domingo, 4 de outubro de 2009

Espanhola


Entro pela porta gigante, atravesso o cômodo de entrada de paredes rosadas, adentro no corredor de portas, dobro ligeiramente à direita, chego à sala dos livros e também sua casa. Abro seu sarcófago negro, retiro-a, sinto sua leveza, sua maciez, o brilho castanho em seu semblante, a vibração em suas seis línguas mágicas, graves e agudas, ponho-a em meu colo, seguro seu braço com delicadeza e com a mão direita faço-a cantar a melodia enfeitiçada que ela contém. Tenho pesar por ter esquecido tantas de suas lembranças. Outrora conhecia dezenas de melodias para serem extraídas deste coração instrumental. Minha amiga sonora espanhola, abandonei-te por anos exauridos de minha paciência pequena e hoje volto para a caverna melódica de teu coração com profunda ânsia de ouvir sua voz. A memória de meus dedos esgotou-se, caiu como cascas velhas de árvores renovadas, foi-se com os calos, substituida por uma pele macia e sem lembranças. Apenas quatro ou cinco canções foram mais fortes, estavam guardadas mais além, talvez na memória óssea de meu corpo e assim, mesmo depois dos anos, pude novamente fazer fluir por minhas mãos seus sons. Mas sinto uma saudade imensa de tudo que já soube, partituras decifradas, horas de práticas doloridas, desfrutes noturnos de sonatas ao luar. Já soube, já soube... e agora preciso saber novamente, meter-me na frustrante tarefa do aprendiz, reconstituir as fibras dos dedos endurecidos, da agilidade impossível das unhas que vibram as cordas do som e da beleza. Ao menos tenho dentro de mim algo que me consola... talvez seja uma verdade irreparável minha impaciência e por isso não deva nem mesmo tentar repor aquele repertório antigo, hoje fio-me na brincadeira juvenil de compor melodias solitárias, deixar que as pontas de meus dedos vagueiem pelas lombadas metálicas da guitarra espanhola em busca das canções que escondem, fazendo as inocências sonoras brotarem ruborescidas e cálidas, suaves e sozinhas. Queria, realmente, ao menos aprender a acompanhar essas melodias, dar-lhes o harmônico cenário de gravidade, de preenchimento, de plenitude, para não serem esses pés solitários andando pela floresta de sons, mas que sejam revoadas inteiras de notas voadoras que carreguem o peso do ar, dissipando-o, abrindo-o, expandindo-o. Sim, é isso que preciso fazer... e gostaria também de conseguir construir algo, de não precisar refazer tudo como se fosse a primeira vez a cada momento de dedicação... queria poder não esquecer, mas eu esqueço... aquilo que compus... e preciso criar novamente. Ah, Alhambra de minha alma, hoje minhas dores se sedimentam no baú sonoro de teu coração.

2 comentários:

J. C disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
J. C disse...

Meu Deus, como me agrada o som daquela guitarra me leva para outro lugar saltitando por cada nota...

=*