O riso é uma fuga
O riso é um espelho
O riso é uma janela
um chamado, um desejo
ele é um mistério
um grande ou pequeno
deletério,
um sair do sério
um escudo ou um sonho
é uma injeção anestésica
ou colher de amnésia
um refúgio do medo
ou o próprio medo
é uma máscara
um baile inteiro
o riso é de pernas bambas
rindo no chão, de joelhos
é um desafio ou uma coragem
ele é falso, é miragem
ou é profundo e verdadeiro
ele é histeria febril
ele é felicidade cega
ele é calmante da alma
um remédio, uma seta
apontando uma forma
de caminhar sem dor
ou além da dor
O sorriso é o oposto
Sorrir é abrir-se, abrir
a alma e a vida
Sorriso de amor
de encantamento, de ternura,
de carinho, de paz e pureza
Sorriso de destemor
maior que o medo
maior que a dúvida
maior que a dor
Sorrir por amar
a vida, a água, o verde, a luz
a noite, a morte, a paz e a cruz
o outro, a si mesmo, a tudo, nada
Sorrir, principalmente
Por sentir no peito
A magia impossível e reluzente
O amor por você, sua alma, seu jeito
A paixão de emoção de sentimento
Amor com tudo, amor sem tempo
Amor no eterno e no momento
Amor no meu sorriso.
Ai, meu bem,
Como podes ser vulgar?
Se só pureza encontro no teu olhar
Até mesmo a malícia não é vulgar
Vulgar é o ordinário, o sem valor
E não há ninguém mais especial
O vulgar não tem importância
é descartável, é banal,
não se aprecia, se devora
sem sentir sabor ou prazer
sem apurar os mínimos detalhes
as curvas delicadas
as belezas desapercebidas
nuances da tua pele, da tua voz, do teu ser
da emoção de estar contigo
Não, não és vulgar,
não és comum ou simplória
és labiríntica tempestade de caminhos
e desejos e poesia e carícias
és sabor de sem fim
és sala de espelhos
onde nos encontramos
sob várias formas de lilás
um bem que faz
calor e paz
carrossel de lápis
e papel de carta
saudade peça de teatro
desejo sofá de areia salgada
carinho de fim de tarde
e hortelã e perfume... (que arde)
Tu, meu amor
Te finges de vulgar
para disfarçar
qualquer coisa
para esconder - expondo -
um não sei o quê de engano
algo de noite e de dano
tentativa de profano
não sei, não sei
só fingindo, meu bem...
não é você.
Você é o sorriso (o beijo)
Eu sou o abraço (o carinho)
Nós somos o amor (juntos)
E a vida é o sabor só nosso.
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa - Autopsicografia
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa - Autopsicografia
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