quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Contos Femininos (II)

- Alô? Liguei só para ter certeza de que você está ocupada.
- Ah, nem estou, mas estou do outro lado da cidade e não posso sair daqui.
- Ah, eu odeio você. (é a única pessoa para quem tive vontade de ligar) - 'tô' brincando!
- risos.

Estás de costas e chego sorrateiramente, com as mãos vendando-lhe os olhos. Depois de tantas vezes, nem chegas a pensar, creio que meu nome já estala na tua mente. Não sei o que pensas disso ou o que representa, mas são rituais pequenos que fazem a vida adorável. Há não muito tempo te conheço e confesso - já não mais em carta - que descobri em ti algo difícil de definir (e de encontrar), uma sensação de querer estar perto para tranquilizar, para afastar a tristeza, pelo prazer de conversar, para contar algo pessoal ou para te deixar adivinhar (ouvir o que vais dizer). Sentar no canto da escada, largar a bolsa e a mochila, deixar as palavras fugirem com certa incoerência (eu, pelo menos acho, já você diz que entende) e me agarrar no que dizes, tentar desvender um pouco do nada que sei sobre você. Ah, lembro-me da sensação do vento e das conversas bobas ao sabor do pedal, pelo anel universitário até uma praça qualquer com Igreja no centro, árvores, balanço, grama p´ra deitar. Sinto ainda o gosto de brigadeiro com Lispector, o cheiro dos livros antigos, lâmpadas submersas, tirinhas penduradas na parede, garrafa comemorativa, posteres de arte, janela de dobradura de papel, mandala estrelada e brisa e paz. Gosto tanto daqueles três espelhos pelo corredor e das músicas que ecoam por ali. Gosto de subir essas escadas, atravessar o pátio onde do céu caem chaves, ver o contraste do cabelo tão preto com a pele tão branca. Há ainda as capitanias, as prisões antigas, os gramados inclinados, as praias enfeitiçadas por magia, as idéias para gravar em películas, as músicas para ouvir de baixo da noite, com o tom das nossas tristezas. Talvez entendas algo de mim que nem mesmo eu tenha descoberto, eu sinto algo assim, e admiro tanto sua percepção, cristalina, de sorriso claro... acerta-me com tamanha precisão que preciso desviar, disfarçar. Depois de tantas ligações que não se concretizaram, alegro-me com a surpresa de telegramas instantâneos, pequenas gotas de amizade pura, abraços de sentimento. Podemos conversar mais, podemos viajar, vamos? Afinal, nem comecei a saber quem és - eu sou o vidro transparente (e quebrado), tu és a cortina de renda bordada (entre-fechada). Precisamos também ir mais longe, sim, e talvez cartas - para eu te dizer algo com a eloquência que preciso. Deixe-me contar-lhe também, não gosto de vinho - preciso de tudo doce (nada amargo), morrerei de diabetes - mas ninguém vai ficar sabendo - neste dia terei cortado o fio que costura minhas veias e as deixarei se desfazerem, libertando toda a madrugada que ocupa o vácuo que existe em mim. Mas, naquela noite levaste o doce e foste também - me fez bem. Entrego-te todos os abraços que precisamos e ouço a música de harpa e brinquedos infantis com o prazer de uma criança que viveu mais do que devia... Obrigado.


(Hairnet Paradise - Cocorosie - uma música)

2 comentários:

Fernandes disse...

eerm...

di disse...

ontem eu ouvi uma linda musica, pouco depois da sua ligação. quis te ligar, mas eram 3 da manha. talvez uma das versoes mais lindas que ja vi de uma das minhas musicas preferidas. me lembrava vc.
beijo