quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Ensaio com ela - Contos de Recife (III)




Sexta, dezoito do nove: Ela o acordou de oito e meia por telefone com um "bom dia, carinho". O resto da manhã transcorreu em tarefas atrasadas, urgentes, inevitáveis antes da viagem que chegou quase que sem se notar. Ela, que era morena de cabelos e de nome, tinha um amor familiar para cultivar nas primeiras horas do dia antes de poder partir também. Uma correria danada de dois cheios de afazeres, que no último instante conseguem chegar, com o tempo contado, quase ido, na rodoviária. Os últimos dois lugares do ônibus no último horário possível - quase um milagre, quase um absurdo. Mas, porém, contudo, separados - um na frente e outro atrás. "A gente pede pra um deles trocar pra gente ficar junto", disse ele. "sério que você vai fazer isso?", ela duvidou, "lógico!". Mas as duas criaturas mau humoradas tinham um certo fetiche por janela, coisa da velha infância ou sei lá. "E agora?" e assim que o ônibus partiu ele caminhou pelo corredor para ver se havia cadeiras livres 'na janela'. E não é que tinham? Três! "Mas e se subir alguém?", indagou o homem que estava na cadeira ao lado da dele; "bem, vamos esperar". E subiu! Maldição. Duas, três, quatro pessoas. Era o fim. Mas ainda assim, foi conferir mais uma vez e 'eureka!', ainda uma na janela, a primeira cadeira. Enfim juntos... mas pairava um certo estranhamento de distância. Tentaram dormir (afinal, cada um dormira só um fim de madrugada), primeiro separados, depois pernas umas sobre as outras (era o espaço que era pouco ou outra coisa?), e foram se achegando, aos poucos. E sem conseguir dormir. E as palavras foram surgindo, histórias, conversas, papos do dia-a-dia. Mas aquela sensação, pra ele, de afastamento, o incomodava, como uma pequena ferida que teimava em arder. E assim, se afastava mais, olhava pela janela, ausentava-se enquanto conversava, sentindo que aquela seria uma viagem doída, bem doída - tão perto, mas tão longe. "Escrevi uma vez que sempre que te encontro, é uma reviravolta, um virar de cabeça pra baixo, uma volta completa perdendo o próprio eixo... pois é... essa semana está a mesma coisa... te encontrei duas vezes, na primeira te sentia, estávamos perto, tudo estava tão suave, intenso, interior... e na segunda, nada... queda, ausência, novamente... e sinto o mesmo agora... que difícil, hein!" sentenciou ele e se seguiram cinco, seis horas de exploração de cavernas, algumas já bastante percorridas, reexaminadas, tentando se entender o que passou despercebido, outras surgindo, inusitadas, difíceis, escorregadias. "Acho que naquele momento eu perdi a confiança, a entrega a você... como se não pudesse mais me deixar atingir por você, pelo que quer que você sinta" ela confessou e um 'clic' disparou nele. Era algo que ele pressentia, intuia, que tinha algum tipo de certeza mas que não tinha certeza - uma perda irrecuperável, um caminho sem volta. "É isso, você não se deixa atingir por mim, não dá para chegar, não dá para encontrar", concluiu. "Para viver o que você queria viver, o que poderíamos viver - juntos, faltou maturidade, ter a coragem de fazer o que era preciso para que não nos machucássemos (tanto?), que respeitássemos os caminhos um do outro, as fragilidades, as necessidades, a construção individual... e nossa..." ela completou e mais um 'clic'... a palavra maturidade remeteu a uma infinidade de sensações, lembranças, aprendizados, conclusões, transformações nele... um estado final ou um processo permanente? Como estaria agora? Naquele momento realmente não se sentia maduro (?) e ele concordava com tudo que ela dizia, aceitava doloridamente... maturidade seria respeitar o próprio ritmo, as próprias limitações para não passar por cima de tudo (em especial do que se ama) em função de um universo caótico, seria ir aos limites da sinceridade consigo e com o outro, o que significa ter calma, pois sinceridade é também entender bem o que se está sentindo, o que se quer, o que se deseja e necessita, para então expressar nas relações... "Aiai", pensou ele, "um carrossel essa minha vida, ora perco o que acontece porque fico refletindo, medindo, calculando demais, ora perco porque me jogo sem pensar, sem considerar o mínimo, o máximo, o óbvio, o mais querido e sagrado que está diante de mim/nós. Agora volto, reinicio, recompreendendo/sentindo o refletir/sentir, o voar/cuidar, o cair/querer. Maturidade - a fruta cai, morre e germina muitas vezes em sua vida... estou aprendendo". O ônibus atrasou muito, chegando um hora e meia depois do horário previsto e eles já estavam atrasados quando pisaram naquela rodoviária longínqua. Correram, desta vez acertando o caminho, sem errar o ônibus (pois um ano antes foram bater em Olinda por descuido bobo de recém-chegados), mas ainda tão absortos em conversas - agora mais leves - que quase não se deram conta que já era hora de descer! Um dois três, no albergue rapidamente se arrumaram e foi preciso um táxi para não perderem o horário. Um dois três, chegam! E ainda deu tempo de restabelecer o corpo com uma boquinha, descobrir tesouros naquela feirinha subterrânea, dar voltas e filas de pulseiras roxas, azuis, amarelas para entrar no teatro onde aconteceriam os shows principais daquele Festival tão querido para ele, marcante em suas formas de ser. Lá dentro, sentam-se estrategicamente posicionados para ver tudo de pertinho - prontos para pular pra junto do palco. O primeiro a se apresentar era "café com leite"... estava ali só para passar o tempo e naquele momento eles estavam juntos, bem perto, que até as bocas quiseram estar mais, desfrutar da delícia que só elas sabiam fazer/aquecer/ser... beijos sinceros de amor raiz, querer flor, estar céu e mar... E além de beijos, carinhos, pernas e mãos, a noite ainda reservava comédias cruzadas de um lado e de outro, de uma figura engraçadíssima que parecia estar debutando seu primeiro show e sentia-se dona de sua cadeira cativa diante do espetáculo: ah como ela ficou amargurada quando descobriu que não são bem assim as regras do jogo, principalmente quando todos deram um salto e cobriram sua ingênua visão sentadinha... é preciso enfrentar a plateia para vivenciar um show ao máximo; o moço de olhos grandes e vivazes, cabelos negros partidos ao meio, alongados em curvas nos lados da testa eram um riso a parte, pois seus olhares já diziam tudo. O segundo a se apresentar era ele: a expressão musical, sonora, sensitiva, espiritual, mais próxima do que foram os primeiros e mágicos momentos dos dois - como ouvir aquela voz, aqueles versos, sem estar automaticamente ao lado dela? Sem segurar-lhe a mão? Tomar banho com ela, dormir agarrado ao seu corpo a luz de velas e envoltos em incenso? Ela sorria, ouvia atentamente, chorou por instantes (seria ela se não houvesse uma lagrimazinha ao menos?) e ele, além de ouvir e sentir, abraçar e degustar cada centímetro de suas peles que se tocavam, se apoiavam, se permitiam, não resistiu e a fotografou, os fotografou, para memorizar aquele instante em cor e luz. Os dois show seguintes foram gostosos, de novas surpresas, voz conhecida e charmosa e ela deitada em seu colo, olhos fechados, com os mais longamente belos cílios que ele jamais pode suportar - sucumbe diante deles sempre. Ao fim, uma cálida sensação de bem-estar, de um dia repleto de vida, alegria, aprendizado e estar... depois da pequena missão impossível de conseguir um táxi naquele mar de gentes e telefones, partiram para o último ritual: a sanduicheria da madrugada mais gostosa que já se inventou - esbaldaram-se naquela camada polar de cream-chease e um suco de laranja estupidamente gelado e voltaram caminhando ao nascer do sol, um azul de sábado "capim limão"...

Capim-limão - Cícero - essa música

Heart to Tell - The Love Language - música

Um comentário:

Isa dora disse...

Lindo, meu bem!
"seria ela se não houvesse uma lagrimazinha ao menos?" kkk