sábado, 26 de outubro de 2013

Só agora


Como se sentes, perguntou. Me sinto assim, assim e assim, respondeu, dando-lhe beijos, desconversando. Beijo e só. Um instante, que ativa na pele brilhos e depois se apaga. Mas então resolveu lhe dizer. De ontem pra hoje reescrevi algumas coisas de mim, alguns despropósitos, desconstruindo umas insistências. Achei mesmo que você nem vinha, já tinha plano b, c e d. já tinha desistido do b e do c, mas o d me parecia muito bom. Entendi algo hoje deitado na cama, sem me levantar. De ontem para hoje eu era apenas o despropósito e a insistente desemoção que acaba comigo. Até aquele dia eu estava bem, muito bem. E para acabar com a monotonia do estar-bem, me caio em mim, desfolhando um pouco, chafurdando na alma. Mas acordei limpo, sentindo um ar melhor, concentrado, como um suco feito da fruta e sem água. Um pouco chateado por meus processos criativos descobritivos madrugada afora acabarem com meus planos matutinos, mas, recomposto. Então o telefone toca e não era mais um lembrete, mais um alarme, mais um espasmo eletrônico que eu quase ignoro. Era tu. Como me sinto? Sinto-me. Um pouco de cada vez. E cada vez, outra coisa. Surpreendendo-me com o que me surge de ser. Desesperando, ato de não-esperar enquanto ação. Desexistindo, ato de largar o existido e ir. Desatingindo, desaninhando, desensibilizando. Sei lá. Isso agora, neste instante. Tudo ele dizia enquanto a olhava, enquanto ela o olhava, enquanto o vento de ventilador soprava sem muita vontade, a cama antiga suportava seus pesos e as pernas, sem querer saber de nada disso, apenas se emaranhavam. Sem coragem, me acostumando a não contar, a não ter certeza. Ontem escrevi: estranho não saber quando será a próxima vez que vou te encontrar, ver, abraçar, se será hoje, essa semana, esse mês, como será, perto ou longe. Tudo incerto, nas mãos do mar (aberto). É estranho. Não há nenhuma continuidade. A incerteza é plena, a única certeza. Ter carinho hoje não implica qualquer coisa amanhã. Tudo fica para trás e para frente nada. É estranho. Esqueço. Escrevi, na verdade, ao longo da semana, terminei ontem, não sei que horas. Essa falta de construção, esse castelo de areia que são nossos encontros, me acostumo com eles, antes que o mar venha e faça a praia outra de novo. É assim. Estava pensando sobre quando e com quem se há de construir de novo. Naquele filme que assisti ontem tinha cenas tão bonitas de olhos que se constroem mútuos, recíprocos, que se vê bem que cada olhar sedimenta, fortalece, faz algo maior, no olhar seguinte, olha-se mais além, sobre tantos olhares e tantos estares que se seguiram. Nosso olhar é apenas um agora. Sem antes nem depois. O antes é um antes. Um belo antes, um antes querido, que muito bem alegra. Mas é antes. Tá lá, antes. O agora não é uma construção do antes. É um novo agora, outro. Sem depois, só agora. E estás atrasada. Levantaram-se, ao som de música antiga, para um lanche reconfortante de panetone com doce de leite e suco de goiaba docinho. Um pouco de pressa, um abraço mais, e foram sobre duas rodas para deixá-la na praça dos anjos quebrados. Ainda mais abraços para ela naquela noite.

Buenos Aires - Dom La Nena - uma música

Ou

Adónde vás? - Paté de Fuá - outra

Após assistir - Teus Olhos Meus

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