não podia ser esquecido e largado naquele amontoado de coisas bonitas, agora ilustrava e iluminava serenamente a atmosférica penumbra daquele cafezinho recém inaugurado. Tão recente que quase ninguém conhecia, tão discreto que não se fazia propaganda, tão delicado que o garoto, único cliente àquela hora longínqua da noite, temia que quebrasse a qualquer momento. A fachada do lugar era escondida por duas imensas árvores de caules robustos e anciãos que ladeavam a entrada, como um pórtico místico de folhas verde-escuro. Assim que se adentrava, havia algumas mesinhas encostadas às paredes, onde sofás confortabilíssimos convidavam à nunca mais sair. Mais adiante, do lado direito, o bar onde se preparavam suculentos pratos e bebidas quentes e frias, de coqueteis à cafés, sanduiches e tortas, chegando ao limite impensável de biscoitos caseiros do tipo 'avó'rnal', servidos em porções fartas. E no fundo do recinto, outras mesinhas e sofás, porém de iluminação mais tênue, opaca, entristecida... lá ficava a imemorial vitrola, sob um criado de madeira escurecida dotado de um espaço reservado para dezenas de LPs sentimentais e noturnos. As paredes de madeira e os lustres ornamentados de dobraduras de papel multicolorido, além de diversos e curiosos móbiles pendurados cadentemente do teto relativamente baixo, completavam o cenário tão encantador que o rapaz frequentava religiosamente todos os dias. Nos fins de suas noites caladas, inevitavelmente lá estava ele, taciturno, pensativo, saboreando algum manjar de cor viva, doce e gelada. Naquele espírito etéreo e compenetrado, aproveitava para ler incontáveis romances, teorias, escrever cartas sem destinatário, depurar paradoxos da filosofia ou da psiquê, analisar cuidadosamente os centímetros neurológicos do pensamento. Durante boa parte da noite ele era o único no lugar. Raramente um ou outro transeunte decidia se aventurar ali dentro, mordiscar um quiche ou provar um sanduiche natural. Mas uma noite inesperada (como todas as noites - o menino não ficava esperando nada), inescrupulosa (por que algo imaterial como a noite teria escrúpulos?), invejável (para todos aqueles que gostariam de viver situação semelhante) e quase ficcional (pois a memória do garoto viajaria infinitas horas novamente aquelas mesmas três horas que ali se passariam) mudaria a vida do jovem de cabelos muito pretos e camista de algodão cru. Uma menina (por que são sempre as mulheres as responsáveis pelas grandes mudanças de toda e qualquer vida?) atravessa a porta às duas da manhã, vestindo uma saia negra até o joelho, blusa de lã listrada de cores frias e um casaquinho azul escuro. Olha demoradamente todo o lugar, como quem examina um caso policial intricado, observa todos os cantos (as evidências), demora-se um pouco mais na mesinha onde se encontra o rapaz (o suspeito), mas logo passa os olhos até o lugar onde decidiu sentar-se. Acomodada, apoia o cardápio diante dos olhos e reflete tão profundamente quanto um filósofo diante de um tratado. O menino quedou-se enfeitiçado pelo mistério que debruçara-se a sua frente. Envergonhado pela própria indiscrição, desviava o olhar aflito sempre que ela tirava os olhos da folha de papel colorido. Mas tão logo podia, voltava a vidrar as pupilas nas mãos brancas que seguravam o igualmente pálido papel. Passaram algumas revoadas de minutos, ela fez seu pedido, ele ignorou totalmente o que estava bebendo. Até que ela, que já tinha reparado há bastante tempo naquele menino olhando-a fixamente, decidiu olhar-lhe nos olhos, pegá-lo de surpresa. Um arrepiar eletrizou a espinha do menino quando viu-se, qual animalzinho encurralado, diante dos olhos dela. Como lançando um dardo envenenado de emoção, ela piscou para ele, atingindo-o em cheio no peito. E então, assombrado, vê ela pegar um pedaço de papel de sua bolsa e rabiscar algo, depois dobrá-lo n´um pequeno aviãozinho e jogá-lo até ele. "Olá" - leu, com as mãos trêmulas. A princípio, ficou terrivelmente indeciso se se enterrava na crosta terrestre ou buscava refugiar-se na estratosfera. Tão surpreso por aquele contato repentino, que sua coragem para qualquer coisa se escondeu atrás da orelha. Mas, no segundo seguinte, pegou seu lápis preto e afiado e rabiscou também um "Olá", acompanhado d´um beijo desenhado... e fez a mesma brincadeira aeronáutica. "O que foi que você pediu? Parece bom.", foi o que ela respondeu. "Suco especial, morango batido com sorvete de morango", seguido de um desenho de sorriso extasiado que só ele sabe desenhar. Um sorriso dela e um pedido ao garçom. "Hmmm! Maravilhoso! Obrigado! Posso me sentar com você?" - Ele olhou timidamente do papel para ela, enquanto ela sorvia o suco com delícia. Fez que sim com a cabeça e ela então balançou sua saia enquanto mudava-se de uma mesinha para a outra. Um silêncio de estranhamento dominou os primeiros segundos, até ser quebrado pela corajosa e destemida menina - Qual é o seu nome? - Rodrigo - Bonito - E o teu? - Manuela. - Pura e santa como o nome? - A pergunta saiu sem querer e ficou envergonhado, ela também ficou enrubescida. - Não sabia que significava isso. Nunca tinha ido atrás. Como você sabe? - Ah, estranho, dias desses estava olhando significados e vi... e me aparece uma Manuela. - riu, nervoso. - Gostei tanto daqui - Ela comentou, mudando de assunto, para apaziguar os cristais de tensão que se criaram no ar. Ainda sob o efeito paralisante da timidez, ele limitou-se à um gesto com cabeça, concordando - Mas esse lugar me parece especial, do tipo magnético, que atrai as pessoas certas nos momentos certos. - disse ela - Pois se assim for, eu sou um minério de ferro e este lugar uma magnetita. Passo todas as minhas noites aqui. - Disse ele baixinho - E o que te traz aqui todas as noites? - A menina indagou - Ele olhou para ela um segundo, baixou o olhar, os dedos enrolando-se - Venho aqui por não ter nenhum outro lugar para onde ir. Nada nessa cidade me atrai, nem os teatros repletos de alegorias e mentirinhas nem os cinemas de realidades virtuais, não sei, talvez me falte uma companhia, só. Venho para cá, então. Aqui é minha casa onde não durmo. Não gosto de dormir, de qualquer forma. Venho para cá e fico até... vou ficando... uma hora eu me arrasto para a minha casa de dormir, recomponho-me, cumpro qualquer obrigação que me dá sustento e depois volto - Respondeu. Ela o olhou nos olhos, segurou sua mão por um instante e depois segurou o copo de suco e levou-o à boca. Ficaram em silêncio longamente, até ela quebrar a película espessa de ar com suas palavras - Eu encontrei esse lugar no momento que mais precisava... - os lábios se paralisaram... uma proximidade intangível surgiu entre cada uma das bolhas de açúcar e afeto...
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
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2 comentários:
q lindo,
ficou leve e saboroso...
Manuela...
=)
*-*
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