sábado, 4 de julho de 2009

Delirando...

Akara ...Beirut

“E daí, se estou perdido... ainda há o horizonte para onde ir...” disse enquanto vagava por entre as tendas altas, vermelhas, roxas, negras, lenços brancos amarrados em cordões pendendo sobre sua cabeça, corvos dependurados nos tetos, olhando as festas e as folias. As gaitas soavam por detrás daqueles panos fantasmagóricos, moradas de povos nômades. Talvez aquelas pessoas não se cansassem. Talvez elas fossem mágicas e não dormissem e os cantos e as músicas lhes fossem o repouso merecido, o descanso invertido. Mas ele cambaleava e não se sentia tão disposto. Afastava-se dos acordes de acordeão, de flauta, de tambor. Estava quase enfeitiçado. Ah, adorava aquelas músicas. Nascera para respirá-las. Afastava-se não da música em si, mas das pessoas que ali estavam. Decididamente não sabia festejar. O acampamento em círculo era infinito para ele... caminhava ao redor, buscando o fim. Só não queria parar. Ficar parado naquele momento era uma angústia. Os metais soavam seus choros ciganos das terras por que passaram e ele viajava no sonho de um quase sonambulismo. Estaria bêbado? Talvez. Mas, bêbado de quê?... Excesso de emoções, ele diria. Cuspindo sangue imaginário, rasgando as vestes, ardendo, ele cai de joelhos, arranhado. Encosta-se em um banco de madeira tosca entre algumas almofadas macias e cheias. Naquele instante os candelabros de óleo de baleia (será mesmo?) fraquejam, o ar se enche de sombras, uma brisa voa por entre o corredor de tendas e inesperadamente um cortejo passa por ele, pessoas cantando, dançando, pulando, tocando aqueles magníficos instrumentos que produziam muito mais do que música. Uma mão furtiva o agarra pela gola rasgada e o faz levantar. Arrasta-o na dança, ele se deixa levar. Estava cansado demais para resistir e acordado demais para não ir. Era preciso, ser levado a força para fora dos seus sentidos, deixar que as razões e raciocínios ficassem adormecidos enquanto a noite se prolongava infinitamente. Os incensos no ar, os aromas, os perfumes, os sabores de infância e malícia, as misturas impossíveis, as escandalosas tolices, as inimagináveis formas que surgiram... Ele se deixou levar. Não estava sozinho? Estava? Quem eram? Quem o conhecia? Não reconhecia nenhum rosto. Afinal, estavam todos mascarados como em um baile em Veneza. Aquelas máscaras italianas misturadas com fantasmas. Um vulto de arlequim surgiu no centro da roda onde ele fora lançado e começou a dançar com ele, hipnotizando-o. Era ruiva a disfarçada, sob vestes masculinas, ela se aproveitava. Agora era morena, agora seus cabelos mudavam, transfiguravam. As mechas que fugiam da fantasia entregavam a forma feminina que as roupas escondiam. Houve um estalo e ele meio que despertou em um silêncio distante. A música se afastara. Estava só ele e ela. Hipnotizado. Marionete. Sem forças para resistir. Também, não tinha nada a perder. A trupe itinerante de ciganos e artistas, ou artistas ciganos, festejava há semanas um bom presságio que a lua havia declarado e desde que o vinho e o fumo começou a correr solto, ele fizera jejum. Estava fraco. Também não dormia, aceso, como a última chama da última fogueira ou da última lamparina. Houve tempo apenas para que fechasse os olhos, sentisse mãos tocando-lhe o rosto, uma sensação de prazer profundo nos lábios e o desmaio. Escuridão. Nem sonho nem luz. Parece que se passaram semanas e ele, quando acordou, mais morto do que vivo, ficou de cama, teve bastante atenção das meninas que faziam truques de mágica e também da trapezista, que simpatizava com ele. Mas ele nunca soube quem era a arlequina.
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The Akara - Beirut