segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Contos de Recife (II)


Sábado, deze/nove... Fome não havia quando seguimos pro almoço. Um suco de acerola, para ela o que quis. Caminhando lado a lado, mas mil metros entre nós, rodamos no pequeno prédio, aquela lata de sardinha moderna no meio do centro histórico da cidade velha. De lá fomos para o tão esperado templo, o armazém de todos os cds, livros e filmes, a Livraria Cultura. Veja como é a vida, quando fomos, já nem queria ir mais. É assim mesmo. Surpresas da viagem já haviam saciado minha sede de coisas. Olhamos um pouco paredes inteiras de cds, ela conhecia quase tudo, eu me sentia um desconhecido do mundo. Mas, nada cativou a ponto de me fazer levar por impulso. (Não queria levar nada, afinal). Mas, olhando para as películas, mais uma surpresa me arrepia - encontro o Estranho Mundo! Jack olhou pra mim duplamente. Dois haviam e dois eu tive que levar. Um meu e um presente - uma chance única que não se podia perder. Pronto, ali realmente razão nenhuma restava para permanecer. Saímos... a tarde estava findando, o céu estava nublado com buracos de céu e tantas garças, pombos, passarinhos batendo as asas sobre nós, sobre o rio. Sentamos na rocha à beira d´água. Água cinza, detritos, refugos da miséria urbana. Mas, no distante, refletindo a luz suave do sol filtrado pelas nuvens, aquele rio estava lindo. Ela precisava registrar seu triângulo - é, três pontas sem mim. Captou com sua câmera a paisagem. Eu, desprovido da minha rede de caçar imagens-borboletas, usava a dela também para guardar as minhas visões. Sentados ali, esperando a vida seguir sua correnteza rumo ao mar, vimos se aproximar um barquinho. Pequeno, madeira, motor, remos, branco e vermelho, aquele senhor Mansinho com jeito simpático. Tirei uma foto, acenei pra ele - estava apenas brincando o momento. Mas, caixinha de surpresas, ele não passou por nós, deu uma volta e se aproximou - Querem dar um passeio? Para lá acabou e poderia dar esse último passeio pelo rio hoje - Eu me impressionei, me empolguei! - Queres ir? - Tenho medo! - Vamos! Se morrermos, é porque era pra ser - Não! - Vamos, vamos, vamos! - Tá, eu vou. - Corri para avisar para nos esperarem caso quisessem ir embora, troquei a prata para o barqueiro e fui de encontro. Até a Casa da Cultura, ele disse. Pisamos na pequena ilha flutuante com relutância, hesitação. - Ele pegou nos remos - Vamos remando? - Você é doido? Não chegaríamos nunca - Ah tá. Manobrou a embarcação e fomos, impulsionados pela combustão. Através do corpo d´água da Veneza do Brasil. Eu e ela, ela e eu. Romântico? Pena, mas, não. O que foi romantismo, agora era uma incômoda imobilidade, um dia de finados, poucas palavras meio arranhadas, silêncio de navalha. Mesmo assim, que importa? - Peguei a máquina e flagrei as lembranças de mangue "preservadas" (poupadas, é mais justo) nas margens, a história de vários andares daquela Recife de minha infância, ainda que para mim permanecesse uma cidade desconhecida e misteriosa. Ela tinha pouco interesse. Tudo naquela viagem, parecia a mim, ela vivia apenas como se consentisse em se deixar ir, mas sem vontade. Passamos pelas pontes baixas, centrímetros de nossas cabeças - passagens de séculos, holandesas, portuguesas, brasileiras. Conversamos algo? Não me marcou. Olhava para ela, dava meus pequenos beijos (a viagem inteira), como... como pequenas ondas de espuma que insistem em chegar a uma praia que não faz questão de estar (e onde não se pode chegar - inalcançável, uma praia solteira do mar). Fizemos a curva na ilhota mesopotâmica, faraônica, européia. Eu observava aqueles casarões, aquelas árvores anciãs, cúpulas douradas, teatros e praças, aquele litoral fluvial de abandono, de passado e beleza. O destino chegou - a velha prisão transformada em Casa da Cultura. O claustro transformado em espaço da arte do povo, artesanato, expressão do sangue daquela terra... Uma minúscula sensação de gota no rosto. Chuvisco? Por tão pouco ela se desesperou, sua beleza de fios negros não podiam com água... com aquelas gotinhas, caiu sobre nós , como se não bastasse, uma sensação de 'arruinado'. Se ela pudesse, saia voando de lá, me deixava - não podia (?). Apenas um susto. Logo pararam de pular das nuvens as lágrimas do céu. Foi só um cisco na atmosfera lacrimal. Voltamos, chegamos. Fomos para o veículo. Silêncio. Fomos embora... para todos se aprontarem para a última noite. Noite.

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