sábado, 31 de outubro de 2009
duas
Simples-
mente
começaram
a´brir a vida
deixar-me ver
sem nem sequer
precisar mover
um lábio a
perguntar
E saber ouvir
saber sorrir
algo assim
é incrível
não-crer
deveria eu
querer deixar
algo de mim?
Capela
Aos pés da escada
ao som dos muros
disfarçados de engano
nada encontrei
além de frio e vazio
passado.
Em outros degraus
mais acima (ou...)
palcos na paisagem
amizade no chão
gosto de gostar
às vezes não
eternidade não há
mas simplesmente
esteja, sim
não deixe passar
floresça a tua
alma clara
que a nuvem cinza
precisa da lágrima
p´ra se iluminar...
ao som dos muros
disfarçados de engano
nada encontrei
além de frio e vazio
passado.
Em outros degraus
mais acima (ou...)
palcos na paisagem
amizade no chão
gosto de gostar
às vezes não
eternidade não há
mas simplesmente
esteja, sim
não deixe passar
floresça a tua
alma clara
que a nuvem cinza
precisa da lágrima
p´ra se iluminar...
gestos
Olhos vermelhos
Vamos passear
Com areia nos dedos
e canções de ninar
me guio pelo vento
da sua voz
essa forma de luz
quando estamos sós
anéis de loucura
a colecionar
lembranças trançadas
ásperas de amar
penas caídas
nuvens rasgadas
bandoneón chorando
lágrimas de sal
deitado na sombra
da aurora de sonho
há flores no céu
e no chão há fugas
mas estou plantado
nesta asa de açúcar
derretendo sentidos
e matando planos
Relembrando idéias
tão constatemente
estamos livres de nós
eu e você somente
dois sem um desperto
um dia de alegre inverno
caos na distância pura
e ninguém por perto...
Vamos passear
Com areia nos dedos
e canções de ninar
me guio pelo vento
da sua voz
essa forma de luz
quando estamos sós
anéis de loucura
a colecionar
lembranças trançadas
ásperas de amar
penas caídas
nuvens rasgadas
bandoneón chorando
lágrimas de sal
deitado na sombra
da aurora de sonho
há flores no céu
e no chão há fugas
mas estou plantado
nesta asa de açúcar
derretendo sentidos
e matando planos
Relembrando idéias
tão constatemente
estamos livres de nós
eu e você somente
dois sem um desperto
um dia de alegre inverno
caos na distância pura
e ninguém por perto...
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
R-u-n
"Menina sagrada
.Não se levante
.para correr
.Fique comigo
.Eu fico triste
.Quando vais
.Areias do tempo
.Estão caindo
.No meu peito
.Fique assim
.Nas colinas
.Do meu peito
.Não acorde
.Me estranho
.Quando vais
.Paralise a noite
.Segure-me firme
.Sagrada menina
.Não se levante
.Sinto-me estranho
.Quando vais..."
(Run - Air - uma música)
.Não se levante
.para correr
.Fique comigo
.Eu fico triste
.Quando vais
.Areias do tempo
.Estão caindo
.No meu peito
.Fique assim
.Nas colinas
.Do meu peito
.Não acorde
.Me estranho
.Quando vais
.Paralise a noite
.Segure-me firme
.Sagrada menina
.Não se levante
.Sinto-me estranho
.Quando vais..."
(Run - Air - uma música)
terça-feira, 27 de outubro de 2009
bebendo
Um copo de água gelada
e a canção que eu gostaria de cantar
segurando no guidom da minha liberdade
n´um palco de areia branca e holofote de luar
regando as lembranças com murmúrios
e sorrisos mais suaves que brisas do mar
e a canção que eu gostaria de cantar
segurando no guidom da minha liberdade
n´um palco de areia branca e holofote de luar
regando as lembranças com murmúrios
e sorrisos mais suaves que brisas do mar
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
orvalhos noturnos
Nunca entrara naquela sala antes. Era como as outras, apenas n´um lugar diferente. A garrafa gelava a ponta dos seus dedos, enquanto bebia o líquido preto e saboroso que continha. Subiu os degraus sem enxergá-los, tentando não tropeçar, esperou que os olhos se acostumassem com a escassez da luz e quando surgiu um pequeno clarão, pôde ver um lugar para sentar. Acomodou-se, deitou a mochila aos pés, guardando o conteúdo dos bolsos, ficou a vontade. Antes que percebesse estava dando os últimos goles quando começou. Alguns minutos e estremeceu. Riu. Como pode ser assim tão suscetível? Àquela imagem, aquela figura, expressão, cores... sentia algo subir-lhe pela espinha, percorrer seus nervos, perfurar sua sensação de forma agradável, como se não pudesse resistir ao impacto causado. Aquela hora inteira passou-se assim, às vezes mais, às vezes menos. Tudo que importava era essa sensação, o resto era secundário. Foi-lhe surgindo uma certeza, um sentimento de possível, de proximidade, de alguém lá longe, mas lá. Saindo de seu lugar, notou quantas pessoas estavam ali, mas não prestou-lhes muita atenção. Encaminhou-se para a parada, estava alegre, as pernas vivas. Não pôde esperar e não queria chegar, então adiantou-se, foi caminhando. Pensando. Ouvindo - uma música triste, para deixá-lo feliz. Ocasionalmente uma velha saudade o invadia, aquela gosto na boca, nos olhos, no corpo. Aquele rosto formava-se a sua frente, as lembranças faziam fila ante seu coração, nunca amara tanto alguém, e pairava aquela dúvida anciã sobre se amaria tanto novamente, se era possível a mesma co-incidência de destinos n´um mesmo lugar e instante, na sintonia exata de dois em um. Se perdeu e sabia que não poderia ser diferente, mas às vezes pensava. Não havia como ter aprendido o que precisava antes, mais rapidamente, tomara o tempo preciso... e foi demais... Lembrava daquele tempo, exacerbado, acelerado, relógio que se fazia de ventilador, onde dias eram meses e semanas, eternidades de emoção. Foi tempo demais, tudo demais... E fora o maior que tivera... olhava sua mão direita e lá, naquele círculo prateado, guardava-se para sempre o reflexo, a pele, o que havia... naquele anel que ele trocara, que fora o dela. Seus passos eram velozes, mas curtos. Via alguns passarem por ele, em passadas compridas. Não tinha pressa. Ao fim do calçadão, se perguntou se era tempo de ir, mas ao se aproximar da parada, não conseguiu ficar e continuou. Atravessou ruas, pensando em outras coisas, revoltas do pensamento. Aquela noite era-lhe diferente porque pela primeira vez tinha a oportunidade de estar a pé naquela parte da avenida, podia ver de perto o que antes só via pela janela veloz. Finalmente pôde aproximar-se daquela cabana de telhado de palha, tão linda como nunca pudera notar na rapidez do veículo, tão mágica como só a proximidade podia revelar. Repleta de flores e naturezas, as paredes de madeira descansavam na penumbra e apenas uma borboleta resplandecia vítrea à luz tênue que lhe era apontada. Carregava do ventre sinos pequenos que também brilhavam, imóveis. Ao pé da porta pétalas vermelhas e amarelas dormiam, molhadas e cintilantes. Ficou parado ali demoradamente, apreciando, às vezes olhando ao redor para prevenir-se de alguma surpresa indesejada. Tentou guardar uma imagem daquele momento. Quando voltou ao caminho, viu o restante do lugar, sua profundeza e graça, encantado. Andou muito ainda. Olhava a hora para assegurar-se de que não perderia o último transporte. Cantava o que podia, inebriado pela música, lembrava-se da história que a acompanhava. Chegou à outro ponto que há muito desejava ir, mas também era-lhe contramão e, por isso, nunca tivera oportunidade. Apreciou a vitrine em busca de surpresas e extasiou-se por encontrar algo que lhe salvaria a vida, resolvendo um problema que estava se agravando com o passar dos dias. Lembrou-se de viagens antigas, de presentes que comprara para si, mas que dera para alguém especial... novamente ocorreria... exatamente igual, exceto que não pensava em si naquele instante. Estava perto daquele parque noturno. Hesitou se iria ou não até lá, estava tarde... fazer o quê? Mas pensou "que outra oportunidade terei?". Então foi. Aberto, ao ar livre, aqueles brinquedos imensos, coloridamente decorados, sozinhos e vazios, parados. Caminhava pelo estacionamento quase esquecido, com um olhar alegre e ao mesmo tempo distante, observando o tamanho gigante daquelas cabines que giravam no ar, soltando pequenos gritos vez por outra. Deu a volta no lugar, percorrendo-o atrás do que mais pudesse encontrar, chegou ao adorado carrossel que, se entrara alguma vez, fora quando criança (não tinha recordações). As luzes ainda ficaram acesas alguns instantes antes de se apagarem, a mulher que passou por ele sorriu, talvez indagando-se sobre o que fazia aquele rapaz ali. Aos poucos todas as lâmpadas incansavelmente festivas se apagavam, esperando dias mais animados, de mais crianças e pais puxados pelas mãos. Era chegada a hora da partida. Cruzou a rua, esperou o número certo chegar e subiu pela portinhola que se abria para os passageiros. Finalmente aproximava-se de casa. Não voltaria, se pudesse, pensava no dia em que teria meios para ir mais longe e mais tarde. E ao chegar, voltou-lhe a sensação... a beleza era sublime, e amava o que era sublime, amava e tinha saudade e ao mesmo tempo sentia-se pleno por si só. A música lhe era muito verdadeira no sentimento da voz, não importava a letra.
.
(Lies - Once - uma música)
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
(é)
E se o mundo não for assim tão
sombrio? (é)
Disciplinar
os olhos a não procurar,
fazê-los ver
a paisagem e os rostos
com fantasia
desfrutar e não
querer nada além
do que há.
Domesticá-los,
fazer do ardor uma forma
de sinfonia
de um trompete vermelho
e uma alfaia de concha do mar
Uma procissão à meia-noite
atravessando a constelação
dentro do olhar
que é
e mais nada.
(E se chover? - Dois em um - uma música)
sombrio? (é)
Disciplinar
os olhos a não procurar,
fazê-los ver
a paisagem e os rostos
com fantasia
desfrutar e não
querer nada além
do que há.
Domesticá-los,
fazer do ardor uma forma
de sinfonia
de um trompete vermelho
e uma alfaia de concha do mar
Uma procissão à meia-noite
atravessando a constelação
dentro do olhar
que é
e mais nada.
(E se chover? - Dois em um - uma música)
terça-feira, 20 de outubro de 2009
Cais
Estava na praia. Gostava muito de praia, sim? Outro dia se perguntava onde se refugiaria quando estivesse longe dela. Mas há muito tempo não recorria ao bálsamo marinho para aliviar seus pesos. Ultimamente foi a letra e não a onda que escorreu as dores ou inquietações. Mas ainda assim era apaixonado pela imensidão. Que outro lugar teria poder semelhante à canção do mar, à massagem da areia, à carícia do vento, à ternura da onda? Que floresta, ruela, praça, café, varanda ou terraço pode se igualar? Sentirá muita falta. Mas terá sua própria morada, tão sua que estará seguro e a ilusão da segurança será reconfortante. Não segurança, mas provavelmente afastamento, pertencimento, a sensação de ser parte do próprio mundo criado e decorado por ele mesmo. Longe de tudo, perto de ti. Estarás com ele? E os ideais hão de se reconstruir na possibilidade da empreitada, na ansiedade da transformação. E o que faríamos se fóssemos ilimitados, você e eu? Talvez seja apenas uma questão de escolha. Vamos para qualquer lugar...
Ainda
Um sonho bom. Sonhador, lógico, mas suficiente para motivar. Talvez rever antigas formas de ser, abandonadas por questões de segurança. Insistência? Sejamos menos inconsistentes, permanecer mais. E veja, acordado, as imagens ainda estavam nítidas na mente, foi profundo. Os sentimentos gerados ainda estavam no sangue. Cessar a caça às bruxas? Parar de mandar para a fogueira a frustração? Não sei, mas eu adoro cometer erros (ironicamente falando). Sejamos gentis. É certo, acostumou-se a estar pronto para as possibilidades, habituou-se a pensar o pior apenas para já ter familiaridade com a sensação caso se confirme, mas não deixemos esse extremo autoconfirmar-se, esperemos um pouco mais.
"Saudades de quem eu ainda não vi"
domingo, 18 de outubro de 2009
pintura
.Dueto Silencioso.
Eles mal se conheciam. Mesmo morando juntos há alguns meses, ele pouco sabia sobre a família dela ou seu passado, ela ignorava os tantos planos que ele tinha e suas obrigações do dia-a-dia. O rapaz não estava tão interessado ultimamente em conhecê-la demais, achava perigoso saber muitos detalhes sobre alguém. Ela andava tão concentrada em seus pequenos afazeres que pouco se lembrava de perguntá-lo particularidades. Se viam pouco, apesar de morarem juntos. Eram instantes ligeiros de dias esparsos. Nem mesmo todo dia. Ele às vezes precisava dormir longe, qualquer lugar distante, para acalmar e abrir as nuvens do pensamento e ela ia para festas que emendavam no dia seguinte ou simplesmente não dava notícia. Funcionava assim. Mas quando se viam, não se achavam desconhecidos, sentiam tantos e incontáveis estalar de sentimentos nos limites da pele e dos nervos que estarem juntos encontrava seu sentido. Acordou cedo, era uma sexta, mas não teria que trabalhar. A luz esparsa da janela invadiu levemente sua pupila que se contraiu, enquanto seu corpo espriguiçava-se. Notou que ela estava ao seu lado, virada para a borda da cama, com o lençol esparramado por seu corpo, as pernas descobertas, dobradas. O afeto que tinha por aquela menina correu por suas mãos até acariciar seu ombro. Beijou-lhe o rosto com delicadeza, para não acordá-la, passou os dedos por seus cabelos vermelho vivo. Então, lentamente, levantou-se, tocou os pés descalços no chão frio de concreto encerado e foi escovar os dentes. Pelo espelho a viu se levantar, chegar-lhe junto e abraçá-lo pelas costas, enlaçando seu corpo com um carinho que ele tanto gostava - Bom dia, amor - disse ela, com a naturalidade dos que expressam o que sentem, sem pensar. Ele respondeu com um sorriso e um beijo terno naqueles lábios rosados. Foram para a cozinha. O rapaz cortou duas laranjas em quatro pedaços cada, partiu uma melancia, lavou um cacho de uvas, bateu no liquidificador uma vitamina de uva. Ela fez torradas com queijo. Comeram tranquilamente, teriam a manhã livre. Deitaram-se nas almofadas da sala um pouco, ouvindo o canto dos passarinhos nas árvores ao redor da casa. Depois, ele levantou-se. - Deu-me uma vontade de pedalar, vamos? - ele a convidou - Nunca nessa vida! - Ele riu, pois sabia que ela não viria, à conhecia um pouquinho, afinal de contas. Colocou uma roupa leve, pegou a chave do cadeado da bicicleta, pôs a música para tocar e saiu pelo portão. Desceu a ladeira com alegria, sentindo a brisa fria no rosto, o sangue das pernas pulsando como máquina a vapor, incessantemente. Fazia curvas, subia calçadas, cruzava praças, chegou ao calçadão da praia, ouviu o som da maré trazida pela lua, do choque da água salina contra as rochas negras. Quando voltou, suado, aliviado da energia excedente, foi direto para o chuveiro. A água corrente purgando o cansaço, dando-lhe fôlego novo. Notou que ela não estava. Pegou uma maçã e foi na locadora pertinho da casa. Alugou vários filmes, alegres, tristes, românticos, tensos, para desfrutar por várias horas àquele fim de semana. Ela chegou no meio do primeiro filme. Não disse de onde vinha, ele também não perguntou, não se davam satisfações. Tinham um pacto silencioso de serem independentes. Sentou-se junto dele nas almofadas, ele sentiu aquele perfume encantador. Resumiu ligeiramente o início do filme. À noite, sentados à mesa da cozinha, só aquela lâmpada amarelada acesa na casa inteira, o silêncio arranhado apenas pelo som de alguma cigarra urbana, eles se olhavam. Faziam isso de vez em quando, observarem-se, tentando imaginar o que haveria por trás dos olhos um do outro. - Amor, como estamos? - Ele perguntou. - Não sei, éramos para estar como? - disse a menina. Ele continuou - Eu me sinto muito bem com a forma como estamos vivendo, livres, mas juntos, próximos, mas soltos. Conhecemos outras pessoas, passamos bons momentos com elas, temos excelentes momentos juntos. Há entre nós uma intimidade deliciosa mas que preserva nossas individualidades. É incrível. Mas agora há pouco tive uma idéia, estava pensando, ninguém consegue expressar exatamente como se sente, não é possível dizer em palavras, e traduzir sentimentos é distorcê-los, nossa linguagem é pífia diante do subjetivo. O que quero dizer é o seguinte, nunca precisamos dizer nada um ao outro quanto às nossas ações, sempre fizemos o que nos dava vontade. Quanto aos nossos sentimentos, como seria se tentássemos por um tempo expressá-los sem palavras, através de outras linguagens mais puras que brotassem de nós? - Ela não disse nada, sorriu. Ele também sorriu. Atravessou os dois metros e meio que os separavam, ajoelhou-se diante dela, segurou suas mãos e as beijou com carinho, fechou os olhos e deixou que os lábios sentissem o calor de sua pele e que a pele dela sentisse a maciez de seus lábios, depois beijou-lhe a boca, deixou que suas línguas conversassem outras idéias maiores que as palavras. O sangue aflorou à pele, ruborecendo-os, as respirações ofegaram, as mãos começaram a caminhar pelas roupas, tirando-as. Deitados nos tapetes felpudos da sala, transaram, sem palavras, apenas os sons escapados de excitação, as canções de prazer, as falas naturais dos corpos. Ele sentiu grande dificuldade apenas em uma coisa naquele silêncio, não poder dizer "eu te amo". Era-lhe um pequeno vício, ele adorava, dizia, dizia, dizia, e agora não podia fazê-lo. Olhava para ela, seus olhos brilhavam, também os dela, suas bocas beijavam suculentas todos os cantos dos corpos, dos pés às coxas, às sensibilidades, até os últimos centímetros do rosto. Mas ainda assim queria dizer a ela "eu te amo". Já sob a luz tênue do amanhecer, ainda acordados, escreveu com a ponta do dedo no ar, na barriga suave dela, na parede, em todos os lugares. Ela brigou com ele, fez que 'não' com o indicador. Nenhuma palavra, nem mesmo escrita. Ela gostara demais do jogo. Ele sentiu uma pequena contrariedade. Mas tudo bem, deitou-se nos seios queridos, ouvindo seu coração e deixou-se dormir. Manhã alta, acordou com um beijo sabor morango. Tinha feito um suco. Coloca outro filme para assistirem. No silêncio, eram forçados a se concentrar mais no filme ou então nos detalhes um do outro. Ele reparou como a pálpebra inferior do olho esquerdo dela às vezes tremia, pois ela fazia um pequeno esforço para enxergar as legendas. Ela notou que ele adquirira o hábito de apertar os lábios quando se concentrava e viu também que ele roía as unhas mais do que imaginava. Podiam falar, mas não um com o outro. Canções eram permitadas. "Medo, escorre entre os meus dedos, entre os meus dedos, eu lambo os dedos, saboreio meu próprio medo"... ela cantarolou. Ele não gostava da música original, mas a voz fina dela cantando lhe era tão bonita. Notaram as várias formas de expressão que as pessoas tinham. Pela música que se escolhia para ouvir se notava muitos sinais sobre os sentimentos, mas não se podia confiar demasiado significado à isso. Eram precisos outras coisas. Desenhos rabiscados nos cadernos de anotações deles também indicavam estados de espírito, filmes escolhidos para rever, comidas cujo desejo despertara, sedes sexuais mais ou menos afloradas. Claro que nenhum dos dois racionalizava todos esses sinais, apenas os sentia e sambavam de acordo com os sentimentos que emanavam um do outro. Podiam ter momentos em que não se dirigiam o olhar, outros em que se deixavam ficar abraçados a noite inteira, acariciando-se. Fora de casa, nos seus trabalhos ou na rua, óbvio que eles falavam. Tudo estava bem. Várias noites ele ia conversar com uma amiga, compartilhar o que acontecia, o que ele descobria, suas percepções. Já ela não comentara o jogo deles com ninguém. Pouco dizia daquele relacionamento para outras pessoas. Guardava para si ou escrevia em seus cadernos secretos, quase como um diário, mas onde também anotava poesias e historietas. Uma noite ele quis viajar, passar o fim de semana na praia. Queria que ela fosse junto, mas como dizê-la? Tentou por meio de gestos, mas estava difícil. Desenhou uma praia n´um papel e a moto dele com os dois viajando. Anotou a data do fim de semana, quebrou a regra e escreveu "viajar". Ela deu-lhe uma tapinha na mão por ter feito isso. O rapaz já estava ficando impaciente com a tamanha seriedade que ela estava tendo para com o jogo, chegou a pensar que fosse uma desculpa para não conversarem nem discutirem assuntos que pudessem incomodar. Talvez fosse algo bom, tornava a relação mais simples e afetiva, mas também podia ser algo ruim. Vendo o rosto chateado dele, ela enroscou-se em seu pescoço e deu-lhe vários beijinhos por toda a face, balançando a cabeça afirmativamente. A idéia era ficarem naquela pousada já bem conhecida dos dois por três dias, relaxando, nadando no mar, meditando, tendo manhãs, tardes e noites bem ardentes. Não saiam, até porque passar uma hora sentados n´uma mesa em um restaurante em silêncio é irritante para qualquer casal que exista. Melhor o silêncio desfrutado na intimidade da cama ou na paz da praia. Mas no silêncio dela, ela pensava muito sobre eles, sobre estarem juntos, sobre o que ela queria, o que estava fazendo, estava sentindo. Tinha o excelente pretexto do jogo para não dizer nada para ele, mas ela estava pensando bastante, por algum motivo estava triste, mas não sabia o quê. Mas sua postura permanecia muito semelhante, ele não chegara a notar nenhuma diferença, até porque o fato dela sair para caminhar na praia e ficar duas horas fora era algo comum no relacionamento deles, tanto da parte dele como dela. O amor deles era tão livre de restrições e preocupações que já estava cansando não se poder reclamar de absolutamente nada. Até mesmo se quisessem ver outras pessoas, podiam, mas sempre que estavam com outro alguém, sentiam falta um do outro. Ele mesmo já fazia algum tempo que não conhecia ninguém, via em todas o rosto dela e preferia o rosto real à ficar imaginando-a por ai. Na última tarde de viagem, de praia, de cama e brisa, estavam deitados, lençóis brancos bagunçados sobre a cama, ele estirado como que pesado, ela sentada ao lado dele, com um braço apoiando-se sobre ele. - Preciso te dizer uma coisa - O rapaz ficou surpreso em ouvir a voz dela depois de quase dois meses do jogo do silêncio. - Vou ficar longe por uns tempos. Não serão os um ou dois dias que às vezes sumimos, dormindo fora, coisa assim. Vou viajar para algum lugar, longe, nem mesmo sei para onde, mas vou. Quarta feira eu parto. Tenho algumas coisas para resolver, mas até lá estará tudo feito. Não sei, apenas estou precisando ficar longe. Eu te amo, amo sim, mas estou confusa, não estou entendendo bem alguns sentimentos, não sei. Espero que fique bem. - Ele a olhou perplexo, surpreso. Para ele aqueles dias de silêncio haviam aprofundado tanto o relacionamento deles, fazendo-os mais próximos, convivendo mais um com o outro, um afeto tão delirante que ele acabara precisando mais da presença dela e agora ouvi-la dizer que iria partir sem nem mesmo saber por quanto tempo o deixou chocado e desolado, como se em um instante algumas palavras fizessem desaparecer aquele paraíso silencioso e primordial que se instaurara entre eles. Não notara quando essa suposta confusão surgira nela, não entendia como podia ter acontecido. O que faltava? O que estava acontecendo? O quê? Olhava fixamente para o lençol, pensando, ou tentando pensar. Não a mirou por alguns minutos. Depois despencou e ficou olhando para o teto, a luz da manhã se esparramando pelo branco e refletindo no lustre. Ficou em silêncio. Não conseguia dizer nada, não havia o que dizer. Se ela queria ir embora, nada poderia fazer para impedir, nem tentaria, eram livres, ela era livre, se quisesse se ver livre dele, podia. Já ele, naquelas graciosas semanas, só queria se prender àquela menina, aproximar-se cada vez mais e ficar perto, bem perto, sentindo seu calor, sua pele, sua alma. Ver-se preso àquele olhar criativo, as mãos inquietas, o riso gostoso, a boca de amor. Ah, como mudara desde o início de seu jogo. Jamais imaginara tais resultados, maior apego, maior amor. Um bem-querer que o iluminava, energizava sua vida e acalentava seu coração. E agora, ela vinha lhe dizer que iria embora. Depois de alguns momentos, um surto repentino de orgulho mesclado com tristeza fez-lhe pronunciar suas primeiras palavras - Pois bem - E o tom de sua voz transpareceu até um certo desprezo, quase uma raiva. Mas logo se desvaneceu a hostilidade, caiu-lhe um peso e deitou-se com o rosto virado contra o travesseiro. Quis dormir. Ela passou sua mão por suas costas, acariciando-o com as unhas. Ele imaginava como seria perdê-la, não tê-la mais por tempo indeterminado. Era fácil passar um, dois, até três dias sem vê-la, fazer qualquer coisa, ocupar-se de seus interesses, mas, não saber quando voltaria pareceu-lhe cruel. Quarta feira, outro choque. Acordou e não a encontrou, viu que o armário estava mais vazio, as sandálias e vários objetos de uso dela não estavam, ela viajara sem se despedir. Na noite anterior, estiveram mais afastados, ele tentou abraçá-la mas sentiu como se não a alcançasse. Estava já longe, perdida, distraída. Nas primeiras horas da manhã a angústia explodiu em seu peito, incontrolável. Levantou-se nervoso, irritado, precisava colocar para fora o que quer que o asfixiasse, socou a parede com uma força que quase quebrou-lhe a mão. A dor o acalmou mais, deitou-se. Tentou relaxar, pensar, encontrar-se. - Tudo bem, ela foi embora. Será que volta? É bem possível que não, do jeito que ela é. Como pode?! O que houve?! - disse em voz alta, conversando consigo, a voz trêmula. - Put...que...rda! - Gritou. Depois fez um silêncio prolongando, quebrado pela resolução - Tudo bem! Foda-se. Não importa. Estou muito bem. Só não quero ficar mais nesse quarto ou nessa casa por uns tempos, cada maldito centímetro desse lugar está marcado dela e quero esquecê-la por uns tempos também! Foi embora, também me vou. - Foi ao trabalho e se demitiu. Tinha algumas economias que o sustentariam, gastaria pouco. De volta, agarrou suas duas mochilas e socou algumas peças de roupa, lençol, toalha, coisas necessárias para viagem, alguma coisa de cozinha e higiene, alguns livros, um caderno, lápis e borracha. Feitas as malas, que deviam estar o mais leves possíveis, arrumou-as no bagageiro da bicicleta, junto com sua barraca, o fogareiro e uma panela. Secar as pernas até não aguentar mais, era o que queria. Rumou para o norte, atravessou o arco de concreto gigante que cruzava o rio. Passaram-se algumas semanas, cartas se acumularam na porta da casa. Somente a vizinha do lado esquerdo, que ocasionalmente eles pagavam para lavar as roupas deles viu a partida dele e estranhou também o sumiço dela, que na ocasião, não acompanhava o rapaz. Dois meses e meio depois daquela quarta-feira, ela volta. Estava alegre, feliz, morta de saudades dele. Enviara algumas cartas, tranquilizando-o, não ligou porque... não sabia o porquê. Subiu as escadas que davam para o apartamento, terceiro andar, de frente para o pôr-do-sol. Do corredor do prédio se podia ver a admirável paisagem. Ela ficou feliz por ter esse cenário tão belo na sua chegada, queria pular nos braços dele, derrubá-lo no chão e dizê-lo "eu te amo, eu te amo, eu te amo" - Sabia que ele adorava ouvir, e logicamente que sentia bem forte no peito também! Mas quando pisou o último degrau e virou-se para sua porta, notou as plantas murchas penduradas na grade do corredor, as suas cartas e algumas contas empilhadas na porta, o estado de abandono. Pegou sua chave, entrou e notou tudo exatamente igual ao dia em que fora embora, no quarto viu as mesmas gavetas que ela abrira ainda abertas, os lençóis, a janela aberta com sinal de chuva no chão, como se não houvesse ninguém para fechá-la quando choveu, todos os objetos nos mesmos lugares. A única diferença era a ausência do livro de cabeceira dele, suas duas mochilas, roupas e um retrato dela que ficava no criado mudo. Assustada, correu para fora e bateu na porta da vizinha. Uma mulher baixinha, bastante acima do peso, de cabelos toscamente pintados de loiro abriu a porta. A senhora, ao vê-la, soltou um gritinho de susto. Depois ganhou uma expressão triste e surpreso ao mesmo tempo. - Onde ele está? Ele viajou? Você sabe quando volta? Aconteceu alguma coisa? - A menina ruiva agitava seus cabelos com suas perguntas energéticas. Não estava se sentindo bem. - Ele... viajou mais o menos na mesma época em que você também sumiu. Pegou a bicicleta e não disse para onde ia. Mas... ontem recebemos a notícia... ele... morreu. Foi atropelado, aparentemente quando voltava para cá, na altura da Praia de Maresia. O canalha que o atropelou não prestou socorro, fugiu. A polícia contou que ele provavelmente morreu por perda de sangue, estirado no chão, com uma perna quebrada, duas costelas e a clavícula. A família o enterrou ontem à tarde mesmo, no final da tarde. O céu estava tão vermelho que parecia que o sangue dele escorrera também para o céu. - A moça ouviu tudo em choque. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Nunca perdera alguém querido, quanto mais aquela pessoa que amava, que precisava tanto ver depois da longa distância. Seus joelhos a abandonaram e deixaram-na despencar no chão, os olhos vertendo lágrimas como um açude em tempo de sangria. Não podia imaginar, não podia suportar, não podia pensar, não podia sentir aquele soco terrível que acertou-lhe o peito, abrira o punho e agarrara seu coração, apertando-o com tanta força que parecia que ele iria parar. Não podia... desmaiou. A última despedida havia sido de um silêncio de quem partia sem coragem de partir e por isso não quis dizer nada, apenas ir. A última despedida havia acontecido enquanto ele dormia exausto e triste e acordara vazio, sozinho. E a última e verdadeira despedida fora a dor terrível que ela sentia por perder aquele que partira por não aguentar perdê-la e que ficou suas últimas horas derramado no asfalto pensando apenas em encontrar com ela. O silêncio fez a vida e a morte, viu desabrochar o afeto sem medida, viu se afastarem, viu os caminhos se descruzarem e viu os dois sós... no silêncio.
.
(Piano Duet - A Noiva Cadáver - uma música)
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
"Essa palavra que o sonho humano alimenta..."
Foi quando perdeu o que lhe era mais sagrado que se fez livre. Liberdade da perda, do vazio. Nada havia que o abraçasse e o mantivesse, nenhuma raíz no submundo, nenhum laço de cetim vermelho ou capilar delicado de vida. Talvez ele, como todos os seres encarnados do universo, não desejasse tal liberdade, ser um brilho no escuro. Mas não se trata de desejos e, no fim, talvez os desejos realmente devam se dissipar para que se possa prosseguir. Não havia mais o que desejar, estava despossuido do que lhe era sagrado, esta foi embora e teve que deixar ir. A liberdade confunde-se inegavelmente com a solidão, impulsionando-nos para longe dos outros ou então esclarecendo-nos simplesmente a impossibilidade do encontro duradouro. Ele e o Nada estariam completos? Precisava, não havia alternativas, não havia argumento ou ação que fizesse retornar o tempo e refazer o passado e nem mesmo gostaria disso. Estava ciente da ordem superior das coisas, compreendia no seu profundo eu as razões dos destinos e aceitava-as como quem aceita o nascer do sol, como alguém pequeno demais para discordar ou rebelar-se. O destino está acima da lei dos homens e à ele só se podia unir-se ou enganar-se. Estava farto do engano, mas também não tinha grandes conhecimentos a respeito da união. Era-lhe desconhecida, incompreensível, sublime. Como poderia, então, aprender, chegar ao ápice da unidade? Estava pronto? Abandonar tudo (o quê?)? A sabedoria da matéria lhe parecia inútil, desprovida de caminhos para seu objetivo. A profunda sabedoria, então, provavelmente se encontrava dentro dele, intrínseca, nata, completa. A única sacralidade restante era uma seta que guiava e o fim. O fim? Como? Não há fim para a vida, mas certamente que esta existência terrena não é tudo, nem mesmo muito. É uma fração mínima diante da magnitude da existência plena. Ele sabia - sempre soube ou aprendeu? Seria uma ingratidão para com suas vivências dizer que não fora um fruto colhido dos galhos do cotidiano, das dificuldades e aprendizados. Mas também não podia negar que já se encontrava nele. Talvez aprendeu apenas a ver o invisível. Livre e sábio, ciente, desperto, vendo, começou sua última caminhada pela Terra. Abandonou tudo o que antes pensava seu, mas que hoje descobrira que não era nada. Tomou o caminho do litoral sul e percorreu sóis e luas, nutrindo-se de um impulso maior e do mínimo de matéria que seu corpo precisava. Os sentidos se transportaram para outros mundos onde a fome e a sede eram lembranças infantis e, ao chegar à ponta escarpada e rija do continente, com o gelo cortante a dilacer sua pele nua e abandonada, ele finalmente fechou a última porta da matéria, deixando para trás a visão, a audição, o paladar, o olfato, o tato, o sono, a ambição, a angústia, a piedade, a paixão, a esperança, o sonho... e encontrou-se com o Nada e o Tudo, livre... o início e o fim em Um. Acordou n´um hospital, com todos os seus sentidos novamente, gritando! O mais imperioso deles era a dor. Uma dor perfurante que não sentira nem na inanição nem na hipotermia, uma dor maior que o isolamento ou a despressão. Era a dor pura de um corpo desprovido de anestesia. Cometera um erro (vários). Ainda não estava pronto e não fora aceito. Tivera uma falsa liberdade própria daquele que perdera, que tivera arrancado seu altar e que, por isso, ao invés de reerguê-lo ou levantar outro, decidiu ir embora. Não, ainda não estava pronto. Precisava de muito, precisava saber deixar ainda tendo, e não ir somente quando nada o prendesse. A enfermeira se aproximou dele e em doces palavras castelhanas consolou o sôfrego rapaz e aplicou-lhe uma injeção para acalmá-lo. Como a enfermaria daquele lugar distante estava vazia, sentou-se em sua cama e pôs-se a conversar com ele, questioná-lo sobre sua aventura ou loucura, conhecê-lo. A medida que contava, percebia e refletia sobre tudo. Ali ele descobriu o primeiro sinal do recomeço. Nascera novamente?
terça-feira, 13 de outubro de 2009
Dor-mir (guerra e paz)
Sempre admirei as pessoas que a mim pareciam autosuficientes, independentes, que iam aonde queriam, mesmo que não houvesse companhia, e sem pestanejar, sem pudor da própria solidão. Aos quinze era meu ideal, não precisar, não depender, não carecer. "Você nunca estará sozinho se gostar da pessoa com quem está quando se está sozinho" - eu admirava. Depois, algumas venturas me fizeram voltar, desacreditar ser possível tal isolamento. Eu tendia ao extremo de ver a autonomia com um total afastamento, já que 'os outros' não me pareciam próximos. Mas quando percebi que o encontro podia ser real, tomei que "a felicidade só é verdadeira se compartilhada". Porém, como as verdades só se mantêm até descobrirmos algo novo, hoje já não me fio demasiado nesse ponto de vista. Pude ver um outro lado o qual só conhecia através da visão oposta e percebi o que significa querer estar longe. Quis estar só, vivi o silêncio da minha própria distância, percebi o frio que eu fazia sentir (e não em mim) e descobri como é andar quase se esgueirando, para que se visse menos ou não me vissem. Ninguém nos completa, talvez seja a nova verdade. Podemos aprender, sim, como nos completar ou novas formas de organizar nossas completudes, de se expandir com as vicissitudes, colecionar outras maneiras de agir. Mas, se for assim, eu não preciso mesmo de você, mas posso querer estar contigo ou com ela ou com outra pessoa mais, alguém. E depois não, acabou. Cansei. Fui-me um pouco, posso voltar. Não encontrei? Faço algo novo. Assim, espontâneo, circunstancial. "Minha inconstância é sabida de mim mesmo" - eu rabisquei na capa de trás de um caderno antigo. Eu sempre soube. Talvez possa ser constante em poucas coisas, mas confesso que me soará mecânico e falso... gosto do novo? É fato. Que desafio! Eu mesmo me vejo envelhecer, que deixo de ser novo por vários momentos, dias, semanas... como poderia, afinal, olhar-me sempre no espelho e não ver algo do passado? E como, então, querer sempre o novo? Querer encontrar algo interessante e desconhecido? Com que rigorosidade ansiar por isso? Não, não se trata de rigor... nem de exagero... O amor é a trilha que atravessa a oscilação e segura em nossa mão e isso basta. Mas não é tão simples. E eu já não gosto de simplicidade, quero algo complicado, complexo, difícil, estimulante. Surge ainda outra preocupação - o que torna alguém interessante ao ponto de despertar sentimentos mais profundos? O que me é interessante? Quantidades exorbitantes de livros, músicas e filmes? Ou ao menos um desses? Tão comum... algo para passar o tempo, fazer comentários, trocar impressões... Ou então uma sensação sedutora de estranhamento, um desconhecido atraente, mágico? E ainda a imprescindível afinidade de pensamentos, encontro de perguntas e respostas, contrastes de gostos e sabores deliciosos? Algo disso, algo de outras coisas também. Há muito tempo carrego comigo a ânsia de tornar a vida interessante, aproveitar o tempo, conhecer o que houver para conhecer e assim, deixar iscas na superfície supostamente límpida que atraiam alguém. E quando estamos cansados? E quando se deseja apenas parar um pouco, descansar no ombro, fechar os olhos, segurar na mão? A névoa de interesse se dissipa, percebemos a velhice de todos e de nós mesmos e vemos partir o ombro querido? Não há mais interesse? Vivo aprendendo. Não consigo viver nada sem perceber o que aprendi... e talvez seja essa a razão de achar que aconteceu para o bem, porque se de outra forma fosse, não teria aprendido. Mas, como cada resposta traz no mínimo duas outras perguntas, coleciono-as. Primeiro, existe na minha e em outras índoles essa necessidade de afastamento inegável, sim. Porém, será que ela pode ser temporária? Será que a pessoa pensa (ou sente) - "preciso de um tempo para mim agora, mas volto"... Existerá mesmo isso? Por que tendo para o extremo, sempre. Foi embora? Arranco de mim seu afeto, acabo. Não quero o que não tenho, ao menos me forço. E não volto. E se ela volta? Sempre me pergunto. E eu também me afasto e questiono se a pessoa deveria ficar esperando, que direito eu tenho de pedir-lhe para esperar (sem pedir)... e se eu gostaria mesmo de que esperasse... talvez fosse melhor que ela caminhasse por outros caminhos (e eu não acredito em reencontros). Como fica? E descobri que não suporto carências excessivas... e censuro-me quando me sinto assim. Ah, não se arraste em mim como um ser abandonado... é triste e nada bonito. Uma orfandade de si mesmo que não suporto. Encontre-se, seja sem mim porque eu sou sem você. É o que tenho aprendido, não podemos carecer de ninguém e que ninguém careça de mim. E confesso que meu coração se confunde, este "pródigo coitado", mas hei de descobrir a medida. Então? Autosuficiente 'doa-dor' que não se gasta em expectativas e vive tão somente o que se apresenta ou se planeja? E quanto às expectativas que se geram sobre nós, o que fazer? Evitá-las ou ignorá-las ou deixar que surjam sem se preocupar? Contanto que se tenha coragem para frustar, talvez não se possa evitar. Não sei, vou passar um tempo sem elas também. Sobrevoar as turbulências e senti-las sem juízo, divagar por mundos inventados, deixar-me arrastar pelo acaso da surpresa, uma caixinha de surpresas. O que achas? Concordas? Não me tenhas por certo, eu sou amigo da incerteza, minhas amizades são todas subjetividades. E não me procure, lance uma mão perdida na escuridão da vida e talvez assim me encontre, enquanto eu estiver me encontrando - interrupção? Não pararei mais, iremos caminhar juntos, enquanto quiseres, enquanto eu quiser... querer é poder? Apenas quando estamos dispostos ao que vier. Venha destino,"pro que der e vier, comigo..."
sexta-feira, 9 de outubro de 2009
Ledo engano (do fim)
As longas envergaduras planavam sem esforço pelo céu de ventos agitados, prenúncio de tempestade naquele cais de porto. Gaivotas revoando em acrobacias dignas de Fernão Capelo. O pátio escurecido estava quase deserto, a não ser por aqueles dois e o imenso navio de passageiros prestes a partir. Eles estavam um de frente para o outro, mas não se olhavam. Pairava um silêncio que oscilava entre desconforto, ansiedade e angústia. Em instantes ele iria embora e provavelmente nunca mais se veriam. Chegariam a se corresponder? Teriam o que dizer um ao outro em cartas curtas de pouco mais de uma página?
- Vou sentir saudades. - ela murmurou.
- Passa. - Soou um pouco seco. - E contraditoriamente eu diria que jamais te esquecerei.
- É, contraditório. Você acha que me ama mais do que eu à você? - Nesse momento ela levantou o olhar e o pousou nos olhos dele - Não sou eu quem está indo embora.
- Já fomos embora, amor, agora apenas concretizo. - Lamentou o rapaz tristemente.
- Não era preciso, poderíamos nos esbarrar de novo, agora nem isso.
- No meu absolutismo, não conseguiria imaginar um reencontro. O que morreu só ressuscita em outro corpo. Nesta vida, está selado para sempre. - ele disse, abraçando-a. Era mentira, ele a amava, mas sabia que nela não restava nada e por isso queria partir. Nada havia naquela cidade para ele.
- Poderei visitá-lo? Para onde você vai, afinal? - ela o questionou, com esperança nas palavras.
- Para quê? Por que queres me ver? O que há para se fazer ainda? Não já fizemos tudo que havia para nós? - Insistia em perguntar, não conseguia entendê-la.
- Vou sentir saudades. - ela murmurou.
- Passa. - Soou um pouco seco. - E contraditoriamente eu diria que jamais te esquecerei.
- É, contraditório. Você acha que me ama mais do que eu à você? - Nesse momento ela levantou o olhar e o pousou nos olhos dele - Não sou eu quem está indo embora.
- Já fomos embora, amor, agora apenas concretizo. - Lamentou o rapaz tristemente.
- Não era preciso, poderíamos nos esbarrar de novo, agora nem isso.
- No meu absolutismo, não conseguiria imaginar um reencontro. O que morreu só ressuscita em outro corpo. Nesta vida, está selado para sempre. - ele disse, abraçando-a. Era mentira, ele a amava, mas sabia que nela não restava nada e por isso queria partir. Nada havia naquela cidade para ele.
- Poderei visitá-lo? Para onde você vai, afinal? - ela o questionou, com esperança nas palavras.
- Para quê? Por que queres me ver? O que há para se fazer ainda? Não já fizemos tudo que havia para nós? - Insistia em perguntar, não conseguia entendê-la.
- Mas eu quero ir, oras! - Ela continuou, com um brilho no olhar que o deixava tonto.
- Pois bem, saberás onde me encontrar pelo endereço da carta... - Ele não acreditava realmente que isso pudesse acontecer, não esperava nem sequer receber resposta para sua primeira carta, que já estava escrita e guardada em sua mochila. Seria seu primeiro destino ao desembarcar do navio, o correio.
- Você é tão linda... talvez o que mais vai me doer é não poder mais derramar-me em sua beleza... sua voz... sua pele... e eu não deveria estar dizendo essas coisas... mas, já que estou indo embora mesmo, não importa... - Falava lentamente, sem forças... uma saudade atroz já se apoderava dele e fazia pesar seu esqueleto como se fosse um fóssil enterrado sob toneladas de rochas. - Por que sou eu quem tem que ir embora, se foi você que quis partir? - saiu quase inaudível por entre seus lábios, que queriam se fechar antes de pronunciar as palavras. Ela fez silêncio. E o silêncio bastou. O último abraço foi forte como não eram os abraços há semanas intermináveis. Sem ele perceber ela colocou no bolso dele um papel... Ele ainda olhou nos seus olhos uma última vez? Sua lembrança daquele momento se atordoou n´uma convulsão de todos os seus olhares que ele admirara e nos quais se afogara, se embebedara, se extasiara... aqueles olhares de inocência perdida, de primavera nublada, de madrugadas acordadas... Segurou seu rosto com as duas mãos, sentindo a tez mais suave que existia, e de olhos fechados, tocou-lhe os lábios... e ainda cego, virou-se e subiu as escadas até o convés do grande navio. Começou a chuviscar, pequenas gotas que em seu rosto pareciam lágrimas... talvez fossem... ela correu para esconder-se da garoa e o grito da sirene náutica anunciou um recomeço imprevisível... e era exatamente isso que ele precisava, imprevisibilidade... somente.
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o papel no bolso dele dizia ...'mistério'... e ao redor um desenho da lua e nuvens negras... eaquele papel morou com ele para sempre.
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(Do Sétimo Andar - versão - Los Hermanos - uma música)
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
lembro... (do moinho)
"Sinto que o sentir sabe mais que o saber"
Ribeira
(Foto: Bruna)
Ribeira
(Foto: Bruna)
(Le moulin - Yann Tiersen - uma música)
Trupe
O que precisamos é de magia, nada mais! Que seja tudo além, tudo maior, tudo inexprimível, mágico! Que a tenda seja alta e colorida, que os cordões de lâmpadas atravessem os gramados, que a fogueira queime sem pesar e as conversas abarrotem o exterior com intensidade, que as crianças brinquem com invejável despreocupação com o olhar alheio e façam estrelinhas e dancem ao som de uma música sem igual, que o cheiro de pipoca transcenda (ainda que eu não goste do sabor) e que as barracas de artesanato nos surpreenda e alegre com o que procuramos e achamos, que a espera pelo espetáculo seja preenchida de bons pensamentos e imagens de fantasia, algumas páginas de um livro e fotografias, que os encontros fugazes tenham qualquer valia e finalmente, possamos entrar felizes, subir as tábuas madeiriças feitas de arquibancadas e rir com nostalgia. Sim! Rir do agora e do passado, pois é tudo uma piada, rir do inusitado, que seja tudo engraçado. Rir sem contenção, sem medo, sem ironia, simplesmente, por qualquer pilhéria. Eu ri do isolamento de todos (de mim), ri das paredes do destino, ri das impossibilidades do nada, das infelicidades da mágica. Fiquei maravilhado com as danças, no palco observava atento aqueles corpos voando, se chocando, se abraçando, harmônicos e graciosos, formando imagens e cadências, ritmos e efervecências, acrobacias indescritíveis. Além, subiam pelo céu em tecidos azuis e negros dois corpos sem medo de se fundirem em si e ao chão, feminino e masculino agarrados no ar, entrelaçados pelas formas que rodopiavam por seus corpos e fazia-os girar. Os malabares vagalúmicos dançavam velozmente na escuridão, cortando as trevas com luzes vermelhas, azuis, multicor, pulos de surpresa, quedas desajeitadas, gargalhadas. A tela mágica arrancou sorrisos de romance e disputa gracejosa pelo coração da amada imaginária e o domador de macacos tirou truques do chicote e acabou dominado por seu rebelde companheiro. Boquiaberto vi atravessar a corda bamba o palhaço, dois metros sobre nossas cabeças e tudo era belo e tudo era infinito, até o fragmento de meninas, seus trechos de peça, suas histórias juvenis, vozes magnéticas... Era a casa da magia, era o mundo do além, vou voltar sempre, quero somente rir.
"Como você está?"
Quantas vezes a ausência de palavras responde perfeitamente as perguntas feitas, sendo o silêncio tão rico de sentido que qualquer som destruiria a verdade que estava sendo dita? Quantas vezes uma faísca ou um brilho fosco no olhar já são suficientes para responder à perguntas como "tudo bem?", cabendo ao autor do questionamento o entendimento profundo, os entusiasmos ou as condolências? A forma contraída da boca, a palidez da pele, a tensão dos ombros, a tranquilidade do rosto, um olhar direto ou seu desviar, tantas são as respostas que damos às perguntas sem precisar de palavras. Que bom seria se nossos sentidos fossem plenamente capazes de absorver tudo quanto nos é dito involuntariamente. Gostaria de poder ler teu pensamento através do estremecimento ou maciez da tua pele, e reconhecer no canto dos teus olhos cada grama de emoção, fuga ou procura. Dialogando com o silêncio aprendo a fazer isso, fazendo com que os sentidos se estiquem até o outro e ouça seus murmúrios. Libertar minha hiperestesia e ouvir a música de tudo. Confesso que há certa contradição no exercício isolado de outros, mas, por enquanto, é preciso a preparação prévia antes da próxima e derradeira enxurrada de sentidos, quando cada partícula do corpo contará uma longa história sobre nossas vidas, sem rasgar os véus do mistério, excitando-os, inclusive. Mas é curioso perceber com que plenitude o silêncio preenche o espaço e quão criminoso nos parece quando nossos silêncios parecem agravar os abismos. Não é esse seu propósito e nunca deveríamos forçá-lo a isso, ao contrário, devemos descobrir e aprofundar as infinitas pontes lançadas ao outro através do silêncio, o silêncio...
tons de cinza
Sentado na mesa do computador, diante da janela de meu quarto, pequena fresta aberta para acalentar-me a brisa. A cortina escancarada deixava-me olhar o céu noturno. Naquela enorme cabeleira negra que é o universo, havia um espelho amarelado de solitude que irresistivelmente me aprisionou. Olhei tal figura, submergindo na sua melancolia flutuante. Este espelho ou lâmpada ou alma penada pendurada por um alfinete de estrela cadente na tapeçaria cósmica me olhava tão profundamente que eu me sentia frágil, pequeno, isolado no infinito sob a luz desse holofote fantasmal. Subitamente apoderou-se de mim um impulso, ou então ele se viu livre das masmorras de meu interior esquecido. Meu corpo estremeceu e um desejo inelutável tomou conta de meus gestos. Peguei um lápis e um papel e abri as válvulas dos meus abismos sobre o véu branco de celulose, obrigando-o a hospedar eternamente os grãos do grafite, tijolos nanométricos de expressão. Encontrei várias imagens dignas de apreciação e as imprimi macio e delicamente na superfície porosa da folha de canson. Porém, esse exercício de sombras e luzes era tão exaustivo que raríssimas vezes na vida me dispunha a engajar-me nele, pois as horas necessárias para a tarefa não me pareciam desejáveis. Após o período de aprendizado, de descoberta da técnica, afastei-me por anos inteiros sem debruçar-me novamente no intento, até o dia em que me abriu o coração a necessidade de regressar àquela terra mística de traços negros e cinzas. Várias figuras, retratos, flores e animais gravei em suas últimas moradas, constantemente movido por desejos amorosos que valiam o esforço... mas hoje permaneço em um estado de letargia que nega-me qualquer possibilidade de dedicação ao ofício... apenas a saudade daquela arte soa como pequeno incentivo a voltar... mas, com que propósito? Para quem dedicar os frutos dessas possíveis horas? Quando a resposta surgir em meus dias e preencher minhas veias com volúpias de inspiração, poderei então empregar-me deste modo n´uma homenagem para mim tão querida. E por que não fui capaz de presentear de tal maneira as duas últimas flores que vi passar comigo trechos fugazes de minha vida? Uma até tentei e vi meus esforços tolhidos por um desânimo. Talvez tenha demorado muito e no momento já não haviam forças. Para a seguinte não houve tempo, antes mesmo de se realizarem mil desejos, o inverno desabou as colunas dos sonhos e silenciou a vida dos sentidos e inspirações. Mas ainda assim, desprovido de horizontes, gostaria de exercitar, mesmo que pouco, esses traços ágeis, para raspar levemente a ferrugem e pintar um pouco minha pele de cinza. N´um dia nu, de brisa fria, sensação de chuva, mas céu limpo, no quarto vazio, com o algodão e a borracha brancos sobre a superfície de madeira, o grafite macio empunhado com firmeza como um sabre preciso e a folha alva timidamente aguardando seu destino, reviverei. Sei o que gostaria de fazer, qual a imagem à qual me ligaria por incontáveis horas, a fim de transportá-la sanguíneamente para o preto e branco. Contudo, não poderá ser esta, este retrato causa-me certa tristeza e uma dor aguda que não podem ser suportados e, de todos os desenhos imagináveis, esse seria o mais impróprio. Qual será então o substituto? Se não o retrato dela, então algo parecido comigo, minha encarnação mais instintiva e sobrevivente. Sim, é isto. Será seu presente.
terça-feira, 6 de outubro de 2009
Contos vindos do nada (I) - parte I
Eu quase tive uma visão. Quase veslumbrei um rosto, ele era quase assim: ovalado, de detalhes arredondados, pele clara corada, cabelos longos muito pretos em duas tranças cheias caindo uma sobre cada ombro. Os olhos eram grandes e muito pretos (castanho muito escuros), nariz pequeno, boca cheia, mas frágil, tinha uma cicatriz pequena e afinalada no canto do lábio. Seu corpo era igualmente delicado, porém, resistente. Curvilíneo. Usava um casaco cinza com capuz, unhas pintadas de azul profundo. Eu vi um flash, algo veloz demais para se interpretar. Não importa o que significa. Posso fazer dela uma personagem.
Esta menina (não me atreverei a nomeá-la) já saiu da escola - não se adaptou. Não fugiu simplesmente, atravessou todos as provas de arames farpados e se arrastou pelos campos de lama, atravessou os obstáculos de cordas e paredes, os exercícios embrutecedores - mas não se deixou domar. Saiu de lá e já nenhuma recordação guarda da casa dos mortos. Possui uma família. Não é aquele modelo filmesco e arcaico, não, algo um pouco mais adverso. Sua mãe é cantora independente, daquelas que toca pelas madrugadas em pubs e pequenos shows, sem aspirações grandiosas, toca para expressar pequenas canções de letras simples, acompanhadas de seu violão arredondado, melódico. Canta sobre os incidentes mais despercebidos, o vento que balança a água de uma poça, um pássaro que se apaixonou por uma nuvem, uma bicicleta que gostava da areia da praia, a tristeza de uma pena que caiu da asa de sua andorinha. Seu pai é um viajante. Se recusa a permanecer mais de um ano em qualquer lugar. Isso dificultou a vida escolar da menina. Não se sabe o que veio primeiro, a tendência individual dela de isolar-se ou a simples impossibilidade de fazer amizades mais próximas quando ela própria não estacionava em uma escola por mais de um ano. Seu pai era inventor. Quase daqueles tipos lunáticos. A cada cidade uma nova invenção gerava a renda para seguir para o próximo destino. Viviam n´um ônibus trailer que puxava uma espécie de oficina sobre rodas. Assim que adentravam n´um lugar, logo identificava algo que aquela população precisasse, uma necessidade ignorada por todos. Criava o objeto, encantava a todos, fazia com que cada casa tivesse um de seus apetrechos (ele possuia até um catálogo de invenções) e depois, passados 365 dias, na confraternização universal, seguiam os três adiante. Nunca voltaram para onde já estiveram. Chegam como totais desconhecidos mas nunca passam sem chamar a atenção, afinal, vocês devem imaginar como é o veículo de um inventor. A menina, no meio disso tudo, se tornou assim, criativa, porém, tímida, meiga, porém, taciturna, sorridente, ainda que melancólica. Estava com dezoito anos recém completos. Aniversariava no dia oito de dezembro. Mas não gostava de arco e flecha, nem mesmo da metáfora do cupido acertando corações, achava isso muito infantil e meio covarde, como se a afinidade fosse um fruto externo e arranjado, forjado. Não, nos seus dezoito anos ela tivera alguns amores e todos foram bem exóticos, nada românticos e, logicamente, tiveram rompimentos instantâneos no final do ano (por que será?). Mas quando ela decidisse fazer uma universidade e tivesse que parar em algum lugar ( e abandonar a família nômade), poderia enfim se dedicar mais a essa faceta da vida. Neste momento ela estava n´uma cidade média, bem arborizada e antiga, do jeito que ela mais gostava. Apesar do estilo dela não condizer com uma amante da natureza, ela era uma admiradora da beleza desse mundo alheio aos homens. Como não tinha mais escola para ir e também não estava no empenho de entrar na universidade, passava boa parte do dia caminhando pela cidade, com um livro em mãos e uma câmera fotográfica na bolsa. Estava lendo naquele momento Cândido ou o Otimismo, de Voltaire - gostava da comicidade da tragédia - e esse era um livro trágico. Mas nesse dia não estava muito para leitura. Sentou num banquinho, pegou seu caderninho de anotações e pôs-se a escrever algo. A princípio o lápis quedou imóvel sobre o papel, incerto quanto ao que iria dizer. Ela parou, se concentrou por uns instantes, olhou ao redor em buscar de um tema. Viu um senhor de idade avançada sentado no chão n´uma esquina próxima, vestido de trapos e com um chapéu a sua frente a espera de moedas. A morena começou a imaginar então a vida daquele homem e como o destino o colocou ali. Buscou sinais no olhar idoso que lhe indicassem se ele nascera na pobreza ou se sua vida despencou por algum motivo. Rabiscou um poema qualquer sobre velhice e morte, fim e tristeza. Sem se aproximar, tirou uma foto. Nos dias seguintes voltou para aquele mesmo banco - gostou dali - para ler seu livro. Era uma praça retangular com algumas árvores ao centro, canteiros floridos, uma pequena fonte de pedra garantia a trilha sonora do barulhinho da água corrente, rodeada por prédios residenciais de dois ou três andares com lojinhas, uma padaria e um cafezinho circundando. Na varanda do terceiro andar logo a frente do banquinho onde ela se sentava morava um rapaz pouco mais velho que ela. Um dia ele passou pela janela e reparou na cabeleira muito preta sentada calmamente, lendo à sombra da árvore antiga. Encostou-se no parapeito da varanda para observá-la. Achou-a bonita. Olhou mais alguns segundos e voltou ao que estava fazendo. Porém, quando no dia seguinte a notou no mesmo lugar, ficou curioso a seu respeito - nunca a tinha visto por ali, será que havia se mudado recentemente? No final da semana curioso por vê-la ali todos os dias, decidiu fazer uma "aproximação furtiva". Pegou também um livro e como quem não quer nada, desceu as escadas, atravessou a rua pouco movimentada, observou o céu levemente nublado e começando a ganhar os belos tons de rosa pelas quatro da tarde e, sem olhar diretamente para ela, sentou-se ao seu lado, cruzou as pernas, abriu o livro na página marcada e começou a ler. Quando ele se aproximou, ela levantou o olhar para ele, mas ele fingiu não perceber. Ela ainda o olhou com aqueles olhos questionadores, mas sem retorno. Passados vinte minutos, treze páginas e um punhado de pensamentos indecisos, ele disse
- Gosto desse livro. "Tudo acontece da melhor maneira possível", não é isso?
- Estúpido, não é? - ela respondeu, com um pequeno sorriso.
- Totalmente! Não acontece absolutamente nada de bom ao pobre menino e o Dr. Pangloss sofreu as consequências cruéis de seu otimismo.
- Não me conte! Ainda não cheguei nessa parte. - Ela reclamou, dando uma tapinha no joelho dele, brincando.
- Ops, desculpe. Diga-me, por que vens para essa praça todas as tardes?
- Gosto da energia daqui, gosto de praças. Há tanto movimento e ao mesmo tempo há uma sensação de calma e, além disso, há sempre pessoas nas calçadas, mas poucos carros.
- É verdade, agora que você falou, e pensar que eu não costumo vir aqui. Às vezes fico em casa sem fazer nada, podendo vir p´ra cá. Mas, hoje deu-me uma vontade. - Disse com um sorriso no canto da boca e desviando o olhar. Ela olhou para ele entre desconfiada e emcabulada.
- E quem é você?
- Eu sou um completo desconhecido. Estás curiosa? O que queres saber exatamente?
Ela ficou intimidada pela resposta evasiva. Insatisfeita, preferiu se calar. Ele, que esperava várias perguntas, se frustrou com o silêncio. Então começou ele a perguntar, mas ela não quis mais conversar. Teria que ser paciente. Leu várias páginas daquele livro que há seis meses estava encostado. Teve que começar do zero, relembrar tudo. Era uma história a respeito de dois amigos que eram totalmente opostos, um completamente emocional, o outro totalmente espiritual, porém, o personagem da emoção tinha sua índole contida por um trauma infantil e coube ao amigo mostrá-lo o verdadeiro eu. Gostou da história e sentiu prazer em sentar ao lado da menina todas as tardes durante uma semana inteira, apenas para ler.
- Por que você não fala mais comigo? - Ela perguntou finalmente, não resistindo mais o silêncio que ela própria começara.
- Desculpe, é porque o livro estava tão bom que... - falou ele, brincando. Ela não entendeu a intenção dele, se ele vinha ali para sentar ao lado dela ou se realmente estava puramente lendo o livro.
- Já reparou que quando você está lendo bem concentrada, você aperta os lábios? - Disse ele, baixinho. Ela se encabulou com esta observação tão peculiar, involuntariamente mordendo o lábio rosado. O rapaz sorriu, satisfeito com a reação dela.
- É verdade! Nas partes mais chatinhas do livro, eu fiquei espiando você lendo, admirando todos os seus pequenos gestos. Acho que o livro ficou cada vez mais chato. Mas eu não quis pertubá-la com minhas palavras, você já está quase terminando o seu.
- Own, não seja bobo! Podemos conversar sim. Mas, já que você mora aqui e deve conhecer bem as redondezas, me leve à algum lugar especial. - Disse ela. Ao som da palavra "especial", ele sentiu um bom sinal, uma oportunidade para... "algo".
- Já sei onde vou te levar! - Levantaram-se e foram caminhando, entrando pela rua ao lado da padaria do Juca, de onde se sentia um cheiro de pão quentinho irresistível.
(continua)
Esta menina (não me atreverei a nomeá-la) já saiu da escola - não se adaptou. Não fugiu simplesmente, atravessou todos as provas de arames farpados e se arrastou pelos campos de lama, atravessou os obstáculos de cordas e paredes, os exercícios embrutecedores - mas não se deixou domar. Saiu de lá e já nenhuma recordação guarda da casa dos mortos. Possui uma família. Não é aquele modelo filmesco e arcaico, não, algo um pouco mais adverso. Sua mãe é cantora independente, daquelas que toca pelas madrugadas em pubs e pequenos shows, sem aspirações grandiosas, toca para expressar pequenas canções de letras simples, acompanhadas de seu violão arredondado, melódico. Canta sobre os incidentes mais despercebidos, o vento que balança a água de uma poça, um pássaro que se apaixonou por uma nuvem, uma bicicleta que gostava da areia da praia, a tristeza de uma pena que caiu da asa de sua andorinha. Seu pai é um viajante. Se recusa a permanecer mais de um ano em qualquer lugar. Isso dificultou a vida escolar da menina. Não se sabe o que veio primeiro, a tendência individual dela de isolar-se ou a simples impossibilidade de fazer amizades mais próximas quando ela própria não estacionava em uma escola por mais de um ano. Seu pai era inventor. Quase daqueles tipos lunáticos. A cada cidade uma nova invenção gerava a renda para seguir para o próximo destino. Viviam n´um ônibus trailer que puxava uma espécie de oficina sobre rodas. Assim que adentravam n´um lugar, logo identificava algo que aquela população precisasse, uma necessidade ignorada por todos. Criava o objeto, encantava a todos, fazia com que cada casa tivesse um de seus apetrechos (ele possuia até um catálogo de invenções) e depois, passados 365 dias, na confraternização universal, seguiam os três adiante. Nunca voltaram para onde já estiveram. Chegam como totais desconhecidos mas nunca passam sem chamar a atenção, afinal, vocês devem imaginar como é o veículo de um inventor. A menina, no meio disso tudo, se tornou assim, criativa, porém, tímida, meiga, porém, taciturna, sorridente, ainda que melancólica. Estava com dezoito anos recém completos. Aniversariava no dia oito de dezembro. Mas não gostava de arco e flecha, nem mesmo da metáfora do cupido acertando corações, achava isso muito infantil e meio covarde, como se a afinidade fosse um fruto externo e arranjado, forjado. Não, nos seus dezoito anos ela tivera alguns amores e todos foram bem exóticos, nada românticos e, logicamente, tiveram rompimentos instantâneos no final do ano (por que será?). Mas quando ela decidisse fazer uma universidade e tivesse que parar em algum lugar ( e abandonar a família nômade), poderia enfim se dedicar mais a essa faceta da vida. Neste momento ela estava n´uma cidade média, bem arborizada e antiga, do jeito que ela mais gostava. Apesar do estilo dela não condizer com uma amante da natureza, ela era uma admiradora da beleza desse mundo alheio aos homens. Como não tinha mais escola para ir e também não estava no empenho de entrar na universidade, passava boa parte do dia caminhando pela cidade, com um livro em mãos e uma câmera fotográfica na bolsa. Estava lendo naquele momento Cândido ou o Otimismo, de Voltaire - gostava da comicidade da tragédia - e esse era um livro trágico. Mas nesse dia não estava muito para leitura. Sentou num banquinho, pegou seu caderninho de anotações e pôs-se a escrever algo. A princípio o lápis quedou imóvel sobre o papel, incerto quanto ao que iria dizer. Ela parou, se concentrou por uns instantes, olhou ao redor em buscar de um tema. Viu um senhor de idade avançada sentado no chão n´uma esquina próxima, vestido de trapos e com um chapéu a sua frente a espera de moedas. A morena começou a imaginar então a vida daquele homem e como o destino o colocou ali. Buscou sinais no olhar idoso que lhe indicassem se ele nascera na pobreza ou se sua vida despencou por algum motivo. Rabiscou um poema qualquer sobre velhice e morte, fim e tristeza. Sem se aproximar, tirou uma foto. Nos dias seguintes voltou para aquele mesmo banco - gostou dali - para ler seu livro. Era uma praça retangular com algumas árvores ao centro, canteiros floridos, uma pequena fonte de pedra garantia a trilha sonora do barulhinho da água corrente, rodeada por prédios residenciais de dois ou três andares com lojinhas, uma padaria e um cafezinho circundando. Na varanda do terceiro andar logo a frente do banquinho onde ela se sentava morava um rapaz pouco mais velho que ela. Um dia ele passou pela janela e reparou na cabeleira muito preta sentada calmamente, lendo à sombra da árvore antiga. Encostou-se no parapeito da varanda para observá-la. Achou-a bonita. Olhou mais alguns segundos e voltou ao que estava fazendo. Porém, quando no dia seguinte a notou no mesmo lugar, ficou curioso a seu respeito - nunca a tinha visto por ali, será que havia se mudado recentemente? No final da semana curioso por vê-la ali todos os dias, decidiu fazer uma "aproximação furtiva". Pegou também um livro e como quem não quer nada, desceu as escadas, atravessou a rua pouco movimentada, observou o céu levemente nublado e começando a ganhar os belos tons de rosa pelas quatro da tarde e, sem olhar diretamente para ela, sentou-se ao seu lado, cruzou as pernas, abriu o livro na página marcada e começou a ler. Quando ele se aproximou, ela levantou o olhar para ele, mas ele fingiu não perceber. Ela ainda o olhou com aqueles olhos questionadores, mas sem retorno. Passados vinte minutos, treze páginas e um punhado de pensamentos indecisos, ele disse
- Gosto desse livro. "Tudo acontece da melhor maneira possível", não é isso?
- Estúpido, não é? - ela respondeu, com um pequeno sorriso.
- Totalmente! Não acontece absolutamente nada de bom ao pobre menino e o Dr. Pangloss sofreu as consequências cruéis de seu otimismo.
- Não me conte! Ainda não cheguei nessa parte. - Ela reclamou, dando uma tapinha no joelho dele, brincando.
- Ops, desculpe. Diga-me, por que vens para essa praça todas as tardes?
- Gosto da energia daqui, gosto de praças. Há tanto movimento e ao mesmo tempo há uma sensação de calma e, além disso, há sempre pessoas nas calçadas, mas poucos carros.
- É verdade, agora que você falou, e pensar que eu não costumo vir aqui. Às vezes fico em casa sem fazer nada, podendo vir p´ra cá. Mas, hoje deu-me uma vontade. - Disse com um sorriso no canto da boca e desviando o olhar. Ela olhou para ele entre desconfiada e emcabulada.
- E quem é você?
- Eu sou um completo desconhecido. Estás curiosa? O que queres saber exatamente?
Ela ficou intimidada pela resposta evasiva. Insatisfeita, preferiu se calar. Ele, que esperava várias perguntas, se frustrou com o silêncio. Então começou ele a perguntar, mas ela não quis mais conversar. Teria que ser paciente. Leu várias páginas daquele livro que há seis meses estava encostado. Teve que começar do zero, relembrar tudo. Era uma história a respeito de dois amigos que eram totalmente opostos, um completamente emocional, o outro totalmente espiritual, porém, o personagem da emoção tinha sua índole contida por um trauma infantil e coube ao amigo mostrá-lo o verdadeiro eu. Gostou da história e sentiu prazer em sentar ao lado da menina todas as tardes durante uma semana inteira, apenas para ler.
- Por que você não fala mais comigo? - Ela perguntou finalmente, não resistindo mais o silêncio que ela própria começara.
- Desculpe, é porque o livro estava tão bom que... - falou ele, brincando. Ela não entendeu a intenção dele, se ele vinha ali para sentar ao lado dela ou se realmente estava puramente lendo o livro.
- Já reparou que quando você está lendo bem concentrada, você aperta os lábios? - Disse ele, baixinho. Ela se encabulou com esta observação tão peculiar, involuntariamente mordendo o lábio rosado. O rapaz sorriu, satisfeito com a reação dela.
- É verdade! Nas partes mais chatinhas do livro, eu fiquei espiando você lendo, admirando todos os seus pequenos gestos. Acho que o livro ficou cada vez mais chato. Mas eu não quis pertubá-la com minhas palavras, você já está quase terminando o seu.
- Own, não seja bobo! Podemos conversar sim. Mas, já que você mora aqui e deve conhecer bem as redondezas, me leve à algum lugar especial. - Disse ela. Ao som da palavra "especial", ele sentiu um bom sinal, uma oportunidade para... "algo".
- Já sei onde vou te levar! - Levantaram-se e foram caminhando, entrando pela rua ao lado da padaria do Juca, de onde se sentia um cheiro de pão quentinho irresistível.
(continua)
alguns não morrem
Talvez haja mesmo alguma forma de imortalidade. Talvez não morra nunca, fique nessa torre redonda, fechado para sempre, esse vazio sem andares, apenas uma imensa escada espiral que leva a um terraço cinza sem horizonte. Não é o primeiro imortal... será o último? Quantas torres haverão em minha c´alma? Ele ficará então caminhando para lá e para cá em seu fragmento de castelo esquecido até por mim, mas lá, vivo. Lembrarei-me dele às vezes, quando algo o fizer cantar baixinho em meus ouvidos histórias que vivi (com você). E estará seguro de tudo, nada o poderá matar. Não sente fome nem sede, a única palavra que existe para ele é saudade. Trecho cristalizado de passado e solidão... não me importarei com ele, não preciso ter qualquer cuidado, ele é imortal e por isso, pode ser ignorado... ficará lá... com seu pequeno calor do que já passou, um calor insensível de recordação... Outros virão, se alojaram e morreram, derradeiramente, mas ele está vivo - e isso não importa.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
não me veja, sinta
Um erro finalmente desvendado
mostrou-me como o mundo desandou
Descobri que se a neblina é dissipada
a nitidez corroi o que o amor tocou
O amor prefere olhos bem fechados
bocas sem palavras, línguas desesperadas
por sabor, outras formas de expressão
sentidos aflorados, desinibição
E o mistério tempera o fogo dos apaixonados
envolve inteiras suas almas extasiadas
alimenta a aguda fome de paixão
Este não deve jamais ser desmistificado
Não precisam se conhecer os enamorados
Devem apenas se entregar à eterna sedução. (tentação)
domingo, 4 de outubro de 2009
Espanhola
Entro pela porta gigante, atravesso o cômodo de entrada de paredes rosadas, adentro no corredor de portas, dobro ligeiramente à direita, chego à sala dos livros e também sua casa. Abro seu sarcófago negro, retiro-a, sinto sua leveza, sua maciez, o brilho castanho em seu semblante, a vibração em suas seis línguas mágicas, graves e agudas, ponho-a em meu colo, seguro seu braço com delicadeza e com a mão direita faço-a cantar a melodia enfeitiçada que ela contém. Tenho pesar por ter esquecido tantas de suas lembranças. Outrora conhecia dezenas de melodias para serem extraídas deste coração instrumental. Minha amiga sonora espanhola, abandonei-te por anos exauridos de minha paciência pequena e hoje volto para a caverna melódica de teu coração com profunda ânsia de ouvir sua voz. A memória de meus dedos esgotou-se, caiu como cascas velhas de árvores renovadas, foi-se com os calos, substituida por uma pele macia e sem lembranças. Apenas quatro ou cinco canções foram mais fortes, estavam guardadas mais além, talvez na memória óssea de meu corpo e assim, mesmo depois dos anos, pude novamente fazer fluir por minhas mãos seus sons. Mas sinto uma saudade imensa de tudo que já soube, partituras decifradas, horas de práticas doloridas, desfrutes noturnos de sonatas ao luar. Já soube, já soube... e agora preciso saber novamente, meter-me na frustrante tarefa do aprendiz, reconstituir as fibras dos dedos endurecidos, da agilidade impossível das unhas que vibram as cordas do som e da beleza. Ao menos tenho dentro de mim algo que me consola... talvez seja uma verdade irreparável minha impaciência e por isso não deva nem mesmo tentar repor aquele repertório antigo, hoje fio-me na brincadeira juvenil de compor melodias solitárias, deixar que as pontas de meus dedos vagueiem pelas lombadas metálicas da guitarra espanhola em busca das canções que escondem, fazendo as inocências sonoras brotarem ruborescidas e cálidas, suaves e sozinhas. Queria, realmente, ao menos aprender a acompanhar essas melodias, dar-lhes o harmônico cenário de gravidade, de preenchimento, de plenitude, para não serem esses pés solitários andando pela floresta de sons, mas que sejam revoadas inteiras de notas voadoras que carreguem o peso do ar, dissipando-o, abrindo-o, expandindo-o. Sim, é isso que preciso fazer... e gostaria também de conseguir construir algo, de não precisar refazer tudo como se fosse a primeira vez a cada momento de dedicação... queria poder não esquecer, mas eu esqueço... aquilo que compus... e preciso criar novamente. Ah, Alhambra de minha alma, hoje minhas dores se sedimentam no baú sonoro de teu coração.
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
Experimental
Cinco horas fechado (com um mínimo intervalo). Alguns minutos de escuro total. Precisarei me acostumar com a sensação - Olhos abertos e nada ver. É uma comunhão de angústia, imobilidade e espera. Será minha chance de aguçar tremendamente outros sentidos - deixemos essa tola dependência da visão - ela nos engana e nos vicia. Será preciso prática - tudo se resume à prática - memória corporal. Talvez tente fazer em casa - vendar os olhos e viver o cotidiano. Deixe-me explicar-lhe - o filme fotográfico é sensível a qualquer tipo de luz, seja branca, azul, vermelha, magenta, logo, somente à escuridão podemos expô-lo. Precisamos prepará-lo, ele não desabrochará sozinho, não é uma borboleta - precisamos tirá-lo de sua cápsula e revelá-lo, pari-lo, fazê-lo nascer - no escuro! Essa lagarga gelatinosa e frágil que guarda em si os segredos da paralisia do tempo, do congelamento do instante, precisa de minha sensibilidade e atenção (cega) para mostrar-me o que há para ser visto. Primeiro arranco-lhe a língua queimada pela qual puxarei suas entranhas. Cessa a visão e a partir daí é quase uma mágica - neste cilindro preteado devo encaixar o corpo encaracolado para pô-lo no tanque impenetrável. Quando as luzes forem acesas, não saberei exatamente como fiz, mas estará feito. Então a alquimia de cheiros fortes e impregnantes entrará no jogo, encharcando até a ebriedade o conteúdo sensível do recipiente metálico. Revelar, interromper e fixar. Depois do coquetel derramado, podemos trazer-lhe ao alcance da claridade sem que se destrua - Está pronto para continuar a metamorfose. Mas antes, precisa secar. Os cordões improvisados na parede se fazem de varáis por enquanto - será também minha tarefa (mas não sozinho) construir algo mais apropriado. Quando finalmente livre de qualquer umidade, o próximo passo. A luz possue uma magia que a maioria ignora - ela pode tanto roubar as cores, desbotando os tecidos, tintas, livros, o que quer que seja demasiadamente exposta ao seu olhar, como pode também fazer o oposto e marcar uma superficie de tal maneira que se transforme nessa arte congelante, essa pintura perfeita, essa química-artística deslumbrante. A cabeça branca suspensa, com seu olho e sua lâmpada, possui a mão invisível que transportará a marca negativa até o papel. Na máscara negra se posiciona cada quadro, cada pose. Faz-se a medida, amplia-se, focaliza-se, enquadra-se. Ressalto que nesse ponto do feitiço, pode-se ver, porém, apenas com olhos de sangue. Vermelho é tudo que enxergamos e também é preciso hábito com essa percepção de tudo. Acertos e medidas prontos, coloca-se o tempo desejado - dispara. Um tiro de luz no escudo branco para fazê-lo recordar o que outrora o olho da câmera registrou. Mas, pasme, nada pode ser visto ainda - outra revelação quase profética precisa ser feita. Em três lagoas se preparam os banhos que purificarão e deixarão exposto o segredo. Revelar, interromper, fixar - quase o mesmo processo. E é na primeira poção que o mago presenciará diante de seus olhos o surgimento das imagens pretas e brancas. A água corrente terminará a caminhada, quando o fotografia pode finalmente secar e ser apreciada. Cinco horas para o primeiro experimento! E ainda muitos litros, papéis e horas me esperam para aperfeiçoar a mágica. Não estarei sozinho e quero experimentar! Revelar... (o mundo)
Revelações
Por que calcular os anos que passaram? De nada serve. Preferível contar os que ainda restam - já dizia Rubem Alves. Vinte e um anos pela frente (talvez alguns meses a menos para não entrar no 'enta'). A menos que algo aborte os dias futuros - o que é sempre possível. O passado serve talvez para uma coisa - além do mais óbvio, aprender com os erros - que é nos dar matéria prima para escrever. Poderia alguém escrever um belo conto sem ter lembranças? Que poema sairia do coração de alguém sem passado? Bem, não importa, depois que criaram a televisão, memórias próprias se tornaram dispensáveis para alguns. Quanto ao futuro, do pouco mais de duas décadas que me restam, metade já preenchi com planos, idéias, sonhos tão precisos que posso vê-los de olhos fechados e sei mais ou menos que passos dar até eles. Mas, surpreendente é poder colocar nessa receita de minha própria vida ingredientes novos para reforçar os sabores e garantir toques extras de emoção, prazer e aprendizado (?). Por exemplo, ontem, sentado na janela do ônibus vi no mato um pássaro. Ele levantou vôo na mesma direção em que seguia o transporte e por alguns segundos acompanhou nossa velocidade (aparentemente), o que deu a impressão visual de vê-lo flutuar. Pude observar os detalhes de sua desenvoltura aérea quase em câmera lenta. Que elegância e graça e perfeição o ato de voar - como aquelas asas negras ágeis conseguiam facilmente erguer aquela forma de anjo? Naquele instante despertou em mim a convicção de que preciso aprender a voar antes de terminarem meus dias. Preciso, de alguma forma, viver essa experiência e irei, agora tenho certeza - porque os sonhos que encucam na minha cabeça mais dia, menos dia acontecem. Desde que li pela primeira vez um livro preto com uma pena graciosa na capa a respeito de um aviador intinerante que vagava pelo país (estrangeiro) com seu monomotor, vivendo exclusivamente de passeios aéreos em campos de trigo nas cidadezinhas do interior, comecei a sonhar - de brincadeira - com isso. Ah, como seria bom uma vida assim, errar pelo mundo sem destino certo, apenas seguir os instrumentos e a intuição, em buscar de qualquer coisa ou coisa nenhuma. Agora sei, em algum lugar lá na frente serei eu lá em cima - e terei a oportunidade de pular também. Quem sabe não terminem assim meus dias.
(Automatic Stop - Strokes - uma música)
(Automatic Stop - Strokes - uma música)
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