terça-feira, 30 de agosto de 2016

[Póstumo 2] A escuridão apraz de outras mentes sem...



Ela tentou seu melhor. Ou seu possível. O possível. (?). O que é o possível senão... não o que era ideal, ou preferível, talvez, o buscado, o imaginado e intencionado, ou o esperado, projetado, inventado ou sonhado pela/s outra/s partes/pessoas envolvida/s, mas pura, reles e (in)felizmente o >de fato<. O que foi, e por ter sido, não foi evitado, não foi de outra forma, senão da maneira que aconteceu, logo, inevitável, logo, o possível.

O possível, uma porta de vai-e-vem. Quando nos voltamos ao que “foi” possível, recordamos – respiração suspensa: às vezes com pesar, amargura ou amargor, às vezes com nostalgia, satisfação ou ausência ou presença de arrependimento. Quando miramos tudo que “é” possível – fôlego acelerado: o infinito, o sonho, o delírio, o querer, o desejo, o movimento incessante da vida, o fluir, o correr, o ir além... Até o impossível cabe no “possível” para frente.

Ela tentou. Mas tentar não basta quando encostada na parede, diante do pelotão. Tentar não importa, no final da outra língua, seca por lágrimas ou raivas, frustrações ou faltas, ávida por torcer as sílabas até sair-lhe o fel.  Tentar nem mesmo existe, no correr alado dos boatos, das histórias sem fim que agora se contam do tal (a)tentado.

Acontece que cada pessoa que passa pela porta de vai-e-vem da sua vida se torna acionista da sua história. E em certos mercados mais agressivos, cáusticos, ou mesmo violentos, quanto pior a história contada, mais ela se valoriza. E mais créditos e tons de veracidade ganha, e mais apoios e mais impacto e mais reconforto e mais... não sei.

E assim, não importa o tentado, o cuidado, o amado, o querido, o ouvido, o chorado, o esforçado, o sofrido, o suado, o cansado, o sonhado, o recebido, o crescido e perdido de ambas as partes – ela, e/ou sua história, está irremediavelmente queimada.

Até o dia em que se fez e/ou fará possível uma milagrosa reconciliação universal. Até o dia em que ela pode/puder apagar-se das mentes, memórias, lembranças e sentidos de toda e qualquer pessoa que, sem avisar-lhe, sem dar-lhe conta, sem minimamente comunicar-lhe, roubou-lhe dela, destruiu seu eu que a precede, sua pré-história, sua pós-história, sua auto-história, seu eu para as outras pessoas, seu eu em relação a qualquer pessoa.

Apagados todos os vestígios de si mesma em qualquer pessoa que ela deixou passar da sua varanda interior, permitiu sentar nas almofadas do seu íntimo, convidou para deitar com seus sonhos e salivas, enfim... qualquer pessoa que, então, chegou perto demais, se queimou com o fogo do possível, e resolveu apagar esse incêndio com agentes laranjas e bombardeios noturnos de napalm sobre a história dela.

E, assim, finalmente ganha novamente para si mesma, restituída e restaurada sua dignidade imaterial, imagética e historiográfica, viverá consigo e tão unicamente consigo, tão feliz quanto alguém que se perdera de si, ou fora tirada de si, e finalmente se renasceu.

13/05/16 – 4h23, passado, pretérito e póstumo diante de suas perspectivas futuras.

Libriana



Vou te dizer
Sou libriana
O que implica que gosto
De lugares agradáveis, luzes amenas,
Cheiros bons, companhia sincera
Decoração em bom tom
Sons bonitos, peles macias
Carinhos suaves e maresia
Loucurinhas recíprocas
Tesões sem medida
Boca mordida
E ronronar...


Por isso acho
Que o melhor lugar pra transar
É meu quarto, templo do prazer
Luz vermelha ou altar de velas
Incenso sensível ou óleos essenciais
Na superfície do corpo e no interior
Transbordamentos de gozo e de amor
Ainda que só naquele dia
Ou não...

 

Pode ser também o seu quarto
Seu caos de lençóis
Suas artes nas paredes,
Suas lembranças a sós
Sua cama suada, seu livro de cabeceira
Brincadeiras bamboleantes,
Comidas gostosas que gostas de fazer
Seus especiais modos de ser

 

Pode ser até no banheiro
Encharcando sua pele
Bebendo teu pescoço
Cheirando teu perfume
De pêssegos e avelãs
Ensaboando teus seios
Ossinhos aparentes e desejos
E produzindo espuma
Ao acariciar
Seu sexo doce
E te penetrar

 

Na grama? Na praia? Em casas alheias?
Não é o ideal, mas pode ser o jeito
No desespero noturno dos nossos anseios
Em segredo, discretamente, contendo gritos,
Sem deixar vestígios ou chamar atenção
Correndo riscos desnecessários e vãos
Prefiro lugares que deem mais liberdade
De andarmos nus pela casa e dançar
Roçando nossas peles e mamilos
Nossos tesões e ritmos
Nos demorar

 

Pra mim
Sexo é algo bonito
Uma especial linguagem do coração
Do corpo, da sensação
Das gravidades e sinceridades
Dos quereres e atrações
Uma possibilidade de encontro
Do que nos é sagrado
Uma chance de presentear
A pessoa querida com um orgasmo
A forma mais bela de estar e dialogar
A presença mais intensa que podemos
encontrar


Em algum lugar entre Juazeiro do Norte e Natal, 21h24, sábado, 27 de agosto...

Nó-e-té



Em minhas noites de insônia escrevo coisas de que me arrependo. Outras coisas que me inspiram e me devoram, que me inquietam com a intensidade do grito, frases e mais frases fugitivas dos calabouços que contenho, onde se escondem os mistérios que me engolem o fôlego.
 

Minhas noites de insônia são como drogas. Alteram minha percepção, meu senso de realidade e de possível, minha intuição do que é melhor, minha noção do que eu quero e do que é desprezível. Ligo para pessoas que não existem, digo o que eu não diria em sã consciência, vejo tudo se mexendo, metais e tintas, me dispo do ridículo e peço o impossível, mirabolando sonhos que gostaria de viver no dia seguinte.
 

Em certas noites de insônia destilo vícios. Toco-me como se nunca tivesse me visto e como se esse prazer fosse algo tangível. Como se minha pele e meus sentidos me bastassem, esse diminuto território moreno e já insensível pelo pouco que de outras peles teve notícia.
 

Meu abajur amarelo ao meu lado esquerdo tenta me ajudar, ser um abrigo. As inúmeras histórias em que me escondo fazem do tempo insone um pouco menos tenebroso. Mas há noites de insônia de puro suplício, em que as fantasmas dos amores passados me lembram os tempos idos e morridos.
 

A noite nunca é o bastante e a persistência faz chegar o sol. O sol que nasce parece despertar em mim o segredo insignificante que é achar-se só, quando há muito mais que isso... O sol da alvorada tem efeitos reconfortantes, anestesiando essa treva excessiva, aquecendo o corpo que outro corpo não aqueceu, restaurando o olhar no horizonte sem fim.
 

O sono exausto de quem percorreu a madrugada, o quarto serenado pela luz fria das primeiras horas, o esquecimento suave que esse cansaço impõe, a desistência branda nos braços do edredom... Ao final pode-se morrer, como se nunca tivesse tido insônia...

Em algum lugar entre o Juazeiro do Norte e Natal, 20h31, sábado, 27 de agosto.

Sel-viagem




Empurrada pelas forças maiores que ninguém sabe de onde vem nem o que as governa. Jogada na planície vasta, sem horizontes, do fim do mundo, do vazio de todas as companhias, do frio constante das ausências. Impelida a retomar um certo estado de ser mais bruto, rusticizada pela aspereza do exterior, insensibilizada pelos calos, pele feita couro pelo vento cortante e o desconhecimento de afago. Estômago selvageado pela necessária digestão de pedras emocionais, traumas e dores de todo tipo. As unhas esconderam-se ante camadas de seivas coloridas de vegetais perigosos, que ora seduzem-na para o envenenamento, ora minimizam seu desânimo pelo efeito brilhante do sangue de árvore. Prepara-se para fazer-se caverna por de trás de seus cabelos e feições fictícias. Acostuma-se com a recente e urgencial insensibilidade ante as ilusórias afeições. Seus dentes se tornaram aptos a dureza dos dias e sua língua não se conforma e sangra a solidão da noite. Bicha-loba cuja arte é guardar-se, reservar-se para o inverno profundo e não se sabe mais o quê. Porque o presente, de toda forma, não está nada respirável. Perdida em sua floresta temperada interior poderá dedicar-se às suas alquimias e invencionices que a si bastam. Restrita à máxima (ainda que aquém) autosatisfação que puder proporcionar-se. Não pode contar com nada além. Todas as seres que lhe cercam transmutaram-se em hostilidades e indiferenças cuja motivação e sentidos ignora. Vaga palidamente sem maiores pretensões que saciar fomes insones com o pouco que lhe está ao alcance. Reduzindo-se a sua completa insignificância, cujo sonho é ser o grão de areia que jaz na praia negra.

Em alguma estrada escura rumo ao Ceará austral. 19h58, quinta, 18 de agosto de 2016

MenoSer



“Por que não nos falamos mais? - Vontade”



“Tudo de bom que vivemos não significa nada diante do que foi ruim”



“Se quebrou e não existe mais”



“Esqueceu-se de trancar as portas, parece que o convidou, parece que já não se importa, parece que algo mudou”





Sinto minhas mãos semifortes, trêmulas, (in)certas. Uma fraqueza subentendida na esquina dos nervos misturada com uma (in)certeza, (quase)firmeza, de que consigo escrever minha vida da forma que eu quiser, precisar, buscar, ir.



Sinto o movimento dentro de mim fluir, como um rio que se manifesta de inúmeras formas, as águas caudalosas e potentes que seguem pelo meio e fazem O(s) caminho(s), as águas distraídas e rodopiantes que se perdem nas pedras, a água que se desvia para poças, se aquieta, vira laguinhos, a água que evapora, desfalece, desiste e vai embora, a água que retorna no contrafluxo enigmático e frio que existe no fundo, a água bebida pelo entorno, pela terra, pelas seres todas, verdes, dinâmicas, sedentas, a água que soma, que dança das nascentes e segura na mão e segue junto, a água que chega ao Todo, ao Mar, ao Infinito, ao Mais, a água que congela no frio, parada, melancólica, vazia.



Nunca me senti tão frágil, vulnerável, ferida, morta, despossuída, fraca, hipersensibilizada pelos malmequeres dos dias e noites de dor e de perda, esgotada e exaurida por tudo que se foi, tudo que partiu, tudo que morreu, tudo que esvaziou. Ao longo da vida vivenciei inúmeros processos de demolição.



[Metáfora que remete a uma infância brincada com joguinhos de peças remontáveis na forma que a imaginação quisesse, e que de tempos em tempos decidia desmontar tudo tudo que havia criado, cansado de tudo, querendo outras possibilidades pra tudo, destruía tudo e sobre a montanha de peças reconstruía tudo de novo]



E em cada processo de demolição sentia que sobrava menos, que todas aquelas certezas, conceitos, ideias, sonhos, materialidades e imaterialidades do meu eu e do meu mundo ruíam, caiam, destruídos e desfeitos, e então me lançava na árdua e exaustiva tarefa de me (re)criar a partir das ruínas e das invenções de mim e de tudo que naquele instante se fazia presente e intenso, significativo e inevitável.



A cada demolição sobrava menos, e me sentia mais apurada, concentrada, consciente dos meus movimentos e fluxos, meus caminhos e intuições, meus inconscientes e loucuras, meus sonhos e utopias. E nisso me fortalecia, crescia, ampliava, expandia, ia, mais.



Mas desta vez.



Desta vez sinto-me menos.



Contudo, hoje me sinto mais resiliente do que nunca antes, mais capaz e eficaz de cuidar-se, de restaurar-se diante de todos os golpes, choques, ataques, mortes, frios, dores, paixões, impactos, quebras, perdas, danos, aprimorando-se e aprofundando-se nesse caminho de e em si, desse autoenraizamento, autotratamento, essa autopoiese, cíclica, transformadora e emancipadora.



É o momento da minha vida em que consigo me cuidar da forma mais plena e ativa, constante e decisiva, ligeira e intensa. E considerando isto, toda a fraqueza, debilidade, dor e morte que tenho vivenciado não tem me impossibilitado, imobilizado, impedido de seguir outros movimentos que existem, florescer onde é possível, cultivar o que dá, o que é, o que mais.



A inevitável contradição. Tão frágil, mas tão segura de mim e em mim. Tantos cortes/riscos, e tão desbravada e livre. Tão ferida, e tão florescida. Num caos tempestade louca que luta por desorganizar e desmanchar as inúmeras teias e redes de apoio, cuidado e construção coletiva e individual que teci na vida. Sofro, mas sigo. Dói, mas consigo. Sangro, mas sinto que a Vida está aqui, está sendo aqui, é aqui, é isso, tudo, muito, tanto.



Casa Caracol, Natown, 19h46, terça-feira, 30/08/16.