terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Na Natureza Selvagem


Campos de macieiras... frondosas copas de mares verdes... salpicados de grãos floridos de primavera... uma primavera eterna, inebriante, exalando perfumes e prazeres... o prazer em estar vivo, viva, sentindo a fricção entre as folhas e o vento, entre o sol e a clorofila, entre a terra e a seiva... Constelações infinitas de flores... uniões, comunhões, multidões de pétalas, estilos, estigmas, anteras... pólens permeando o ar, passeando pelo ar em insetos apaixonados... e o enxame voa em frenezi, incessante, incansável, imortal, percorrendo e amando cada flor, cada centímetro de carne floral adocicada, sorvendo o néctar, desvendando a essência... infindavelmente... flores-de-sem-fim... flores de maçã... gestos de amor naturais e celestiais... noites, dias, noites, dias... sol e lua diante do espetáculo particular do encontro da flor, cada momento, êxtase... é preciso transbordar para não perecer, não se pode conter a primavera, não se pode conter a natureza da existência e da liberdade de ser... falta fôlego, as energias explodem com os impactos de corpos e emoções... passam as estações... sobe o verão... a exaustão se aproxima junto ao outono... e no inverno cessa... até a próxima primavera...

E além do nascer e do pôr-do-sol, fadas e anjos trançam a noite com o dia, tornoando-os ininterruptos, proibindo que o sangue das veias de toda a vida páre, deixe de vibrar, latejar, expandir e sangrar... seres hiperestésicos e eternos, que brilham como as combustões solares. Tranças vermelhas e azuis da cor da chama que envolvem os corpos surreais desses artesãos de luz e vida... e que revelam-se ao mundo através do brilho tênue da flor de maçã, cujas pétalas são tão brancas que iluminam a inquietude e a escuridão...

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009


Uma semente que flutua nas ondas sem âncoras para fixar-lhe. Talvez um galho robusto esteja ainda enlaçado no seu interior, mas essa lembrança da raiz é cada vez mais frágil... fará sempre parte, mas há algum tempo já não está preso... mas...não, talvez não seja uma semente, mas o espírito de semente, de quem nasce, de quem prossegue. Erra por vários dias pelo mar (de vida), arrasta-se até uma praia original e tenra, chega até as camadas interiores, amando cada nutriente, celebrando uma eufórica comunhão, apega-se, floresce, desenvolve, evolui, alegra-se, dá frutos, transmuta-se novamente para a semente que cai na areia, descendo suavemente até as ondas para onde volta a navegar... até nova praia, novas formas e nascimentos...

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Dois


Como dois estranhos,
cada um na sua estrada,
nos deparamos, numa esquina, num lugar comum.
E aí?
Quais são seus planos?
Eu até que tenho vários.
Se me acompanhar, no caminho eu possso te contar.
E mesmo assim, eu queria te perguntar,
se você tem ai contigo alguma coisa pra me dar,
se tem espaço de sobra no seu coração.
Quer levar minha bagagem ou não?

E pelo visto, vou te inserir na minha paisagem
e você vai me ensinar as suas verdades
e se pensar, a gente já queria tudo isso desde o inicio.
De dia, vou me mostrar de longe.
De noite, você verá de perto.
O certo e o incerto, a gente vai saber.
E mesmo assim,
Queria te contar que eu tenho aqui comigo
alguma coisa pra te dar.
Tem espaço de sobra no meu coração.
Eu vou levar sua bagagem e o que mais estiver à mão.

(Tiê)


A última concentração da noite posta nos ouvidos afim de marcar a memória de pedra-sabão com as notas musicais de amor que tanto o fazia lembrá-la. Um dia de crise - existencial. Uma pequena depressão em dose única, ou talvez dupla. No dia seguinte ainda resta um pouco do macarrão requintado - chique! Mas essa é uma lembrança boa que não chegou no outro dia. A primeira lua da semana meio nublada foi tediosa e burocrática, um passeio chuvoso por entre um céu entreaberto e semicerrado. As têmporas latejavam, o pescoço enrijecia-se do lado direito, uma impaciência subia-lhe pela nuca na porta da noite. Só quer agora expor livremente os desgostos - e deseja que não lhe surja nenhuma consequência posterior. Pois bem, sentiu-se vazio e desinteressado de si, opaco, estático, ártico. As memórias por um instante trancaram-se dentro do armário, impedindo qualquer lembrança reconfortante. Faltava-lhe piadas ou causos para refrescar o silêncio aparentemente árido. Não era comerciante de palavras, preferia simplesmente jogá-las sem nem mesmo preocupar-se com quem vá catá-las sujas no chão ou retirá-las dos galhos invernais sem flores. Um jogador (de palavras) e silêncio. Seu jogo predileto? Sentir-se bem através da multidão que o ignorava. Sentir-se ignorado na solidão dos outros. Escreveu um poema, mas teve medo de expô-lo - é verdade. Não queria que se pensasse muito a respeito dele, imaginando-se mil labirintos e dúvidas. Há muitos poemas nas veias para serem derramados ainda. Palavras beijadas de alegria - basta! No fim, enquanto aguardava para ir embora, tentou lembrar-se da música que tanto concentrara-se para internalizar. Não conseguia. Colocou-a no ouvido para não esquecer mais. Queria cantá-la no ouvido dela. Naquela noite havia uma euforia tão contagiante nela, mas ele sentia-se cansado e queria colo.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

(a primeira) noite


Abre os teus armários, eu estou a te esperar
Para ver deitar o sol sobre os teus braços, castos
Cobre a culpa vã, até amanhã eu vou ficar
E fazer do teu sorriso um abrigo

Canta que é no canto que eu vou chegar
Canta o teu encanto que é pra me encantar
Canta para mim, qualquer coisa assim sobre você
Que explique a minha paz
Tristeza nunca mais

Mais vale o meu pranto que esse canto em solidão
Nessa espera o mundo gira em linhas tortas
Abre essa janela, a primavera quer entrar
Pra fazer da nossa voz uma só nota

Canto que é de canto que eu vou chegar
Canto e toco um tanto que é pra te encantar
Canto para mim qualquer coisa assim sobre você
Que explique a minha paz
Tristeza nunca mais

(Casa Pré-Fabricada - Los Hermanos)

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Enigmático


Não me subentenda... Meus pensamentos nem sempre são legíveis. Paira preocupação às vezes no ar dos sérios. Gosto tão mais dos sorrisos sinceros... estar perto... mais perto. Em cada momento assim, quase que me fazes lembrar do que já não lembro. E quando eu lembro, posso hoje ter a serenidade dos que contemplam a paisagem, sem tantos julgamentos, mais contentamento. Evito sempre os arrependimentos. Satisfaço-me com o esclarecimento do que foi aprendido, essa consciência que tranquiliza - mesmo que eu não queira estar tranquilo. Mas a beleza consiste em ter ainda tanta intranquilidade residindo em lugares mais instáveis do cotidiano, as barricadas das esperanças, os piquetes de corações arrebatados por sonhos. Sim. Diariamente acendo treze fogueiras na mente e na alma, para iluminar os caminhos e aquecer os marchimelous (aportuguesando). É preciso fogo a crepitar nas entranhas, expulsando-me da ilusão de comodidade. E o amor para liquefazer os cansaços em alegria, solidificar os sonhos no dia a dia e sublimar qualquer tristeza. Assim que funciona, perfeitamente. Deitada no meu ombro ou vice-versa. Ombros para levar as bagagens inesquecíveis e percorrer os novos caminhos nas mochilas. Ombros que carregam as asas de ternura e paz, somente possíveis na companhia dela. Ah, não me subentenda, permita-me uma complexidade que eu mesmo não compreenda, uma confusão de excessos e retrocessos ou dispersos... e saiba que é raro que aconteça... Lendo algumas de suas palavras, sinto às vezes a sensação de que tanto que eu diga é interpretado de maneira temerosa... não tema, o destemor é uma grande força amorosa... e eu confio tanto nesses sentimentos que nos circundam e nos aprofundam e tanto nos inundam. Eu tento não me preocupar... por mais que sinta arrepiar no espaço alguma ânsia ou dúvida. Eu prefiro reciclar certezas à viver sem elas, recriar o amor à despedaçá-lo, reinventar a coragem à morrer de medo. São preferências ou tendências? Opcional ou inevitável? Espero que um pouco de cada...

Sem medo


Outra menina com quem falo,
Se por ventura ler o que se segue
Ouça que eu lembrei outro dia desses
tudo de bom que aqui eu vejo
e sinto o verdadeiro prazer do que percebe
o quão importante foram cada uma
as que me fizeram primaveras
e também as estações severas
de desconstrução de incertezas
desmoronamento de purezas
para germinar novas e derradeiras
verdades

E esta menina que me lê (pensamentos)
Não tema ler qualquer coisa
que minha sinceridade aguda
é uma estação desnuda
dos esconderijos que eu tenho
Aproveite, assim, esse tortuoso atalho
de pedaços de pão que pelo chão espalho
na forte decisão de o mais próximo
estar contigo o tempo inteiro.

muito ou pouco

Há mil letras de sangue e pó para despejar
sangue nutrido de adrenalina verde
po´esias de esmeraldas e cerejas
esqueletos de madresilva
e sorvete

Falta apenas este noturno momento
De sangria literária
Há mais vida em viver a flor
do que em estar aqui a compor

Não desmereça o momento de agora
pela parca produção de prosa
e poética tão escassamente posta

É que nos braços dela vivo as horas
Alvorecendo nesta praia amorosa
e me esqueço de aqui dar uma resposta.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Boa noite


A borboleta cultivada na janela do peito alumiou
os inusitados inesperados de noite inteira
tudo é tão serenamente adorável e belo
a neve queimando beijos calorosos
e a interseção dividida em momentos
abriu futuros de outros tantos desejos.

Há plumas e açúcares no parapeito
e as janelas quebraram os espelhos
Se calo às vezes, é sem pensamento
Sou de sentir apenas - em dados momentos
Que tanta dúvida possa diluir-se
nessa água na boca e no corpo
Podemos simplesmente abandonar este porto
deixar correr o vento em todas as celas
abertas e sem cadeados
das lembranças fulgazes do passado
Corra na areia do enlevo terno
que a correnteza é o que há de mais eterno
e o agora nos é tão alegre
como a heroína dos animais elétricos
saltitando nos dedos dos pés

Só existe a certeza de nós mesmos
É verdade, mas lembre que há pontes infinitesimais
entre cada nervo, entre cada pêlo
do meu e do teu mundo-novelo
de gatos e maçãs e caninos brancos
ouça, feche os olhos, a intensidade do canto
Presentes tamanho e inevitável encanto?
E se o sol continua a nascer
sob nossas unhas, em todo o nosso viver
nenhuma andorinha-sentimento irá s´esquecer
o caminho até esta alvorada
eu e você...

(Farewell and Goodnight - Smashing Pumpkins - uma música)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Bem aqui, perto

Sabe, menina-flor-de-saudade
Aqui, pousado no teu ombro
É mais etéreo que qualquer assombro
de um tão alto céu

Há mais desejo no teu beijo
Do que sal no mar inteiro
E os sabores da flor
Esvoaçam-me para perto

Às contradições de mim não se prendas
Meus eus esquizofrênicos de autismo
Deite-se na rede dos meus braços
Deito-me nas constelações do teu abraço
E estar assim basta para manter-me
comigo e contigo, assim, perene
tão cristalino que brilho no teu olhar
e sinto-me alegrando, das estrelas, o pulsar
(de desejos já realizados...)

Maçã-do-amor n´um circo esverdeado
tomado pela relva e pela erva doce do prado
Deleitas a vida com os cristais do encanto
Estralando na boca um prazer e tanto.


(Pavão-macaco - Wado - uma música)

Sussurrando


Em Voz Baixa

Sempre que me vou embora
é com silêncio maior
As solidões deste mundo
conheço-as todas de cor.

Desse a sorte um cavalo,
ou um barco em cima do mar!
Relincho ou marulho - alguma
coisa que me acompanhar!

Mas não. Sempre mais comigo
vou levando os passos meus,
até me perder de todo
no indeterminado Deus.

Cecília Meireles


Por hora comigo só há canção, sorriso e companhia... mas as minhas internas alegorias não se deixam esquecer a profusão do sofrer, a vermelhidão do viver... Que se aproveite e se transborde exaltante esta singular felicidade de energia intensa e plenitude surreal, expandida em planos e sonhos reais... Que se penetre nas escuridões de si com lamparinas de beijos para alumiar os confins dos desejos... realimentando-se de beijos... mais... mais... (pra que equilíbrio, afinal?!)

(Contato Imediato - Arnaldo Antunes - uma música)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

elos

Sou seu livro que ouves os pensamentos
Sou a ave que às vezes se esconde nas nuvens
Sou a mariposa fugida da luz
Ou a qualquer certeza duvidosa

Mas nos teus braços pode-se esperar
o úmido silêncio de algodão curar
o sol risonho o céu transpassar
as raízes tímidas a rocha cravar

E na tua presença eu posso sonhar
com a árvore de desejos de suave florecer
com o orvalho de calma descobrindo-se ser

A nascente vivaz em cálido cultivar
essas sementes unidas de nosso amor
Levando azul a um céu sem cor
.
.
(Beautiful - Smashing Pumpkins - uma música)

balanço


Novelo de lã emaranhado
Nos ossos, nos dentes, nos nervos
Enroscavam-se, confundidos com cabelos
Costurando em mim resquícios de medos

Tecelagem onírica de espelhos
Recortava e costurava meus receios
Obscurecendo as lâmpadas, criando freios
E retirando-me insensivelmente do meio

Indústria vil de mortalhas frias
Quebraram-se suas máquinas de agonia
Com refletidas pedras estilhacei janelas

Agora a luz invade, a poeira sobe
o ar respira, a tristeza morre
Findaram-se os dias de espera...

(Paper Boards - Venus Volts - uma música)

terça-feira, 17 de novembro de 2009

este ser errante


Canção de Alta Noite

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar... Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente
Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.

Cecília Meireles

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Cânticos


I

Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto,
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
Te ponha em tudo,
Como Deus.

IV

Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Quere ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?

VI


Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.


E então serás eterno.


VII


Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Por não esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva á felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...

(...)

Cecília Meireles

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Conto da Alvorada


A abóbada do mundo brilhava, esta cúpula atmosférica de azul translúcido e vivo, fazendo penetrar na pupila uma sensação de paralisia do tempo somente quebrada pelos ocasionais movimentos daquelas árvores corcundas e cheias da fruta praiana. O balançar da rede embalava os pensamentos do rapaz, que ora se deixava absorver pela contemplação e pela dúvida que o inquietava, ora preferia mergulhar naqueles cabelos cheirosos que recentemente se puseram ao alcance de seu toque e seu olfato. Pairava sua mente e sua alma entre uma alegria inesperada e uma confusão amena. Ambas as sensações turbilhando como minúsculos aviões acrobáticos, fazendo parafusos e piruetas em sua imaginação. Sentia-se bem, mas às vezes também parecia fora de si, como em choque. Paralisado e ativo simultaneamente, delegou ao seu instinto o controle de seu corpo, enquanto sua razão foi caminhar sozinha pelas colinas das nuvens. Tentava assimilar o presente (literal e figurado) de sua vida, a presença daquela menina, a profusão de endorfinas, químicos de prazer. A espontaneidade da situação é que lhe era mais surpreendente, ver-se de repente nos braços que dois dias antes começara a desejar, mas onde jamais vislumbrou poder se debruçar e, para estar onde estava, bastou ser no tempo o que era ele em si mesmo, despreocupando-se de galanteios e artifícios, libertando-se da angústia de cada instante sobre o que e como fazer - deixasse ser. Nada além da pureza dos momentos - deixar-se sentar ao lado dela, "ocasionalmente" bastante perto, "casualmente" divertir-se com brincadeiras um com o outro, não impedir a fuga do próprio olhar até o destino castanho daqueles olhos também fugidios, não resistir ao encanto que estava sentindo, ainda que sua convicção instintiva o impedisse de qualquer expectativa. E a medida que a correnteza descia o declive suave de suas vidas, ele, folha diminuta de alguma erva silvestre, de fragância emotiva e passional, e ela, margarida flutuante vestida de pólen açucarado, formosura alva de sorriso e pétalas labiais, romanceavam, aproximando-se magicamente na cristalina névoa dos minutos. De repente, enquanto o morno alvorecer timidamente abria os braços por entre as nuvens, se viram sós... no mar... convidados a percorrerem-se pela primeira vez em palavras de areia fofa e ondas marinhas... não tinham nenhum apego às horas e os pés tilintavam como sinos de vento, enquanto as mãos passeavam transmutadas em espumas de sal e as bocas imitavam os passarinhos que cantam alegremente nos primeiros instantes da manhã em incansável colóquio de contentamento. Foi como se um vento forte abrisse abruptamente a porta, libertando dos cômodos cardíacos a morna energia que fermentava e preparava afeições e afinidades mútuas. E o calor liberado uniu-se em um pássaro de fios trançados que voava entre duas colunas de pedra branca, encerrando perfeitamente aqueles dois corpos abraçados e unidos. Porém, as intuições que os moviam precisavam de uma última certeza, um selo, uma chave ou uma pena aérea que assinalasse 'formalmente' a alegria... e, permeado de puro sentir, foi que ele beijou a ponta dos dedos indicador e médio da mão esquerda e lançou-os ao ar, deixando-os pousar com delicadeza nos lábios dela que sorriram um sorriso ondulado e límpido da água que vibra ao menor toque. O gesto dele deixou claro para ela, a beleza daqueles lábios felizes o deu certeza e daquele momento em diante estiveram juntos como se nunca estivessem separados antes daquele momento.

(Lilly, My One and Only - Smashing Pumpkins - uma música)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

trilhos de transe


Em pé, encostado na coluna de tijolos vermelhos que ostentava a placa da plataforma número nove, o rapaz observada hipnotizado a passagem dos trens, ligeiros, ininterruptos. Estava tão fora de si que o tempo parecia acelerado e cada pensamento seu abocanhava dezenas de minutos, como minhocas ávidas por húmus craniano, fresco e nutritivo. O monótono chegar, parar, partir dos vagões acontecia diante de seus olhos como um filme que está sendo adiantado, as linhas se tornando borrões, os rostos desfigurados, o espaço preenchido pelo risco das luzes arrastadas, como se o tempo que a luz demorasse para refletir nos objetos e chegar aos seus olhos fossem minutos inteiros. Tudo parecia uma fotografia tremida (em movimento). Estado de transe, curto-circuito, fogos de artifícil mentais. Sua mente entregara-se, não aguentava a exaustão diária de afazeres antropofágicos, compromissos alucinógenos, pendências cadavéricas. A sua mente, ou sua alma, ou a interseção denominada Eu sentia-se asfixiada, querendo sair da gaiola circunstancial, da jaula proposital em que se colocara e de onde drenava o ar, forma de esmorecer o cérebro e perder a consciência. Todo o amor que ele tinha (instinto de preservação - do que for) parecia agora alheio a qualquer sentido, o amor pela família esfacelava-se na simples cogitação de desaparecer e não dar notícia. Para mais ninguém o seu sumiço teria demasiada importância. O emprego certamente o consideraria um vagabundo e logo contrataria outro para substitui-lo naquele serviço maquinal, não se dando ao trabalho de telefonar em busca de informações. Os conhecidos não perceberiam a ausência daquele que normalmente era distante. Normalidade. Queria pegar qualquer trem, e mais outro, e mais outro. Apagar! Fechar os olhos por semanas, esquecer seu nome, seu passado, acordar como uma criança, vestido com um pijama semitransparente, dada a finura do tecido, e impecavelmente branco, maculado apenas no canto esquerdo, sobre o coração, pelo símbolo do hospital psiquiátrico ou retiro campestre para casos irrecuperáveis. Completamente louco e feliz, finalmente. O mundo explodiu - exploda! - e quem sabe depois pudesse aprender a explodi-lo mais um pouco, dedicar o oxigênio e gases poluentes que adentravam em seus pulmões, as reações matabólicas complexas liberando gás carbônico e compostos nitrogenados, as formigas elétricas que andavam pelo seu formigueiro nervoso levando informações e impulsos, dedicar tudo a um propósito razoável, destruir o que quer que o homem tenha construído. Uma escola? Que as crianças aprendam sobre as verdades da vida com a natureza à sombra de uma árvore centenária, e se estiver chovendo, o melhor aprendizado será abrir os braços e correr pela chuva ou deitar-se n´uma rede em baixo do mais rústico teto de palha que se imaginar (feito com o mínimo, pequenos presentes naturais) e refletir sobre o ciclo fantástico do elemento água, sua onipresença em todos os seres, na superfície de sua pele e no centro de seu coração, pensar sobre a influência das pressões atmosféricas para levar os ventos e a umidade, influenciando no clima, venerar sobre o equilíbrio natural - isso será aprendizado. Fábricas? Que sejam abolidos os enlatados e as máquinas de fazer fumaça, que os computadores se rendam frente às florestas tropicais, redes de informação infinitamente mais complexas e belas, ou aprendam com as formigas a serem perenes e sustentáveis, que a eletricidade volte para os céus de tempestade ionizadas e eletromagnéticas e, finalmente, que cada templo de religiões materialistas e construções políticas, câmaras, congressos e parlamentos sumam de uma vez por todas! Sejam consumidos pela ânsia de desconstruir todos os aparelhos de controle e alienação. Assim, as pessoas poderão encontrar Deus nelas e em todos, perdendo qualquer capacidade em fazer distinções segregadoras, terão a chance de aprender a se comunicar verdadeiramente, não expondo orgulhosamente seus pontos de vista cegos e surdos, mas desfrutando e expandindo as artes de ouvir e dialogar pacientemente, ternamente, amorosamente, podendo então lançarem laços de união inquebráveis uns aos outros. Destruições criadoras, criações e revoluções... Aquele jovem louco queria ser o anjo do apocalipse a varrer da pele adorável de sua mãe Gaia as impurezas, manchas, sujeiras humanas, orquestrando desastres e catástrofes que encerrarão o sofrimento com um golpe final. Queria ser um anjo, sim, e voar para longe de toda luz e matéria, lançar-se n´um buraco negro e desmaterializar cada sentimento coerente, livrando-se da razão que o consumia por dentro como larvas de moscas devorando sua carne e sua alma. Destruir-se para nascer, fugir para encontrar, parar para começar... ele e o nada, ninguém e tudo. Reviver os sete dias fantásticos da crianção do universo, desprender-se de si e voltar dissolvido essencialmente no alimento das plantas e da vida... Entrou em colapso, abandonado por suas pernas que o lançaram no chão da estação ferroviária municipal, desmaiado. Acudido por um segurança que o deitou no banco de madeira próximo à coluna, acordou quase uma hora depois, suado e com frio. Sua mente ainda queimava quando um único impulso o invadiu, levantar-se...caminhar sete passos, esbarrando em uma senhora de chale rosa, um homem de terno cinza, uma criança de macacão jeans... e então jogar-se na linha do trem.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O que é, o que é

O que é?
É saudade
é falta, vontade de estar perto
desejo de fazer carinho,
enlaçar um abraço longo,
é soberano sobre os pensamentos
e seu cavaleiro é a insônia
do sono, tem repulsa
e da vida é irmão

É dar atenção
mais do que receber,
o verdadeiro é sublime
além de si mesmo
quer escrever-lhe algo belo
e imaginá-la sorrindo
ao percorrer as flores
com os olhos de sonho

É sentir a ternura
percorrer a alma
com passos ligeiros e calmos
pássaros alçando vôo
na cratera cardíaca,
alcatéias celebrando
a existência da noite
(a vida)

É mistério de fogo
no ritual do romance
labaredas frondosas
de florestas vivazes
e seus frutos de carne
deságuam nos mares
de corpos encontrados
frente ao céu quebrado
deixando escapar
o suspiro infinito...

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

"que me leve longe..."


"É fácil viver o esperado e o convencional. É quando se vive o inesperado que se começa a ter uma vida divertida"

p. 111, Manual do Messias, Richard Bach

Nada premeditado. Idéia fixa, surpresa inacreditável, sentimentos emergidos como águas termais...

Gêiser

"Não, páre de pensar"... como se todos os pensamentos fossem ela e dela... sentia-me assim tão artificial perto de ti quando minha mente inteira só tinha uma imagem... (mas nenhuma idéia de como aproximar-se)... sentia-me proposital, olhar explícito e demorado que emaranhava-se no seu semblante como uma criança olhando para a doçura. E neste estado magnético me dizia que apenas engano eu inspirava, incapaz que era de acreditar em 'co-incidências', atrações gravitacionais... sentimentais...

Páre, não nade nessa correnteza, que não sairás do lugar... antes, deixe-se levar... leve como uma semente atirada nas águas esperando alcançar o amor da areia para brotar... viva simplesmente, estar (nas mãos do destino)... nas suas mãos... natural - palavra mágica... é-para-ser

É


Simples(mente) - pensando
...................pensamento
..................mentalizando........não,
....................sentindo...

Você... e a sós
às margens do rio de sal
aos pés do sol
sobre tudo e qualquer coisa
tranquilamente (sem hesitação)
Ao seu lado
............"deite comigo"
mãos nos cabelos
...................mais perto
sorriso tão lindo
...................um beijo indireto
o sangue fluindo
...................para mais perto

(incrédulo) - Como?
...............Como?
...............Como?

Do céu do anjo
Agora comigo
sentindo
.....infinito

riso
perplexo
..........como a saudade
apoderou-se
..............do pensamento
e só o que existe é saudade
...sem tua voz
......nós
......nós
......nós
......nós
......nós
......nós.

sábado, 31 de outubro de 2009

duas


Simples-
mente
começaram
a´brir a vida
deixar-me ver
sem nem sequer
precisar mover
um lábio a
perguntar

E saber ouvir
saber sorrir
algo assim
é incrível
não-crer
deveria eu
querer deixar
algo de mim?

Capela

Aos pés da escada
ao som dos muros
disfarçados de engano
nada encontrei
além de frio e vazio
passado.

Em outros degraus
mais acima (ou...)
palcos na paisagem
amizade no chão
gosto de gostar
às vezes não
eternidade não há
mas simplesmente
esteja, sim
não deixe passar
floresça a tua
alma clara
que a nuvem cinza
precisa da lágrima
p´ra se iluminar...

gestos

Olhos vermelhos
Vamos passear
Com areia nos dedos
e canções de ninar
me guio pelo vento
da sua voz
essa forma de luz
quando estamos sós

anéis de loucura
a colecionar
lembranças trançadas
ásperas de amar
penas caídas
nuvens rasgadas
bandoneón chorando
lágrimas de sal

deitado na sombra
da aurora de sonho
flores no céu
e no chão há fugas
mas estou plantado
nesta asa de açúcar
derretendo sentidos
e matando planos

Relembrando idéias
tão constatemente
estamos livres de nós
eu e você somente
dois sem um desperto
um dia de alegre inverno
caos na distância pura
e ninguém por perto...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

R-u-n

"Menina sagrada
.Não se levante
.para correr

.Fique comigo
.Eu fico triste
.Quando vais

.Areias do tempo
.Estão caindo
.No meu peito

.Fique assim
.Nas colinas
.Do meu peito

.Não acorde
.Me estranho
.Quando vais

.Paralise a noite
.Segure-me firme
.Sagrada menina

.Não se levante
.Sinto-me estranho
.Quando vais..."

(Run - Air - uma música)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

bebendo

Um copo de água gelada
e a canção que eu gostaria de cantar
segurando no guidom da minha liberdade
n´um palco de areia branca e holofote de luar
regando as lembranças com murmúrios
e sorrisos mais suaves que brisas do mar

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

orvalhos noturnos

Nunca entrara naquela sala antes. Era como as outras, apenas n´um lugar diferente. A garrafa gelava a ponta dos seus dedos, enquanto bebia o líquido preto e saboroso que continha. Subiu os degraus sem enxergá-los, tentando não tropeçar, esperou que os olhos se acostumassem com a escassez da luz e quando surgiu um pequeno clarão, pôde ver um lugar para sentar. Acomodou-se, deitou a mochila aos pés, guardando o conteúdo dos bolsos, ficou a vontade. Antes que percebesse estava dando os últimos goles quando começou. Alguns minutos e estremeceu. Riu. Como pode ser assim tão suscetível? Àquela imagem, aquela figura, expressão, cores... sentia algo subir-lhe pela espinha, percorrer seus nervos, perfurar sua sensação de forma agradável, como se não pudesse resistir ao impacto causado. Aquela hora inteira passou-se assim, às vezes mais, às vezes menos. Tudo que importava era essa sensação, o resto era secundário. Foi-lhe surgindo uma certeza, um sentimento de possível, de proximidade, de alguém lá longe, mas lá. Saindo de seu lugar, notou quantas pessoas estavam ali, mas não prestou-lhes muita atenção. Encaminhou-se para a parada, estava alegre, as pernas vivas. Não pôde esperar e não queria chegar, então adiantou-se, foi caminhando. Pensando. Ouvindo - uma música triste, para deixá-lo feliz. Ocasionalmente uma velha saudade o invadia, aquela gosto na boca, nos olhos, no corpo. Aquele rosto formava-se a sua frente, as lembranças faziam fila ante seu coração, nunca amara tanto alguém, e pairava aquela dúvida anciã sobre se amaria tanto novamente, se era possível a mesma co-incidência de destinos n´um mesmo lugar e instante, na sintonia exata de dois em um. Se perdeu e sabia que não poderia ser diferente, mas às vezes pensava. Não havia como ter aprendido o que precisava antes, mais rapidamente, tomara o tempo preciso... e foi demais... Lembrava daquele tempo, exacerbado, acelerado, relógio que se fazia de ventilador, onde dias eram meses e semanas, eternidades de emoção. Foi tempo demais, tudo demais... E fora o maior que tivera... olhava sua mão direita e lá, naquele círculo prateado, guardava-se para sempre o reflexo, a pele, o que havia... naquele anel que ele trocara, que fora o dela. Seus passos eram velozes, mas curtos. Via alguns passarem por ele, em passadas compridas. Não tinha pressa. Ao fim do calçadão, se perguntou se era tempo de ir, mas ao se aproximar da parada, não conseguiu ficar e continuou. Atravessou ruas, pensando em outras coisas, revoltas do pensamento. Aquela noite era-lhe diferente porque pela primeira vez tinha a oportunidade de estar a pé naquela parte da avenida, podia ver de perto o que antes só via pela janela veloz. Finalmente pôde aproximar-se daquela cabana de telhado de palha, tão linda como nunca pudera notar na rapidez do veículo, tão mágica como só a proximidade podia revelar. Repleta de flores e naturezas, as paredes de madeira descansavam na penumbra e apenas uma borboleta resplandecia vítrea à luz tênue que lhe era apontada. Carregava do ventre sinos pequenos que também brilhavam, imóveis. Ao pé da porta pétalas vermelhas e amarelas dormiam, molhadas e cintilantes. Ficou parado ali demoradamente, apreciando, às vezes olhando ao redor para prevenir-se de alguma surpresa indesejada. Tentou guardar uma imagem daquele momento. Quando voltou ao caminho, viu o restante do lugar, sua profundeza e graça, encantado. Andou muito ainda. Olhava a hora para assegurar-se de que não perderia o último transporte. Cantava o que podia, inebriado pela música, lembrava-se da história que a acompanhava. Chegou à outro ponto que há muito desejava ir, mas também era-lhe contramão e, por isso, nunca tivera oportunidade. Apreciou a vitrine em busca de surpresas e extasiou-se por encontrar algo que lhe salvaria a vida, resolvendo um problema que estava se agravando com o passar dos dias. Lembrou-se de viagens antigas, de presentes que comprara para si, mas que dera para alguém especial... novamente ocorreria... exatamente igual, exceto que não pensava em si naquele instante. Estava perto daquele parque noturno. Hesitou se iria ou não até lá, estava tarde... fazer o quê? Mas pensou "que outra oportunidade terei?". Então foi. Aberto, ao ar livre, aqueles brinquedos imensos, coloridamente decorados, sozinhos e vazios, parados. Caminhava pelo estacionamento quase esquecido, com um olhar alegre e ao mesmo tempo distante, observando o tamanho gigante daquelas cabines que giravam no ar, soltando pequenos gritos vez por outra. Deu a volta no lugar, percorrendo-o atrás do que mais pudesse encontrar, chegou ao adorado carrossel que, se entrara alguma vez, fora quando criança (não tinha recordações). As luzes ainda ficaram acesas alguns instantes antes de se apagarem, a mulher que passou por ele sorriu, talvez indagando-se sobre o que fazia aquele rapaz ali. Aos poucos todas as lâmpadas incansavelmente festivas se apagavam, esperando dias mais animados, de mais crianças e pais puxados pelas mãos. Era chegada a hora da partida. Cruzou a rua, esperou o número certo chegar e subiu pela portinhola que se abria para os passageiros. Finalmente aproximava-se de casa. Não voltaria, se pudesse, pensava no dia em que teria meios para ir mais longe e mais tarde. E ao chegar, voltou-lhe a sensação... a beleza era sublime, e amava o que era sublime, amava e tinha saudade e ao mesmo tempo sentia-se pleno por si só. A música lhe era muito verdadeira no sentimento da voz, não importava a letra.

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(Lies - Once - uma música)

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

(é)


E se o mundo não for assim tão
sombrio? (é)
Disciplinar
os olhos a não procurar,
fazê-los ver
a paisagem e os rostos
com fantasia
desfrutar e não
querer nada além
do que há.

Domesticá-los,
fazer do ardor uma forma
de sinfonia
de um trompete vermelho
e uma alfaia de concha do mar
Uma procissão à meia-noite
atravessando a constelação
dentro do olhar
que é
e mais nada.

(E se chover? - Dois em um - uma música)

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Cais

Estava na praia. Gostava muito de praia, sim? Outro dia se perguntava onde se refugiaria quando estivesse longe dela. Mas há muito tempo não recorria ao bálsamo marinho para aliviar seus pesos. Ultimamente foi a letra e não a onda que escorreu as dores ou inquietações. Mas ainda assim era apaixonado pela imensidão. Que outro lugar teria poder semelhante à canção do mar, à massagem da areia, à carícia do vento, à ternura da onda? Que floresta, ruela, praça, café, varanda ou terraço pode se igualar? Sentirá muita falta. Mas terá sua própria morada, tão sua que estará seguro e a ilusão da segurança será reconfortante. Não segurança, mas provavelmente afastamento, pertencimento, a sensação de ser parte do próprio mundo criado e decorado por ele mesmo. Longe de tudo, perto de ti. Estarás com ele? E os ideais hão de se reconstruir na possibilidade da empreitada, na ansiedade da transformação. E o que faríamos se fóssemos ilimitados, você e eu? Talvez seja apenas uma questão de escolha. Vamos para qualquer lugar...

Ainda

Um sonho bom. Sonhador, lógico, mas suficiente para motivar. Talvez rever antigas formas de ser, abandonadas por questões de segurança. Insistência? Sejamos menos inconsistentes, permanecer mais. E veja, acordado, as imagens ainda estavam nítidas na mente, foi profundo. Os sentimentos gerados ainda estavam no sangue. Cessar a caça às bruxas? Parar de mandar para a fogueira a frustração? Não sei, mas eu adoro cometer erros (ironicamente falando). Sejamos gentis. É certo, acostumou-se a estar pronto para as possibilidades, habituou-se a pensar o pior apenas para já ter familiaridade com a sensação caso se confirme, mas não deixemos esse extremo autoconfirmar-se, esperemos um pouco mais.

"Saudades de quem eu ainda não vi"

domingo, 18 de outubro de 2009

pintura

É bom sorrir e saber bem de si
Bom dia, menina! Bom dia, alegria.
.
Eu só não quero dormir...
.
E se eu ainda bebo desta água que sobrou,
é porque... é minha, e você não tomou
não pense nada
que a vida é um vôo.

.Dueto Silencioso.

Eles mal se conheciam. Mesmo morando juntos há alguns meses, ele pouco sabia sobre a família dela ou seu passado, ela ignorava os tantos planos que ele tinha e suas obrigações do dia-a-dia. O rapaz não estava tão interessado ultimamente em conhecê-la demais, achava perigoso saber muitos detalhes sobre alguém. Ela andava tão concentrada em seus pequenos afazeres que pouco se lembrava de perguntá-lo particularidades. Se viam pouco, apesar de morarem juntos. Eram instantes ligeiros de dias esparsos. Nem mesmo todo dia. Ele às vezes precisava dormir longe, qualquer lugar distante, para acalmar e abrir as nuvens do pensamento e ela ia para festas que emendavam no dia seguinte ou simplesmente não dava notícia. Funcionava assim. Mas quando se viam, não se achavam desconhecidos, sentiam tantos e incontáveis estalar de sentimentos nos limites da pele e dos nervos que estarem juntos encontrava seu sentido. Acordou cedo, era uma sexta, mas não teria que trabalhar. A luz esparsa da janela invadiu levemente sua pupila que se contraiu, enquanto seu corpo espriguiçava-se. Notou que ela estava ao seu lado, virada para a borda da cama, com o lençol esparramado por seu corpo, as pernas descobertas, dobradas. O afeto que tinha por aquela menina correu por suas mãos até acariciar seu ombro. Beijou-lhe o rosto com delicadeza, para não acordá-la, passou os dedos por seus cabelos vermelho vivo. Então, lentamente, levantou-se, tocou os pés descalços no chão frio de concreto encerado e foi escovar os dentes. Pelo espelho a viu se levantar, chegar-lhe junto e abraçá-lo pelas costas, enlaçando seu corpo com um carinho que ele tanto gostava - Bom dia, amor - disse ela, com a naturalidade dos que expressam o que sentem, sem pensar. Ele respondeu com um sorriso e um beijo terno naqueles lábios rosados. Foram para a cozinha. O rapaz cortou duas laranjas em quatro pedaços cada, partiu uma melancia, lavou um cacho de uvas, bateu no liquidificador uma vitamina de uva. Ela fez torradas com queijo. Comeram tranquilamente, teriam a manhã livre. Deitaram-se nas almofadas da sala um pouco, ouvindo o canto dos passarinhos nas árvores ao redor da casa. Depois, ele levantou-se. - Deu-me uma vontade de pedalar, vamos? - ele a convidou - Nunca nessa vida! - Ele riu, pois sabia que ela não viria, à conhecia um pouquinho, afinal de contas. Colocou uma roupa leve, pegou a chave do cadeado da bicicleta, pôs a música para tocar e saiu pelo portão. Desceu a ladeira com alegria, sentindo a brisa fria no rosto, o sangue das pernas pulsando como máquina a vapor, incessantemente. Fazia curvas, subia calçadas, cruzava praças, chegou ao calçadão da praia, ouviu o som da maré trazida pela lua, do choque da água salina contra as rochas negras. Quando voltou, suado, aliviado da energia excedente, foi direto para o chuveiro. A água corrente purgando o cansaço, dando-lhe fôlego novo. Notou que ela não estava. Pegou uma maçã e foi na locadora pertinho da casa. Alugou vários filmes, alegres, tristes, românticos, tensos, para desfrutar por várias horas àquele fim de semana. Ela chegou no meio do primeiro filme. Não disse de onde vinha, ele também não perguntou, não se davam satisfações. Tinham um pacto silencioso de serem independentes. Sentou-se junto dele nas almofadas, ele sentiu aquele perfume encantador. Resumiu ligeiramente o início do filme. À noite, sentados à mesa da cozinha, só aquela lâmpada amarelada acesa na casa inteira, o silêncio arranhado apenas pelo som de alguma cigarra urbana, eles se olhavam. Faziam isso de vez em quando, observarem-se, tentando imaginar o que haveria por trás dos olhos um do outro. - Amor, como estamos? - Ele perguntou. - Não sei, éramos para estar como? - disse a menina. Ele continuou - Eu me sinto muito bem com a forma como estamos vivendo, livres, mas juntos, próximos, mas soltos. Conhecemos outras pessoas, passamos bons momentos com elas, temos excelentes momentos juntos. Há entre nós uma intimidade deliciosa mas que preserva nossas individualidades. É incrível. Mas agora há pouco tive uma idéia, estava pensando, ninguém consegue expressar exatamente como se sente, não é possível dizer em palavras, e traduzir sentimentos é distorcê-los, nossa linguagem é pífia diante do subjetivo. O que quero dizer é o seguinte, nunca precisamos dizer nada um ao outro quanto às nossas ações, sempre fizemos o que nos dava vontade. Quanto aos nossos sentimentos, como seria se tentássemos por um tempo expressá-los sem palavras, através de outras linguagens mais puras que brotassem de nós? - Ela não disse nada, sorriu. Ele também sorriu. Atravessou os dois metros e meio que os separavam, ajoelhou-se diante dela, segurou suas mãos e as beijou com carinho, fechou os olhos e deixou que os lábios sentissem o calor de sua pele e que a pele dela sentisse a maciez de seus lábios, depois beijou-lhe a boca, deixou que suas línguas conversassem outras idéias maiores que as palavras. O sangue aflorou à pele, ruborecendo-os, as respirações ofegaram, as mãos começaram a caminhar pelas roupas, tirando-as. Deitados nos tapetes felpudos da sala, transaram, sem palavras, apenas os sons escapados de excitação, as canções de prazer, as falas naturais dos corpos. Ele sentiu grande dificuldade apenas em uma coisa naquele silêncio, não poder dizer "eu te amo". Era-lhe um pequeno vício, ele adorava, dizia, dizia, dizia, e agora não podia fazê-lo. Olhava para ela, seus olhos brilhavam, também os dela, suas bocas beijavam suculentas todos os cantos dos corpos, dos pés às coxas, às sensibilidades, até os últimos centímetros do rosto. Mas ainda assim queria dizer a ela "eu te amo". Já sob a luz tênue do amanhecer, ainda acordados, escreveu com a ponta do dedo no ar, na barriga suave dela, na parede, em todos os lugares. Ela brigou com ele, fez que 'não' com o indicador. Nenhuma palavra, nem mesmo escrita. Ela gostara demais do jogo. Ele sentiu uma pequena contrariedade. Mas tudo bem, deitou-se nos seios queridos, ouvindo seu coração e deixou-se dormir. Manhã alta, acordou com um beijo sabor morango. Tinha feito um suco. Coloca outro filme para assistirem. No silêncio, eram forçados a se concentrar mais no filme ou então nos detalhes um do outro. Ele reparou como a pálpebra inferior do olho esquerdo dela às vezes tremia, pois ela fazia um pequeno esforço para enxergar as legendas. Ela notou que ele adquirira o hábito de apertar os lábios quando se concentrava e viu também que ele roía as unhas mais do que imaginava. Podiam falar, mas não um com o outro. Canções eram permitadas. "Medo, escorre entre os meus dedos, entre os meus dedos, eu lambo os dedos, saboreio meu próprio medo"... ela cantarolou. Ele não gostava da música original, mas a voz fina dela cantando lhe era tão bonita. Notaram as várias formas de expressão que as pessoas tinham. Pela música que se escolhia para ouvir se notava muitos sinais sobre os sentimentos, mas não se podia confiar demasiado significado à isso. Eram precisos outras coisas. Desenhos rabiscados nos cadernos de anotações deles também indicavam estados de espírito, filmes escolhidos para rever, comidas cujo desejo despertara, sedes sexuais mais ou menos afloradas. Claro que nenhum dos dois racionalizava todos esses sinais, apenas os sentia e sambavam de acordo com os sentimentos que emanavam um do outro. Podiam ter momentos em que não se dirigiam o olhar, outros em que se deixavam ficar abraçados a noite inteira, acariciando-se. Fora de casa, nos seus trabalhos ou na rua, óbvio que eles falavam. Tudo estava bem. Várias noites ele ia conversar com uma amiga, compartilhar o que acontecia, o que ele descobria, suas percepções. Já ela não comentara o jogo deles com ninguém. Pouco dizia daquele relacionamento para outras pessoas. Guardava para si ou escrevia em seus cadernos secretos, quase como um diário, mas onde também anotava poesias e historietas. Uma noite ele quis viajar, passar o fim de semana na praia. Queria que ela fosse junto, mas como dizê-la? Tentou por meio de gestos, mas estava difícil. Desenhou uma praia n´um papel e a moto dele com os dois viajando. Anotou a data do fim de semana, quebrou a regra e escreveu "viajar". Ela deu-lhe uma tapinha na mão por ter feito isso. O rapaz já estava ficando impaciente com a tamanha seriedade que ela estava tendo para com o jogo, chegou a pensar que fosse uma desculpa para não conversarem nem discutirem assuntos que pudessem incomodar. Talvez fosse algo bom, tornava a relação mais simples e afetiva, mas também podia ser algo ruim. Vendo o rosto chateado dele, ela enroscou-se em seu pescoço e deu-lhe vários beijinhos por toda a face, balançando a cabeça afirmativamente. A idéia era ficarem naquela pousada já bem conhecida dos dois por três dias, relaxando, nadando no mar, meditando, tendo manhãs, tardes e noites bem ardentes. Não saiam, até porque passar uma hora sentados n´uma mesa em um restaurante em silêncio é irritante para qualquer casal que exista. Melhor o silêncio desfrutado na intimidade da cama ou na paz da praia. Mas no silêncio dela, ela pensava muito sobre eles, sobre estarem juntos, sobre o que ela queria, o que estava fazendo, estava sentindo. Tinha o excelente pretexto do jogo para não dizer nada para ele, mas ela estava pensando bastante, por algum motivo estava triste, mas não sabia o quê. Mas sua postura permanecia muito semelhante, ele não chegara a notar nenhuma diferença, até porque o fato dela sair para caminhar na praia e ficar duas horas fora era algo comum no relacionamento deles, tanto da parte dele como dela. O amor deles era tão livre de restrições e preocupações que já estava cansando não se poder reclamar de absolutamente nada. Até mesmo se quisessem ver outras pessoas, podiam, mas sempre que estavam com outro alguém, sentiam falta um do outro. Ele mesmo já fazia algum tempo que não conhecia ninguém, via em todas o rosto dela e preferia o rosto real à ficar imaginando-a por ai. Na última tarde de viagem, de praia, de cama e brisa, estavam deitados, lençóis brancos bagunçados sobre a cama, ele estirado como que pesado, ela sentada ao lado dele, com um braço apoiando-se sobre ele. - Preciso te dizer uma coisa - O rapaz ficou surpreso em ouvir a voz dela depois de quase dois meses do jogo do silêncio. - Vou ficar longe por uns tempos. Não serão os um ou dois dias que às vezes sumimos, dormindo fora, coisa assim. Vou viajar para algum lugar, longe, nem mesmo sei para onde, mas vou. Quarta feira eu parto. Tenho algumas coisas para resolver, mas até lá estará tudo feito. Não sei, apenas estou precisando ficar longe. Eu te amo, amo sim, mas estou confusa, não estou entendendo bem alguns sentimentos, não sei. Espero que fique bem. - Ele a olhou perplexo, surpreso. Para ele aqueles dias de silêncio haviam aprofundado tanto o relacionamento deles, fazendo-os mais próximos, convivendo mais um com o outro, um afeto tão delirante que ele acabara precisando mais da presença dela e agora ouvi-la dizer que iria partir sem nem mesmo saber por quanto tempo o deixou chocado e desolado, como se em um instante algumas palavras fizessem desaparecer aquele paraíso silencioso e primordial que se instaurara entre eles. Não notara quando essa suposta confusão surgira nela, não entendia como podia ter acontecido. O que faltava? O que estava acontecendo? O quê? Olhava fixamente para o lençol, pensando, ou tentando pensar. Não a mirou por alguns minutos. Depois despencou e ficou olhando para o teto, a luz da manhã se esparramando pelo branco e refletindo no lustre. Ficou em silêncio. Não conseguia dizer nada, não havia o que dizer. Se ela queria ir embora, nada poderia fazer para impedir, nem tentaria, eram livres, ela era livre, se quisesse se ver livre dele, podia. Já ele, naquelas graciosas semanas, só queria se prender àquela menina, aproximar-se cada vez mais e ficar perto, bem perto, sentindo seu calor, sua pele, sua alma. Ver-se preso àquele olhar criativo, as mãos inquietas, o riso gostoso, a boca de amor. Ah, como mudara desde o início de seu jogo. Jamais imaginara tais resultados, maior apego, maior amor. Um bem-querer que o iluminava, energizava sua vida e acalentava seu coração. E agora, ela vinha lhe dizer que iria embora. Depois de alguns momentos, um surto repentino de orgulho mesclado com tristeza fez-lhe pronunciar suas primeiras palavras - Pois bem - E o tom de sua voz transpareceu até um certo desprezo, quase uma raiva. Mas logo se desvaneceu a hostilidade, caiu-lhe um peso e deitou-se com o rosto virado contra o travesseiro. Quis dormir. Ela passou sua mão por suas costas, acariciando-o com as unhas. Ele imaginava como seria perdê-la, não tê-la mais por tempo indeterminado. Era fácil passar um, dois, até três dias sem vê-la, fazer qualquer coisa, ocupar-se de seus interesses, mas, não saber quando voltaria pareceu-lhe cruel. Quarta feira, outro choque. Acordou e não a encontrou, viu que o armário estava mais vazio, as sandálias e vários objetos de uso dela não estavam, ela viajara sem se despedir. Na noite anterior, estiveram mais afastados, ele tentou abraçá-la mas sentiu como se não a alcançasse. Estava já longe, perdida, distraída. Nas primeiras horas da manhã a angústia explodiu em seu peito, incontrolável. Levantou-se nervoso, irritado, precisava colocar para fora o que quer que o asfixiasse, socou a parede com uma força que quase quebrou-lhe a mão. A dor o acalmou mais, deitou-se. Tentou relaxar, pensar, encontrar-se. - Tudo bem, ela foi embora. Será que volta? É bem possível que não, do jeito que ela é. Como pode?! O que houve?! - disse em voz alta, conversando consigo, a voz trêmula. - Put...que...rda! - Gritou. Depois fez um silêncio prolongando, quebrado pela resolução - Tudo bem! Foda-se. Não importa. Estou muito bem. Só não quero ficar mais nesse quarto ou nessa casa por uns tempos, cada maldito centímetro desse lugar está marcado dela e quero esquecê-la por uns tempos também! Foi embora, também me vou. - Foi ao trabalho e se demitiu. Tinha algumas economias que o sustentariam, gastaria pouco. De volta, agarrou suas duas mochilas e socou algumas peças de roupa, lençol, toalha, coisas necessárias para viagem, alguma coisa de cozinha e higiene, alguns livros, um caderno, lápis e borracha. Feitas as malas, que deviam estar o mais leves possíveis, arrumou-as no bagageiro da bicicleta, junto com sua barraca, o fogareiro e uma panela. Secar as pernas até não aguentar mais, era o que queria. Rumou para o norte, atravessou o arco de concreto gigante que cruzava o rio. Passaram-se algumas semanas, cartas se acumularam na porta da casa. Somente a vizinha do lado esquerdo, que ocasionalmente eles pagavam para lavar as roupas deles viu a partida dele e estranhou também o sumiço dela, que na ocasião, não acompanhava o rapaz. Dois meses e meio depois daquela quarta-feira, ela volta. Estava alegre, feliz, morta de saudades dele. Enviara algumas cartas, tranquilizando-o, não ligou porque... não sabia o porquê. Subiu as escadas que davam para o apartamento, terceiro andar, de frente para o pôr-do-sol. Do corredor do prédio se podia ver a admirável paisagem. Ela ficou feliz por ter esse cenário tão belo na sua chegada, queria pular nos braços dele, derrubá-lo no chão e dizê-lo "eu te amo, eu te amo, eu te amo" - Sabia que ele adorava ouvir, e logicamente que sentia bem forte no peito também! Mas quando pisou o último degrau e virou-se para sua porta, notou as plantas murchas penduradas na grade do corredor, as suas cartas e algumas contas empilhadas na porta, o estado de abandono. Pegou sua chave, entrou e notou tudo exatamente igual ao dia em que fora embora, no quarto viu as mesmas gavetas que ela abrira ainda abertas, os lençóis, a janela aberta com sinal de chuva no chão, como se não houvesse ninguém para fechá-la quando choveu, todos os objetos nos mesmos lugares. A única diferença era a ausência do livro de cabeceira dele, suas duas mochilas, roupas e um retrato dela que ficava no criado mudo. Assustada, correu para fora e bateu na porta da vizinha. Uma mulher baixinha, bastante acima do peso, de cabelos toscamente pintados de loiro abriu a porta. A senhora, ao vê-la, soltou um gritinho de susto. Depois ganhou uma expressão triste e surpreso ao mesmo tempo. - Onde ele está? Ele viajou? Você sabe quando volta? Aconteceu alguma coisa? - A menina ruiva agitava seus cabelos com suas perguntas energéticas. Não estava se sentindo bem. - Ele... viajou mais o menos na mesma época em que você também sumiu. Pegou a bicicleta e não disse para onde ia. Mas... ontem recebemos a notícia... ele... morreu. Foi atropelado, aparentemente quando voltava para cá, na altura da Praia de Maresia. O canalha que o atropelou não prestou socorro, fugiu. A polícia contou que ele provavelmente morreu por perda de sangue, estirado no chão, com uma perna quebrada, duas costelas e a clavícula. A família o enterrou ontem à tarde mesmo, no final da tarde. O céu estava tão vermelho que parecia que o sangue dele escorrera também para o céu. - A moça ouviu tudo em choque. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Nunca perdera alguém querido, quanto mais aquela pessoa que amava, que precisava tanto ver depois da longa distância. Seus joelhos a abandonaram e deixaram-na despencar no chão, os olhos vertendo lágrimas como um açude em tempo de sangria. Não podia imaginar, não podia suportar, não podia pensar, não podia sentir aquele soco terrível que acertou-lhe o peito, abrira o punho e agarrara seu coração, apertando-o com tanta força que parecia que ele iria parar. Não podia... desmaiou. A última despedida havia sido de um silêncio de quem partia sem coragem de partir e por isso não quis dizer nada, apenas ir. A última despedida havia acontecido enquanto ele dormia exausto e triste e acordara vazio, sozinho. E a última e verdadeira despedida fora a dor terrível que ela sentia por perder aquele que partira por não aguentar perdê-la e que ficou suas últimas horas derramado no asfalto pensando apenas em encontrar com ela. O silêncio fez a vida e a morte, viu desabrochar o afeto sem medida, viu se afastarem, viu os caminhos se descruzarem e viu os dois sós... no silêncio.

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(Piano Duet - A Noiva Cadáver - uma música)

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

"Essa palavra que o sonho humano alimenta..."


Foi quando perdeu o que lhe era mais sagrado que se fez livre. Liberdade da perda, do vazio. Nada havia que o abraçasse e o mantivesse, nenhuma raíz no submundo, nenhum laço de cetim vermelho ou capilar delicado de vida. Talvez ele, como todos os seres encarnados do universo, não desejasse tal liberdade, ser um brilho no escuro. Mas não se trata de desejos e, no fim, talvez os desejos realmente devam se dissipar para que se possa prosseguir. Não havia mais o que desejar, estava despossuido do que lhe era sagrado, esta foi embora e teve que deixar ir. A liberdade confunde-se inegavelmente com a solidão, impulsionando-nos para longe dos outros ou então esclarecendo-nos simplesmente a impossibilidade do encontro duradouro. Ele e o Nada estariam completos? Precisava, não havia alternativas, não havia argumento ou ação que fizesse retornar o tempo e refazer o passado e nem mesmo gostaria disso. Estava ciente da ordem superior das coisas, compreendia no seu profundo eu as razões dos destinos e aceitava-as como quem aceita o nascer do sol, como alguém pequeno demais para discordar ou rebelar-se. O destino está acima da lei dos homens e à ele só se podia unir-se ou enganar-se. Estava farto do engano, mas também não tinha grandes conhecimentos a respeito da união. Era-lhe desconhecida, incompreensível, sublime. Como poderia, então, aprender, chegar ao ápice da unidade? Estava pronto? Abandonar tudo (o quê?)? A sabedoria da matéria lhe parecia inútil, desprovida de caminhos para seu objetivo. A profunda sabedoria, então, provavelmente se encontrava dentro dele, intrínseca, nata, completa. A única sacralidade restante era uma seta que guiava e o fim. O fim? Como? Não há fim para a vida, mas certamente que esta existência terrena não é tudo, nem mesmo muito. É uma fração mínima diante da magnitude da existência plena. Ele sabia - sempre soube ou aprendeu? Seria uma ingratidão para com suas vivências dizer que não fora um fruto colhido dos galhos do cotidiano, das dificuldades e aprendizados. Mas também não podia negar que já se encontrava nele. Talvez aprendeu apenas a ver o invisível. Livre e sábio, ciente, desperto, vendo, começou sua última caminhada pela Terra. Abandonou tudo o que antes pensava seu, mas que hoje descobrira que não era nada. Tomou o caminho do litoral sul e percorreu sóis e luas, nutrindo-se de um impulso maior e do mínimo de matéria que seu corpo precisava. Os sentidos se transportaram para outros mundos onde a fome e a sede eram lembranças infantis e, ao chegar à ponta escarpada e rija do continente, com o gelo cortante a dilacer sua pele nua e abandonada, ele finalmente fechou a última porta da matéria, deixando para trás a visão, a audição, o paladar, o olfato, o tato, o sono, a ambição, a angústia, a piedade, a paixão, a esperança, o sonho... e encontrou-se com o Nada e o Tudo, livre... o início e o fim em Um. Acordou n´um hospital, com todos os seus sentidos novamente, gritando! O mais imperioso deles era a dor. Uma dor perfurante que não sentira nem na inanição nem na hipotermia, uma dor maior que o isolamento ou a despressão. Era a dor pura de um corpo desprovido de anestesia. Cometera um erro (vários). Ainda não estava pronto e não fora aceito. Tivera uma falsa liberdade própria daquele que perdera, que tivera arrancado seu altar e que, por isso, ao invés de reerguê-lo ou levantar outro, decidiu ir embora. Não, ainda não estava pronto. Precisava de muito, precisava saber deixar ainda tendo, e não ir somente quando nada o prendesse. A enfermeira se aproximou dele e em doces palavras castelhanas consolou o sôfrego rapaz e aplicou-lhe uma injeção para acalmá-lo. Como a enfermaria daquele lugar distante estava vazia, sentou-se em sua cama e pôs-se a conversar com ele, questioná-lo sobre sua aventura ou loucura, conhecê-lo. A medida que contava, percebia e refletia sobre tudo. Ali ele descobriu o primeiro sinal do recomeço. Nascera novamente?