Tudo que vivemos nos afeta. Há afetações ligeiras e que passam desapercebidas e há afetações que se infiltram na geografia do ser como águas que procuram os lugares mais profundos e subterrâneos, acumulando-se em poços e câmaras. Há afetações que movem, outras que paralisam, algumas que causam prazer, outras dor, algumas que estimulam, outras deprimem.
O que chamo de Afeto são as afetações que geram envolvimento, como as raízes envolvidas em um solo vivo, gerando conexões, estabelecendo inúmeras trocas, diálogos, relações profundas, fortalecendo tanto a planta quanto todas a diversidade de vida no meio. Eventualmente vivemos afetos profundos, intensos, que permeiam as inúmeras dimensões do ser, que são múltiplos, repletos de significados, variados em experiências, capazes de chegar a camadas mais difíceis de acessar de nossos interiores. E recorrentemente chega o tempo em que a origem desse afeto transforma-se, afasta-se, ausenta-se. Quando isso acontece e essa planta, antes tão nutrida, subitamente morre, é difícil conseguirmos nos ver livres de todos os efeitos que ela nos causa, mesmo finda a fonte ou ponte do afeto.
Passamos a lidar com abstinências, faltas, fantasmas, ânsias de retorno ao estado anterior, ainda que tal não seja possível ou, às vezes, desejável. Todas as camadas percorridas pelas raízes, cada sensação, experiência, sentido, sentimento, elemento da vida que ficou conectada por essas ramificações, começam a demandar o que já não há mais. Tantas associações agora sem destino ou maneira de continuar existindo, mas, por não saber como desfazer-se, persistem, latejando dores, angústias, ânsias e desgostos.
Em muitos casos a fonte da afetação ausenta-se no sentido pleno, fisicamente. Não há mais nenhum contato. Nestes casos, a distância e o tempo, aos poucos encarregam-se de apodrecer todas essas raízes, para renovar o solo e torná-lo fértil novamente para novas vidas-afetos. Mas em outros casos, a fonte da afetação continua presente, ainda que não mais disposta a exercer o afeto. Nesses casos, a renovação é mais desafiadora, posto que o ser corre mais o risco de manter-se na ilusão de retorno, ante a presença, e fere-se constantemente, pela frustração da não reciprocidade evidente na presença-ausente.
Como continuar convivendo com alguém que outrora nos provocou tanto afeto e agora já não nos oferece o que antes tanto nos impactou? Como tornar esses contatos menos dolorosos, fazer com que eles não ativem as ilusões e pulsões tristes da vontade de retorno, do ressentimento, do desgaste?
Recentemente me ocorreu a possibilidade do fenômeno dos afetos desassociados. Um mecanismo subjetivo de filtro/bloqueio, em que se obriga, conscientemente, que as experiências com a pessoa que antes lhe provocara afetos, não possam gerar novas associações-marcas. Canalizar essas afetações para um lugar no inconsciente dedicado ao descontínuo, um espaço que aceite cada gesto e momento de forma isolada e aleatória, que não aceite as tendências de criar redes, conexões, construções. Um lugar atenuador de emoções, que obriga a redução drástica de cada efeito, que fragmenta e isola toda energia que chega, tornando-a o mais superficial e inofensiva possível. Uma espécie de anestesia da experiência, que quando ativada, impede qualquer intensidade, que corta qualquer tentativa de raiz e que não permite a ligação daquele instante com as antigas raízes em processo de decomposição. De modo que aquela trama complexa e profunda de outrora consiga, no seu tempo, desfazer-se, sem que esses processo seja constantemente interrompido e/ou perturbado pela presença-ausente da pessoa que antes tanto fizera parte e que hoje está apenas nas margens, às vezes nem isso, mas ainda ali, no campo dos sentidos.
Imagino este lugar no inconsciente, a forma desse mecanismo de proteção para permitir a autorregeneração, como um labirinto, um lugar deliberadamente confuso, um tanto obscuro, cheio de reflexos e caminhos tortuosos, onde cada momento vivido é alocado de forma aleatória e fragmentada, de maneira que nunca consiga chegar no lugar onde as raízes antigas estão desfazendo-se. Um lugar onde nós mesmas não consigamos nem queiramos chegar, onde essas experiências podem ser prontamente esquecidas, perdidas e lá sumirem nesse vazio e escuridão, posto que não há mais a se fazer com elas...
Uma maneira de suportar e superar a ausência-presente, o vazio com o qual, paradoxalmente, precisa-se conviver...
Uma maneira de não enlouquecer nos loops de pensamentos e sentimentos repetitivos, viciados, que não levam a lugar nenhum, pois que não há mais destino a seguir... Uma maneira de estancar a dor, a perda, o lento desfazer de raízes que antes nutriam e provocavam tanto bem e subitamente morreram...
07 de fevereiro de 2021
20h, na Morada do Beija Flor, Comunidade Campina
Ao som do álbum Conatus, de Joep Beving