Nossa História Cagada e Cuspida
Antes pensavasentia que nossa história era nossa,
intocável, fonte inesgotável de aprendizados, autocompreensões e autosentidos,
fios entrelaçados e misturados de aventuras, desventuras, dores e alegrias,
medos e superações, transformações e paixões, utopias e realizações.
Mas nosso passado não é apenas nosso. Cada pessoa que passou por esta história tem parte nesse universo e pode, inclusive, destruí-lo. Ou melhor, degradá-lo, distorcê-lo, ou simplesmente interpretá-lo e narrá-lo de forma imensamente diferente do que você imaginava, reinventando-o, criando ou contando um passado seu (e também desta pessoa) de forma muito distinta da sua maneira de lembrar, ver e contar essa história.
A pessoa humana e sua linguagem são dois elementos muito complexos e delicados. A primeira, sujeita do processo linguagem, é um ser nebuloso, complexo e complicado, que vive imerso em um sistema político e econômico (que eu defino como sistema de relações de poder e dominação) repressivo e opressor (machista, racista, explorador, sexista, monogamista, especista, capacitista e gordofóbico) que nos fragiliza, nos condiciona a culturas de dominação e dependências, nos impõe e ensina fraquezas e carências, nos programa a nos sentirmos isolados e infelizes, nos obriga/induz/ensina a nos relacionarmos como coisas e consumos.
Estas pessoas humanas, nestas condições adversas, vivem suas vidas, estabelecendo relações de vários tipos entre si, afetivas, fraternais, de trabalho e parcerias, partilhas e chantagens, competições, invejas e acusações, expectativas e exigências, demandas e ofertas, controles e libertações, compras, vendas e gratuidades.
E a linguagem humana é um processo igualmente complexo e delicado. Expressar o que quer que seja requer compreensões do que queremos expressar, como queremos expressar, por que meios, de que formas, com quais tons, para qual/is público/s, levando em consideração (ou não) a maneira da outra pessoa compreender, sua possibilidade, disponibilidade e/ou interesse de ouvir, interpretar, compreender e dialogar.
Quantas vezes sabemos de fato o que estamos sentindo e pensando no momento em que nos expressamos, seja numa conversa, num texto, num relato, ou seja lá qual circunstância e suporte do diálogo e/ou troca? Quantas vezes encontramos as palavras mais próximas (existem as palavras exatas para o que queremos dizer? Existe mesmo exatidão no que estamos sentindo e pensando?) da intenção, informação e sensação que queremos compartilhar? Quantas vezes a pessoa com quem nos comunicamos está de fato preparada, aberta, disponível, atenta para ouvir (sem pré-julgar) o que estamos dizendo? Quantas vezes ela interpreta exatamente o que intencionamos (se é que tínhamos essa clareza do que exatamente intencionávamos) ou interpreta algo inteiramente ou parcialmente diferente? Quantas vezes nossas falas e expressões foram alteradas, confundidas, minimizadas ou exageradas por sentimentos mal compreendidos, mal digeridos, ou até mal desapercebidos?
Ou seja, só algumas “problematizações”, “obstáculos” ou “desafios” para uma comunicação minimamente eficaz ou satisfatória entre as pessoas.
Certa vez ouvi que “a distância entre o que se quis dizer, o que se disse, o que se ouviu e o que se entendeu/interpretou é de muitos abismos”.
Imagina só a complexidade das relações humanas levando em conta apenas esses dois elementos, um contexto extremamente prejudicial ou mesmo (quase) impossibilitante para nossa autonomia, nossa autocompreensão, nossa autorealização, nosso bem-viver saudável, digno, amoroso, livre e libertador e nossa adequada autoexpressão. E um processo de comunicação entre as pessoas tão complexo e passível de erros, para não dizer muito mais propenso ao erro do que qualquer outro resultado.
E retomando o primeiro ponto, sobre nossas histórias, imagina então nossas histórias contadas por outras pessoas a partir de todos esses problemas e equívocos de linguagem, de sentimentos complexos, interesses ou intenções problemáticas, dúvidas e ou certezas questionáveis, interpretações preconcebidas e incompletas, entre tantos outros elementos, além das lucanos e ruídos dos disse-me-disse.
De repente nos damos conta de que nossa história está na lama. Cagada e cuspida por pessoas desconhecidas, sem nome, cujos relatos dessa história nem mesmo conhecemos nem nos são relatadas, apenas os boatos e/ou repercussões negativas em nossa vida. De repente nos damos conta de que nossa história não é mais nossa. Não sabemos mais o que “fizemos” (segundo as diferentes versões que circulam a nossa revelia e que nem ao menos temos a dignidade de receber) nem o que “somos”, mas temos sim as acusações (de acusadorxs anônimxs) e condenações (sumárias, sem direito de defesa e/ou resposta, sem ouvir o nosso lado, sem nos dar voz ou vez) que fatalmente já concluem e desfecham (e fecham) até mesmo nosso próprio futuro. Todos os nossos próximos passos e atitudes já estão pré-taxadas devido a este “histórico” escrito por mãos invisíveis. E aí?
Se algo fizemos de “errado”, “condenável”, “corrigível”, o que podemos fazer a respeito? Que injustiças (por falta de palavra melhor – veja só) podem ser cometidas na medida em que um erro (ou simples atitude) é contado de forma exacerbada ou minimizada, reducionista ou distorcida? O que significa a manipulação dos acontecimentos? Existe uma versão única e oficial? Ou cada vivência é inevitavelmente fragmentada pelos diversos pontos de vista, leituras e interpretações possíveis, nos restando buscar reunir o maior número possível desses “pedaços” do vivido e tentar montar histórias mais completas e complexas?
Uma vez que nossa história e nosso “eu” público e imaterial (que se configura em nossa reputação, nossa identidade visível e reconhecida) é depredado e/ou difamado, existe retorno possível? Existe resolução possível de “mal-entendidos”? Todos os relatos e todas as pessoas uma vez envolvidas nessa teia pegajosa conseguem ser identificados, resgatados e reparados?
É preciso lembrar que o nosso próprio relato e história sobre nós mesmas talvez não seja mesmo nem possa ser soberano sobre os demais relatos sobre nós. Todos os relatos podem e devem ser reconhecidos, ouvidos, considerados, em busca dessa complexidade que chamamos realidade, existência, acontecimentos. A questão que se coloca é: E quando, de todos os relatos e histórias sobre nós, o nosso próprio relato/história é o único ou principal desconsiderado, suprimido, ignorado e deslegitimado na construção dessa teia histórica de nós mesmas? Quando nos tornamos reféns e condenadas por essas vozes alheias, tantas vezes invisíveis ou terceirizadas, e nos resta nas mãos apenas essa “minha história sem mim” (ou sem a minha visão/narração dela)?
Muitas questões. Muitos abismos. Muitas pessoas feridas. E matadas.
13/05/16, 03h02, após pedras jogadas e janelas da memória despedaçadas, fogueiras acesas para queimar um corpo assassinado...
Ouvindo agora, diante das cinzas - Infinity - The XX
Mas nosso passado não é apenas nosso. Cada pessoa que passou por esta história tem parte nesse universo e pode, inclusive, destruí-lo. Ou melhor, degradá-lo, distorcê-lo, ou simplesmente interpretá-lo e narrá-lo de forma imensamente diferente do que você imaginava, reinventando-o, criando ou contando um passado seu (e também desta pessoa) de forma muito distinta da sua maneira de lembrar, ver e contar essa história.
A pessoa humana e sua linguagem são dois elementos muito complexos e delicados. A primeira, sujeita do processo linguagem, é um ser nebuloso, complexo e complicado, que vive imerso em um sistema político e econômico (que eu defino como sistema de relações de poder e dominação) repressivo e opressor (machista, racista, explorador, sexista, monogamista, especista, capacitista e gordofóbico) que nos fragiliza, nos condiciona a culturas de dominação e dependências, nos impõe e ensina fraquezas e carências, nos programa a nos sentirmos isolados e infelizes, nos obriga/induz/ensina a nos relacionarmos como coisas e consumos.
Estas pessoas humanas, nestas condições adversas, vivem suas vidas, estabelecendo relações de vários tipos entre si, afetivas, fraternais, de trabalho e parcerias, partilhas e chantagens, competições, invejas e acusações, expectativas e exigências, demandas e ofertas, controles e libertações, compras, vendas e gratuidades.
E a linguagem humana é um processo igualmente complexo e delicado. Expressar o que quer que seja requer compreensões do que queremos expressar, como queremos expressar, por que meios, de que formas, com quais tons, para qual/is público/s, levando em consideração (ou não) a maneira da outra pessoa compreender, sua possibilidade, disponibilidade e/ou interesse de ouvir, interpretar, compreender e dialogar.
Quantas vezes sabemos de fato o que estamos sentindo e pensando no momento em que nos expressamos, seja numa conversa, num texto, num relato, ou seja lá qual circunstância e suporte do diálogo e/ou troca? Quantas vezes encontramos as palavras mais próximas (existem as palavras exatas para o que queremos dizer? Existe mesmo exatidão no que estamos sentindo e pensando?) da intenção, informação e sensação que queremos compartilhar? Quantas vezes a pessoa com quem nos comunicamos está de fato preparada, aberta, disponível, atenta para ouvir (sem pré-julgar) o que estamos dizendo? Quantas vezes ela interpreta exatamente o que intencionamos (se é que tínhamos essa clareza do que exatamente intencionávamos) ou interpreta algo inteiramente ou parcialmente diferente? Quantas vezes nossas falas e expressões foram alteradas, confundidas, minimizadas ou exageradas por sentimentos mal compreendidos, mal digeridos, ou até mal desapercebidos?
Ou seja, só algumas “problematizações”, “obstáculos” ou “desafios” para uma comunicação minimamente eficaz ou satisfatória entre as pessoas.
Certa vez ouvi que “a distância entre o que se quis dizer, o que se disse, o que se ouviu e o que se entendeu/interpretou é de muitos abismos”.
Imagina só a complexidade das relações humanas levando em conta apenas esses dois elementos, um contexto extremamente prejudicial ou mesmo (quase) impossibilitante para nossa autonomia, nossa autocompreensão, nossa autorealização, nosso bem-viver saudável, digno, amoroso, livre e libertador e nossa adequada autoexpressão. E um processo de comunicação entre as pessoas tão complexo e passível de erros, para não dizer muito mais propenso ao erro do que qualquer outro resultado.
E retomando o primeiro ponto, sobre nossas histórias, imagina então nossas histórias contadas por outras pessoas a partir de todos esses problemas e equívocos de linguagem, de sentimentos complexos, interesses ou intenções problemáticas, dúvidas e ou certezas questionáveis, interpretações preconcebidas e incompletas, entre tantos outros elementos, além das lucanos e ruídos dos disse-me-disse.
De repente nos damos conta de que nossa história está na lama. Cagada e cuspida por pessoas desconhecidas, sem nome, cujos relatos dessa história nem mesmo conhecemos nem nos são relatadas, apenas os boatos e/ou repercussões negativas em nossa vida. De repente nos damos conta de que nossa história não é mais nossa. Não sabemos mais o que “fizemos” (segundo as diferentes versões que circulam a nossa revelia e que nem ao menos temos a dignidade de receber) nem o que “somos”, mas temos sim as acusações (de acusadorxs anônimxs) e condenações (sumárias, sem direito de defesa e/ou resposta, sem ouvir o nosso lado, sem nos dar voz ou vez) que fatalmente já concluem e desfecham (e fecham) até mesmo nosso próprio futuro. Todos os nossos próximos passos e atitudes já estão pré-taxadas devido a este “histórico” escrito por mãos invisíveis. E aí?
Se algo fizemos de “errado”, “condenável”, “corrigível”, o que podemos fazer a respeito? Que injustiças (por falta de palavra melhor – veja só) podem ser cometidas na medida em que um erro (ou simples atitude) é contado de forma exacerbada ou minimizada, reducionista ou distorcida? O que significa a manipulação dos acontecimentos? Existe uma versão única e oficial? Ou cada vivência é inevitavelmente fragmentada pelos diversos pontos de vista, leituras e interpretações possíveis, nos restando buscar reunir o maior número possível desses “pedaços” do vivido e tentar montar histórias mais completas e complexas?
Uma vez que nossa história e nosso “eu” público e imaterial (que se configura em nossa reputação, nossa identidade visível e reconhecida) é depredado e/ou difamado, existe retorno possível? Existe resolução possível de “mal-entendidos”? Todos os relatos e todas as pessoas uma vez envolvidas nessa teia pegajosa conseguem ser identificados, resgatados e reparados?
É preciso lembrar que o nosso próprio relato e história sobre nós mesmas talvez não seja mesmo nem possa ser soberano sobre os demais relatos sobre nós. Todos os relatos podem e devem ser reconhecidos, ouvidos, considerados, em busca dessa complexidade que chamamos realidade, existência, acontecimentos. A questão que se coloca é: E quando, de todos os relatos e histórias sobre nós, o nosso próprio relato/história é o único ou principal desconsiderado, suprimido, ignorado e deslegitimado na construção dessa teia histórica de nós mesmas? Quando nos tornamos reféns e condenadas por essas vozes alheias, tantas vezes invisíveis ou terceirizadas, e nos resta nas mãos apenas essa “minha história sem mim” (ou sem a minha visão/narração dela)?
Muitas questões. Muitos abismos. Muitas pessoas feridas. E matadas.
13/05/16, 03h02, após pedras jogadas e janelas da memória despedaçadas, fogueiras acesas para queimar um corpo assassinado...
Ouvindo agora, diante das cinzas - Infinity - The XX
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