terça-feira, 6 de outubro de 2009

Contos vindos do nada (I) - parte I


Eu quase tive uma visão. Quase veslumbrei um rosto, ele era quase assim: ovalado, de detalhes arredondados, pele clara corada, cabelos longos muito pretos em duas tranças cheias caindo uma sobre cada ombro. Os olhos eram grandes e muito pretos (castanho muito escuros), nariz pequeno, boca cheia, mas frágil, tinha uma cicatriz pequena e afinalada no canto do lábio. Seu corpo era igualmente delicado, porém, resistente. Curvilíneo. Usava um casaco cinza com capuz, unhas pintadas de azul profundo. Eu vi um flash, algo veloz demais para se interpretar. Não importa o que significa. Posso fazer dela uma personagem.



Esta menina (não me atreverei a nomeá-la) já saiu da escola - não se adaptou. Não fugiu simplesmente, atravessou todos as provas de arames farpados e se arrastou pelos campos de lama, atravessou os obstáculos de cordas e paredes, os exercícios embrutecedores - mas não se deixou domar. Saiu de lá e já nenhuma recordação guarda da casa dos mortos. Possui uma família. Não é aquele modelo filmesco e arcaico, não, algo um pouco mais adverso. Sua mãe é cantora independente, daquelas que toca pelas madrugadas em pubs e pequenos shows, sem aspirações grandiosas, toca para expressar pequenas canções de letras simples, acompanhadas de seu violão arredondado, melódico. Canta sobre os incidentes mais despercebidos, o vento que balança a água de uma poça, um pássaro que se apaixonou por uma nuvem, uma bicicleta que gostava da areia da praia, a tristeza de uma pena que caiu da asa de sua andorinha. Seu pai é um viajante. Se recusa a permanecer mais de um ano em qualquer lugar. Isso dificultou a vida escolar da menina. Não se sabe o que veio primeiro, a tendência individual dela de isolar-se ou a simples impossibilidade de fazer amizades mais próximas quando ela própria não estacionava em uma escola por mais de um ano. Seu pai era inventor. Quase daqueles tipos lunáticos. A cada cidade uma nova invenção gerava a renda para seguir para o próximo destino. Viviam n´um ônibus trailer que puxava uma espécie de oficina sobre rodas. Assim que adentravam n´um lugar, logo identificava algo que aquela população precisasse, uma necessidade ignorada por todos. Criava o objeto, encantava a todos, fazia com que cada casa tivesse um de seus apetrechos (ele possuia até um catálogo de invenções) e depois, passados 365 dias, na confraternização universal, seguiam os três adiante. Nunca voltaram para onde já estiveram. Chegam como totais desconhecidos mas nunca passam sem chamar a atenção, afinal, vocês devem imaginar como é o veículo de um inventor. A menina, no meio disso tudo, se tornou assim, criativa, porém, tímida, meiga, porém, taciturna, sorridente, ainda que melancólica. Estava com dezoito anos recém completos. Aniversariava no dia oito de dezembro. Mas não gostava de arco e flecha, nem mesmo da metáfora do cupido acertando corações, achava isso muito infantil e meio covarde, como se a afinidade fosse um fruto externo e arranjado, forjado. Não, nos seus dezoito anos ela tivera alguns amores e todos foram bem exóticos, nada românticos e, logicamente, tiveram rompimentos instantâneos no final do ano (por que será?). Mas quando ela decidisse fazer uma universidade e tivesse que parar em algum lugar ( e abandonar a família nômade), poderia enfim se dedicar mais a essa faceta da vida. Neste momento ela estava n´uma cidade média, bem arborizada e antiga, do jeito que ela mais gostava. Apesar do estilo dela não condizer com uma amante da natureza, ela era uma admiradora da beleza desse mundo alheio aos homens. Como não tinha mais escola para ir e também não estava no empenho de entrar na universidade, passava boa parte do dia caminhando pela cidade, com um livro em mãos e uma câmera fotográfica na bolsa. Estava lendo naquele momento Cândido ou o Otimismo, de Voltaire - gostava da comicidade da tragédia - e esse era um livro trágico. Mas nesse dia não estava muito para leitura. Sentou num banquinho, pegou seu caderninho de anotações e pôs-se a escrever algo. A princípio o lápis quedou imóvel sobre o papel, incerto quanto ao que iria dizer. Ela parou, se concentrou por uns instantes, olhou ao redor em buscar de um tema. Viu um senhor de idade avançada sentado no chão n´uma esquina próxima, vestido de trapos e com um chapéu a sua frente a espera de moedas. A morena começou a imaginar então a vida daquele homem e como o destino o colocou ali. Buscou sinais no olhar idoso que lhe indicassem se ele nascera na pobreza ou se sua vida despencou por algum motivo. Rabiscou um poema qualquer sobre velhice e morte, fim e tristeza. Sem se aproximar, tirou uma foto. Nos dias seguintes voltou para aquele mesmo banco - gostou dali - para ler seu livro. Era uma praça retangular com algumas árvores ao centro, canteiros floridos, uma pequena fonte de pedra garantia a trilha sonora do barulhinho da água corrente, rodeada por prédios residenciais de dois ou três andares com lojinhas, uma padaria e um cafezinho circundando. Na varanda do terceiro andar logo a frente do banquinho onde ela se sentava morava um rapaz pouco mais velho que ela. Um dia ele passou pela janela e reparou na cabeleira muito preta sentada calmamente, lendo à sombra da árvore antiga. Encostou-se no parapeito da varanda para observá-la. Achou-a bonita. Olhou mais alguns segundos e voltou ao que estava fazendo. Porém, quando no dia seguinte a notou no mesmo lugar, ficou curioso a seu respeito - nunca a tinha visto por ali, será que havia se mudado recentemente? No final da semana curioso por vê-la ali todos os dias, decidiu fazer uma "aproximação furtiva". Pegou também um livro e como quem não quer nada, desceu as escadas, atravessou a rua pouco movimentada, observou o céu levemente nublado e começando a ganhar os belos tons de rosa pelas quatro da tarde e, sem olhar diretamente para ela, sentou-se ao seu lado, cruzou as pernas, abriu o livro na página marcada e começou a ler. Quando ele se aproximou, ela levantou o olhar para ele, mas ele fingiu não perceber. Ela ainda o olhou com aqueles olhos questionadores, mas sem retorno. Passados vinte minutos, treze páginas e um punhado de pensamentos indecisos, ele disse
- Gosto desse livro. "Tudo acontece da melhor maneira possível", não é isso?
- Estúpido, não é? - ela respondeu, com um pequeno sorriso.
- Totalmente! Não acontece absolutamente nada de bom ao pobre menino e o Dr. Pangloss sofreu as consequências cruéis de seu otimismo.
- Não me conte! Ainda não cheguei nessa parte. - Ela reclamou, dando uma tapinha no joelho dele, brincando.
- Ops, desculpe. Diga-me, por que vens para essa praça todas as tardes?
- Gosto da energia daqui, gosto de praças. Há tanto movimento e ao mesmo tempo há uma sensação de calma e, além disso, há sempre pessoas nas calçadas, mas poucos carros.
- É verdade, agora que você falou, e pensar que eu não costumo vir aqui. Às vezes fico em casa sem fazer nada, podendo vir p´ra cá. Mas, hoje deu-me uma vontade. - Disse com um sorriso no canto da boca e desviando o olhar. Ela olhou para ele entre desconfiada e emcabulada.
- E quem é você?
- Eu sou um completo desconhecido. Estás curiosa? O que queres saber exatamente?
Ela ficou intimidada pela resposta evasiva. Insatisfeita, preferiu se calar. Ele, que esperava várias perguntas, se frustrou com o silêncio. Então começou ele a perguntar, mas ela não quis mais conversar. Teria que ser paciente. Leu várias páginas daquele livro que há seis meses estava encostado. Teve que começar do zero, relembrar tudo. Era uma história a respeito de dois amigos que eram totalmente opostos, um completamente emocional, o outro totalmente espiritual, porém, o personagem da emoção tinha sua índole contida por um trauma infantil e coube ao amigo mostrá-lo o verdadeiro eu. Gostou da história e sentiu prazer em sentar ao lado da menina todas as tardes durante uma semana inteira, apenas para ler.
- Por que você não fala mais comigo? - Ela perguntou finalmente, não resistindo mais o silêncio que ela própria começara.
- Desculpe, é porque o livro estava tão bom que... - falou ele, brincando. Ela não entendeu a intenção dele, se ele vinha ali para sentar ao lado dela ou se realmente estava puramente lendo o livro.
- Já reparou que quando você está lendo bem concentrada, você aperta os lábios? - Disse ele, baixinho. Ela se encabulou com esta observação tão peculiar, involuntariamente mordendo o lábio rosado. O rapaz sorriu, satisfeito com a reação dela.
- É verdade! Nas partes mais chatinhas do livro, eu fiquei espiando você lendo, admirando todos os seus pequenos gestos. Acho que o livro ficou cada vez mais chato. Mas eu não quis pertubá-la com minhas palavras, você já está quase terminando o seu.
- Own, não seja bobo! Podemos conversar sim. Mas, já que você mora aqui e deve conhecer bem as redondezas, me leve à algum lugar especial. - Disse ela. Ao som da palavra "especial", ele sentiu um bom sinal, uma oportunidade para... "algo".
- Já sei onde vou te levar! - Levantaram-se e foram caminhando, entrando pela rua ao lado da padaria do Juca, de onde se sentia um cheiro de pão quentinho irresistível.

(continua)

Um comentário:

Fernanda Protásio disse...

Alto aqui do sétimo andar...
Longe eu via você...
A luz desperdiçada de manhã
No copo de café...