terça-feira, 12 de novembro de 2013

"Ditos Diários" II

Sábado, 15:13

Água, balde, shorte velho, blusa de casa, cabelo preso na nuca. Molha cuidadosamente cada cantinho do banheiro, esfregando com a atenção de quem arruma um ateliê, cada pedacinho é importante. A casa exige cuidado. E o cuidado exige companhia. Ele faz companhia, oferece palavras boas de ouvir, oferece aquela presença que preenche. Pega um bongo que estava guardado em cima do armário para batucar, para gingar os movimentos suaves dela. Ela arrisca um sambinha na água-com-sabão, arrisca respingos na roupa, nos cabelos. Não dá pra evitar. As pernas dela, suas linhas, suas cores, iluminadas por um frágil raio de luz que atravessa essas pequenas janelas de banheiro, seus suaves pelos salpicados de gotinhas que decoram dos tornozelos até pouco acima dos joelhos, os dedos magros firmes na sandália de dedo, a trancinha amarrada ao tornozelo esquerdo, verde escuro, cor de terra e laranja argila, não dá para não admirar, sente ele, sem dizer palavras. Que bom que você está aqui, diz ela. Estou tão feliz com tudo e compartilhar até momentos simples, cotidianos, invisíveis como esse é muito especial pra mim, confessa. Sabe que eu sinto o mesmo, declama ele. Sinto uma grande alegria na brincadeira de criança que é lavar o banheiro, que é fazer música com e para você, que é repartir um pouco do tempo assim, renovando. Minha vez! E assim, se levanta, entrega pra ela o bongo, põe as chinelas dela e põe-se a esfregar a pia, retirando as sujeirinhas que surgem sabe Ogum de onde! Ela repete o jogo, batucando com suas mãos molhadas o tamborzinho, vendo-o remexer-se com a ponta dos pés. Ela repete o ritual, deliciando-se com a figura, com a imagem, com a visão, com os sentidos. A boa companhia é uma mistura de ingredientes, e um deles é a beleza do encanto. O cabelo dele adora perturbar-lhe os olhos, o nariz, quando ele está nessas tarefas do lar e quando ele olha pra ela, ela logo sabe, deixa eu ajeitar seu cabelo, pondo ele novamente atrás da orelha. Aproveita a oportunidade para acariciar-lhe o rosto levemente, como sem querer, disfarçando a vontade que dá de parar tudo e lambuzar o moço. Mas alguma coisa os mantém naquela tênue linha do querer-bem sem tocar muito, sem beijo nem mais um pouco muito. O que será? Ela acha que o que eles tem é essa presença genuína que não pode virar apego, paixão, que se assim for, desmancha-se... ela sente/pensa que só ela morre de vontades, de tesão. Que de resto, a convivência amiga é tudo. Ele prefere não mexer em vespeiro, em ninho de passarinho, em toca de coelho. Tem medo de que se tocar onde não deve, abra universos desconhecidos. E assim ficam, apreciando-se, presenciando-se, compartilhando-se. Sempre com uma vontadizinha escondida, guardada pra depois.

I could die for you - Red Hot Chili Peppers - uma música

Cocoon - Björk - outra, para acompanhar