quarta-feira, 30 de setembro de 2009

objetivas


Seu reflexo no espelho olhava-o intrigado. A parede já estava acostumada a sustentar-lhe o peso das costas. O chão ouvia seus murmúrios e sentia a rigidez de seus punhos no exercício. Sem os óculos, podia se ver bem - a cegueira ainda estava um pouco distante - e longo tempo quedou ali, observando, até o silêncio ser quebrado em diversos cacos.

o caco pontiagudo disse
- Estamos, então, eternamente sós?

o pedaço mais arredondado respondeu
- É isto que sentes, mas não é uma verdade absoluta. "Tudo é relativo" pode parecer clichê, mas você mesmo já experimentou vários momentos de companhia verdadeira, não?

o maior dos cacos logo rebateu
- Às vezes minha lembrança faz-me duvidar desses instantes, de quão próximo realmente consegui estar de alguém. E, veja só, até a maior e derradeira impressão que tive de eternidade se despedaçou, desmanchou minha crença, deixando em mim essa (quase) certeza de que nada resta senão a nós (o passado), a vida (o presente) e o vazio (o futuro)... - tríade.

aquele encostado perto do cesto de lixo comentou
- Não sejamos tão cortantes, todos nós. Lembremos que somos pedaços de um todo e que, quer queiram, quer não, nos encaixamos (?). É possível até que existam muito mais formas de nos completarmos do que imaginamos, porque, vejam só quantos cristais estão esparramados pelo chão, partículas de nós que se perderam com os atritos e as quedas. A medida que vamos nos dilapidando, nossas formas poderão se moldar e encontrar outros e outras tão perfeitamente quanto no princípio, quando éramos o límpido silêncio.

sem que ninguém pudesse ver, escondido atrás de um sapato, um caco rachado retrucou
- Oh, eu não quero mais saber. Deixem-me aqui e só, estarei bem. Parti-me em tantas partes que já me basta tentar unir-me comigo, não tenho mais paciência para ainda querer exteriores.

mas a tal poeria de vidro levantou voz também e afirmou, finalmente
- Um pouco de sol agora bastará para que eu me derreta e aqueça. Já senti tanto a dor da partida que já não há para onde partir, a menos que desapareça - e ainda não tenho essa vocação. Forçosamente, então, tenho o caminho inverso para trilhar - ser um artesão de minha poeira.

Bem-humorado, juntou todos os cacos e os colocou junto às ferramentas e os materiais com os quais brincava de fazer coisas. Ilustrariam e iluminariam as paredes de madeira de um presente, o vertical de seu quarto, as fotografias do seu escrito... e não mais se calou (nem ficou triste).

Um comentário:

Fernandes disse...

Parece um conto infantil para alguma criança prodígio. Bonito!