quinta-feira, 15 de outubro de 2009

"Essa palavra que o sonho humano alimenta..."


Foi quando perdeu o que lhe era mais sagrado que se fez livre. Liberdade da perda, do vazio. Nada havia que o abraçasse e o mantivesse, nenhuma raíz no submundo, nenhum laço de cetim vermelho ou capilar delicado de vida. Talvez ele, como todos os seres encarnados do universo, não desejasse tal liberdade, ser um brilho no escuro. Mas não se trata de desejos e, no fim, talvez os desejos realmente devam se dissipar para que se possa prosseguir. Não havia mais o que desejar, estava despossuido do que lhe era sagrado, esta foi embora e teve que deixar ir. A liberdade confunde-se inegavelmente com a solidão, impulsionando-nos para longe dos outros ou então esclarecendo-nos simplesmente a impossibilidade do encontro duradouro. Ele e o Nada estariam completos? Precisava, não havia alternativas, não havia argumento ou ação que fizesse retornar o tempo e refazer o passado e nem mesmo gostaria disso. Estava ciente da ordem superior das coisas, compreendia no seu profundo eu as razões dos destinos e aceitava-as como quem aceita o nascer do sol, como alguém pequeno demais para discordar ou rebelar-se. O destino está acima da lei dos homens e à ele só se podia unir-se ou enganar-se. Estava farto do engano, mas também não tinha grandes conhecimentos a respeito da união. Era-lhe desconhecida, incompreensível, sublime. Como poderia, então, aprender, chegar ao ápice da unidade? Estava pronto? Abandonar tudo (o quê?)? A sabedoria da matéria lhe parecia inútil, desprovida de caminhos para seu objetivo. A profunda sabedoria, então, provavelmente se encontrava dentro dele, intrínseca, nata, completa. A única sacralidade restante era uma seta que guiava e o fim. O fim? Como? Não há fim para a vida, mas certamente que esta existência terrena não é tudo, nem mesmo muito. É uma fração mínima diante da magnitude da existência plena. Ele sabia - sempre soube ou aprendeu? Seria uma ingratidão para com suas vivências dizer que não fora um fruto colhido dos galhos do cotidiano, das dificuldades e aprendizados. Mas também não podia negar que já se encontrava nele. Talvez aprendeu apenas a ver o invisível. Livre e sábio, ciente, desperto, vendo, começou sua última caminhada pela Terra. Abandonou tudo o que antes pensava seu, mas que hoje descobrira que não era nada. Tomou o caminho do litoral sul e percorreu sóis e luas, nutrindo-se de um impulso maior e do mínimo de matéria que seu corpo precisava. Os sentidos se transportaram para outros mundos onde a fome e a sede eram lembranças infantis e, ao chegar à ponta escarpada e rija do continente, com o gelo cortante a dilacer sua pele nua e abandonada, ele finalmente fechou a última porta da matéria, deixando para trás a visão, a audição, o paladar, o olfato, o tato, o sono, a ambição, a angústia, a piedade, a paixão, a esperança, o sonho... e encontrou-se com o Nada e o Tudo, livre... o início e o fim em Um. Acordou n´um hospital, com todos os seus sentidos novamente, gritando! O mais imperioso deles era a dor. Uma dor perfurante que não sentira nem na inanição nem na hipotermia, uma dor maior que o isolamento ou a despressão. Era a dor pura de um corpo desprovido de anestesia. Cometera um erro (vários). Ainda não estava pronto e não fora aceito. Tivera uma falsa liberdade própria daquele que perdera, que tivera arrancado seu altar e que, por isso, ao invés de reerguê-lo ou levantar outro, decidiu ir embora. Não, ainda não estava pronto. Precisava de muito, precisava saber deixar ainda tendo, e não ir somente quando nada o prendesse. A enfermeira se aproximou dele e em doces palavras castelhanas consolou o sôfrego rapaz e aplicou-lhe uma injeção para acalmá-lo. Como a enfermaria daquele lugar distante estava vazia, sentou-se em sua cama e pôs-se a conversar com ele, questioná-lo sobre sua aventura ou loucura, conhecê-lo. A medida que contava, percebia e refletia sobre tudo. Ali ele descobriu o primeiro sinal do recomeço. Nascera novamente?

Nenhum comentário: